Carlos Morais José Editorial Manchete Vozes21 anos é demasiado tempo 21 anos é a idade em que a nossa sociedade atribui total maioridade. Os 18 anos são uma espécie de ensaio, um primeiro ritual de independência, uma festa que celebra um tiro de partida cuja meta se encontra ali três anos à frente, um período que deveria ser de intensa preparação cognitivo-emocional. Porque é aos 21 que a sociedade espera realmente de todos outra postura e, sobretudo, a capacidade de olhar para a frente e enfrentar o destino, deixando-se espezinhar ou pegando-o pelos cornos. Os 21 anos são excitantes porque cada sujeito se aventura como se o mundo fosse novo, quando na realidade é ele que se vê na contingência de mudar, para ao mundo se ajustar ou o enfrentar, com plena responsabilidade pela sua sobrevivência e pelas suas acções. Os 21 anos são, para muitos, tempo de embarcar, de erguer as velas sem esperar por vento, de operar uma desterritorialização fundamental. Assim não é com os jornais, que têm uma vida muito mais acelerada, cujo coração bate a uma velocidade infinitamente superior ao de um ser humano, cujos rins filtram muito mais dejectos e gorduras, cujo fígado se vê obrigado a inúmeras horas extras e cujo estômago rapidamente se danifica. Um jornal envelhece quase à velocidade da luz. Se remexesse no baú da memória poder-vos-ia contar dezenas de episódios que confirmariam a desmesurada intensidade dessa vida de um jornal, que ilustrariam como os primeiros cinco anos pesam como 20; e como aos 10 surgem já as primeiras brancas; e aos 15 a primeira falta de fôlego para uma subida agora demasiado íngreme. O que dizer dos 21, que hoje comemoramos? Não sei se sobre o nosso cabeçalho, o cabelo rareia ou encaneceu, mas dou pelo cuidado e pelas maneiras de um ancião. Que se precavê de escorregar no banho, caminha lento pela rua e hesita antes de atravessar, mesmo que no horizonte não vislumbre um único automóvel, carrinha ou camião. Por outro lado, além de manter a espinha relativamente direita, também organizou melhor o seu tempo (agora, por vezes, tem tempo de olhar demoradamente o poente ou uma flor), diversificou as suas preocupações e alcançou altíssimas classificações no curso de nadador-salvador. Também adquiriu uma extensa paciência e uma sincera benevolência perante as idiossincrasias do género humano. Numa palavra, envelheceu. Talvez precocemente, como acontece à maioria dos jornais. Um dos sintomas da nossa provecta idade é a dificuldade que temos em lidar com as novas tecnologias. A esta hora, deviam estar a ver as minhas fuças num vídeo, a recitar-vos este texto, com um cenário de capas sucessivas deste jornal ao longo dos 21 anos que hoje faz. Devíamos tanta coisa: como ter uma presença mais contemporânea nas redes sociais, acordos com jornais lusófonos, entrevistas em vídeo, concursos vários, etc. E também mais jornalistas, mais funcionários, sobretudo bilingues, e devíamos também ter um acordo com Timor-Leste para formar jornalistas através de estágios e…; no entanto, devido a esta interminável crise pandémica (cujo fim não se vislumbra, o que nos deixa a todos angustiados, e pela qual ninguém é responsável), estamos preocupados em saber se sobreviveremos até ao fim do ano ou se definharemos até o Hoje Macau se apresentar aos seus leitores esquálido, ossos à mostra, os dentes estragados. Ainda assim vivo. * Durante estes 21 anos procurámos informar mas fomos também um espaço de criatividade, em que alguns relevantes escritores contemporâneos da lusofonia usaram as páginas do Hoje Macau para expressar as suas ideias, o seu estilo, a sua sensibilidade, através da escrita. Sem baias, sem freios, nem restrições. Estamos-lhes sinceramente agradecidos. Foi uma bonita festa, inopinada, é certo, mas por isso mesmo mais interessante. Celebrámos poetas e pensadores, motivámos artistas e, sobretudo, foram desenhadas pontes entre pessoas afastadas, várias epistolografias (hoje através de emails), amizades, famílias até, tudo isto tendo Macau como inesperado pólo agregador da lusofonia. Chamámos a essas páginas “h”, a mais diacrítica das letras, quase observadora, de limitada interferência na palavra. Nelas também divulgámos, a par com as crónicas, poemas ou outros textos dos nossos colaboradores, muitos aspectos da cultura chinesa, cuja representação em língua portuguesa continua a ser confrangedoramente pobre. Aos poucos, fomos promovendo e publicando as traduções de algumas das mais importantes obras do pensamento chinês, bem como alguma da melhor poesia que ressoou pelo País do Meio, bem como artigos sobre mitologia, história, pintura, antropologia, etc. Humildemente, sem meios nem rasgos, o Hoje Macau procurou sempre transmitir, na medida das suas possibilidades, conhecimento e informação sobre cultura chinesa em língua portuguesa, no sentido de proporcionar um melhor entendimento à comunidade portuguesa de Macau da civilização onde está inserida e contribuir, modestamente, para ir colocando uns tijolos no incongruente e rarefeito muro da sinologia portuguesa. Ao longo destes 21 anos, granjeámos assim um importante espólio de traduções que temos vindo a publicar em livros, através da editora Livros do Meio. O mesmo espólio tem-nos permitido organizar a Semana da Cultura Chinesa do Hoje Macau, que vai na sua segunda edição, e que tem obtido uma resposta positiva junto do público lusófono, não apenas em Macau, e que tem contado com a presença de personalidades locais, capazes e eficazes na construção de pontes entre civilizações e culturas. Agora pretendemos aprofundar esta nossa via de aproximação à cultura chinesa e, em breve, apresentaremos novas abordagens e novos projectos. * Como acima foi dito, 21 anos para um jornal é muito tempo. Por isso, numa sociedade acelerada como a nossa, vimos muito mudar, demos por muito acontecer, assistimos a crises, à luz no fundo do túnel, e também à saída para uma outra e melhor realidade. É também por isso que neste momento de indisfarçável crise, deveria ser altura para manter a calma, respirar fundo, não bater com a cabeça na parede e não tomar decisões precipitadas. E ter a consciência de que se sai de uma crise mais forte e não mais fraco, mais experimentado e não mais ignorante, mais apto e não mais frágil. Pelo menos, os que a ela sobreviverem, em termos físicos e mentais. A actual situação, a sua excessiva duração, empurrou Macau para um dos seus piores momentos dos últimos 50 anos, não se comparando com outros períodos de crise que afectaram a região, pois nunca como agora se viram tantos negócios fechados, tantos desempregados, tantas famílias em debandada e, sobretudo, tanta falta de esperança. É precisamente esperança que o Governo de Macau não tem dado em doses suficientes à população. A esperança de ver terminada esta crise, a preparação e descrição do momento seguinte, faltam na mente colectiva de Macau, independentemente da etnia que se considerar. Isto talvez seja tão ou mais importante do que dar dinheiro ou fazer conferências de imprensa assustadoras. Porque a verdade é que subiram em flecha o número de suicídios, violência doméstica e abuso infantil. O que significa isto senão que nos estamos a tornar numa sociedade verdadeiramente doente? Quando a esperança se dilui, emergem os instintos mais básicos e o mal campeia pela cidade. Ou seja, esta situação tem de encontrar brevemente uma saída, sob pena de quando sairmos deste buraco será para uma cidade irreconhecível. Em momentos como este, é preciso liderança, ideias para o futuro, capacidade as comunicar, para que a esperança não seja a primeira morrer. E foi assim, aos 21 anos, que esta crise nos colheu, que esta besta nos despojou, que este vírus arruinou muitos indivíduos, muita família. Nós, para o ano, cá estaremos, celebrando os 22 (que simpático número!). E esperamos que os nossos leitores nos acompanhem, estejam onde estiverem, para sempre ficarem a par das notícias de Macau e connosco mergulharem, nadarem e se deixarem levar pelas correntes dos mares, antigos e contemporâneos, da cultura chinesa. Nós somos um parafuso num pilar dessa ponte que começou a ser construída há cinco séculos e que vai permitindo a comunicação entre a China e a Lusofonia. Sabemos ser este o nosso lugar de excelência e, como diria Mestre Confúcio, é nele que pretendemos permanecer.
João Luz Grande Plano MancheteHM/20 anos | Edições iniciais mostram primeiros passos da RAEM e história circular Volvidas duas décadas sobre o nascimento do Hoje Macau, olhámos para as primeiras edições do jornal que testemunham os passos inaugurais da RAEM e notícias que atestam a natureza cíclica da história. Macau preparava-se para as primeiras eleições desde a transferência de soberania, os Censos tinham sido um sucesso e, enquanto se caminhava para a liberalização do jogo, o Hoje Macau esclarecia a natureza da concessão do antigo Hotel Bela Vista No dia 5 de Setembro de 2001 era publicada a edição inaugural do Hoje Macau, com a capa a incidir sobre a polémica questão da titularidade do antigo Hotel Bela Vista, que passou a ser a residência consular de Portugal em Macau, uma entrevista a Ng Kuok Cheong e a notícia do encerramento de websites “críticos à adesão de capitalistas ao Partido Comunista Chinês”. Numa altura em que a Região Administrativa Especial de Macau tinha pouco mais de um ano e meio de idade, a actualidade local vivia dos primordiais passos institucionais e económicos, com destaque para as primeiras eleições para a Assembleia Legislativa desde a transferência e o aceleramento do processo de liberalização do jogo. Lá fora, a Europa preparava-se para a revolução cambial da chegada do Euro, António Guterres, longe dos horizontes internacionais da ONU, visitava as obras da Barragem do Alqueva na condição de primeiro-ministro e o mundo estava prestes a ser abalado pelo ataque terrorista que derrubou as Torres Gémeas em Nova Iorque. No Afeganistão, os talibãs governavam, como uma espécie de testemunho do tempo. Numa altura de ressaca do êxodo de parte da comunidade portuguesa pós-1999, a manchete inaugural do Hoje Macau trazia claridade a um assunto que agigantava boatos e sentimentos crispados. A questão da propriedade do edifício do antigo Hotel Bela Vista abria chagas emocionais entre as comunidades, nos primeiros tempos em que a presença oficial portuguesa no território passava para o âmbito diplomático. O HM publicou o documento da Conservatória do Registo Predial que atesta que o edifício da residência do cônsul de Portugal em Macau não era propriedade do Estado português, mas uma concessão gratuita, com o prazo de arrendamento até 19 de Dezembro de 2042. O documento especifica que o edifício é “afecto às instalações do Consulado-Geral da República Portuguesa em Macau, nomeadamente como residências do Cônsul-Geral e de outros membros do Consulado-Geral”. Na segunda edição do HM, é acrescentada a voz do cônsul-geral da altura, Carlos Frota, confessando pensar que a publicidade à situação jurídica do edifício teria ficado resolvida com a publicação em Boletim Oficial, a 10 de Dezembro de 1997, do acordo alcançado sobre as instalações consulares. No dia seguinte, 7 de Setembro, o assunto ainda mexia, mas apenas no formato leve de uma breve opinativa que comentava o facto de o jornal Ou Mun ter publicado a “não novidade” de que o antigo Hotel Bela Vista não pertencia ao Estado português. Voto na matéria Também em destaque no número um do HM, esteve a entrevista a Ng Kuok Cheong, candidato que viria a ser o mais votado nas eleições que se avizinhavam. Em discurso directo, o histórico deputado dava voz a algumas das reivindicações que marcaram a sua carreira na vida política. Afastando radicalismos, Ng Kuok Cheong gostava que em 2009 o Chefe do Executivo fosse eleito por sufrágio directo, desejo que seria usado, 20 anos depois, para o desqualificar das eleições. De resto, o deputado almejava à abertura das comissões da Assembleia Legislativa, criticava a falta de eficácia da fiscalização do poder legislativo e defendia que a língua portuguesa devia continuar a ser oficial. Dois dias depois, o HM colocava Ng Kuok Cheong “em alta” na “bolsa de valores”, uma coluna de opinião, como um político “mais crescido, mais lúcido, menos radical” e com uma visão “correcta e desassombrada da comunidade portuguesa”. No capítulo das eleições, a comissão eleitoral já se pautava pela confusa regulamentação e vigilância do que era permitido e proibido durante a campanha. O HM citou mesmo uma fonte que dava conta da “fobia regulamentadora da comissão”, que “acabou por ter um resultado castrador nas acções de propaganda das listas, mesmo em pleno período de campanha eleitoral”. Ainda assim, nem tudo era cinzento na actuação da comissão eleitoral em 2021, como demonstra a notícia de 7 de Setembro onde se refere que a entidade teria chegado a acordo com as companhias de transportes públicos para não se pagar bilhete entre as 09h e as 20h do dia das eleições. Coisas da política e da terra Na terceira página do segundo número do HM, o assunto de um pequeno artigo viria a mudar para sempre a face de Macau. O texto versava sobre o aceleramento do processo de liberalização do jogo, uma semana depois da aprovação da lei que permitiria transformar Macau na capital mundial do jogo. O secretário para a Economia e Finanças da altura, Francis Tam, anunciava que estavam em curso “trabalhos para a respectiva regulamentação e para a criação de um grupo coordenador para o efeito”. Fora dos assuntos eleitorais e das questões locais, Macau abraçava e era abraçado pela China e projectava-se no plano global enquanto RAEM. O HM noticiava no dia 10, na sua primeira edição de segunda-feira, a visita de Florinda Chan, secretária para a Administração e Justiça a Pequim para participar no Fórum Internacional “A China e o Mundo no século XXI”. A reunião teria a participação de figuras internacionais como Helmut Kohl, Jacques Santer, Boutros Ghali e Henry Kissinger. Voltando à natureza cíclica da história, há 20 anos, as autoridades agradeciam à população a colaboração nos Censos 2001. No plano desportivo, a grande notícia local era a ausência do piloto português André Couto do Grande Prémio de Macau 2001, depois da participação vitoriosa no ano anterior. Entre notícias sobre novos métodos usados no Matadouro, o desejo da Casa de Portugal em Macau em conseguir voos charters para fazer viagens entre Lisboa e Macau no Natal de 2001, ou uma burla com água mineralizada importada de Zhuhai que afinal era da torneira, o HM surge num momento de ruptura da cena internacional. Com laivos premonitórios, a quinta edição do HM dava conta de um surto de cólera em Hong Kong, a um ano do grande pavor em que a SARS mergulhou a região, lançando alertas que chegaram rapidamente a Macau. Ainda assim, à altura, sem confirmação de casos pelos Serviços de Saúde, uma fonte do HM garantia que Macau não tinha “condições técnicas e de monitorização para fazer face a um hipotético surto de cólera com maiores dimensões”. Este artigo foi publicado no dia 11 de Setembro. No dia seguinte, Osama Bin Laden tornava-se no homem mais procurado do mundo. Planeta de ontem Quanto a notícias sobre Portugal, o futebol era um dos maiores elos de ligação, o cordão umbilical desportivo, com notícias que relatavam as lesões de Mantorras, os voos goleadores de Jardel e os desaires da selecção nacional orientada por António Oliveira. No plano político, o primeiro HM divulgava o aparato de segurança que implicava a chegada do euro a Portugal. O artigo não era sobre o campeonato europeu de futebol, mas sobre a revolução económica, política e cambial do fim da moeda escudo e o início do euro. A operação implicou a chegada de aviões carregados de dinheiro, destinado ao Banco de Portugal e à banca privada, à Base Aérea de Alcochete, com supervisão militar e de grupos privados. Na segunda edição, este jornal noticiava a visita do Engenheiro António Guterres, enquanto primeiro-ministro, às obras da barragem do Alqueva. Porém, o mundo estava prestes a ser abalado por um sismo geopolítico com epicentro em Manhattan. No dia 12 de Setembro, a sexta edição do HM, na capa lia-se “Terror na América – Milhares de Mortos”, com a manchete “Apocalypse Now” e a ilustração mostrava três momentos, desde os embates dos aviões nas Torres Gémeas à derrocada. O mundo mudava, atirando estilhaços que ainda hoje se sentem, moldando a nova configuração da geopolítica e da forma como é concebida a política internacional. Uma mudança de viragem de século, que o HM testemunhou, como tantas outras que foram passando pelas nossas páginas nos últimos 20 anos.
Carlos Morais José Editorial MancheteHM/20 anos | O jornal e o elefante 2001. Ano da Serpente. No dia 5 de Setembro nascia o Hoje Macau. Não eram tempos fáceis os primeiros anos da RAEM, sobretudo para a comunidade portuguesa remanescente. Muitos esqueceram, outros ainda se lembram. Da sensação de orfandade e da incerteza reinantes, se bem que habitadas por uma réstia de esperança misturada com amor à terra, que nos levara a ficar. Não sabíamos o que poderia acontecer, apesar dos discursos oficiais, ou como a população reagiria à nossa presença. Ouviam-se, por vezes, algumas vozes antiportuguesas, embora nunca tenham feito um coro suficientemente forte para apagar as palavras reconfortantes e securizantes que o então Chefe do Executivo Edmund Ho esporadicamente emitia. Eram tempos incertos quando o Hoje Macau nasceu. Tempos de luta e afirmação, de recolocação de pessoas em diferentes lugares, de emergência de novas elites, de conflitos dentro da própria comunicação social, de sedimentação de projectos em contexto de mudança extrema. Todos apalpávamos o terreno, na posse de poucas certezas. Nós, o Governo e a população. Lá fora, nesse mundo próximo e distante, seis dias depois de ter saído o primeiro número do Hoje Macau, acontecia o 11 de Setembro. (É agora tempo, vinte anos depois, de homenagear e agradecer a João Severino, proprietário e director do Macau Hoje, publicação que este jornal veio substituir. Foi graças a ele que o Hoje Macau nasceu e deu os primeiros passos, ainda amparado pela sua mão generosa. Durante o largo período que permaneceu em Macau, João Severino deixou uma marca indelével no jornalismo local que grande parte dos leitores lembra com saudade e que a História recordará.) Foi somente em 2003, depois do Governo Central ter designado Macau como ponte entre a China e os Países de Língua Portuguesa (PLP), que a nossa comunidade entendeu ter aqui uma plataforma de trabalho e a possibilidade de um contributo real para o crescimento e desenvolvimento da RAEM. Com estas directivas, Macau reafirmava a sua identidade única no contexto da nação chinesa, identidade que obrigatoriamente passava pela língua portuguesa e pela existência de relações de raízes seculares. A comunidade portuguesa poderia agora assumir um papel relevante na construção dos pilares e do tabuleiro das pontes que Pequim encarregava a RAEM de estabelecer. Por outras palavras, o Governo Central dava-nos argumentos para justificar a nossa presença. Ou, resumindo, a criação do Fórum Macau e a constante afirmação da RAEM como ponte para a Lusofonia fez-nos exalar um enorme e sincero suspiro de alívio. Nos anos seguintes, Macau entrou num processo desenfreado de crescimento que viria a durar cerca de década e meia. A liberalização do Jogo mudou o panorama da cidade em numerosos e profundos aspectos. Novos casinos e novas lojas mudaram o centro da cidade, o COTAI nasceu. Milhares de empregos bem remunerados elevaram de forma radical o nível de vida da população. Nem sempre o crescimento foi acompanhado por um desenvolvimento ecologicamente sustentado ou sequer preocupado com a qualidade de vida da população, mas Macau conheceu uma prosperidade fabulosa, que adveio do facto de se transformar na mais lucrativa praça de casinos do mundo. Entretanto, em 2008, estalava mais uma crise global. Nada que por aqui nos preocupasse. Mas Portugal entrou em profunda recessão, o que motivou uma emigração em massa, parte da qual aterrou em Macau onde, de uma forma geral, foi bem acolhida e encontrou meios para sobreviver. Eram pessoas diferentes das que por aqui haviam ficado, mais novas, com outros saberes e outros fazeres. A chegada de mais duas mil pessoas reforçou de forma significativa a nossa comunidade e foi motivo de regozijo generalizado, sobretudo para quem considera importante manter a inopinada presença lusófona, idosa de 500 anos, nesta pequena cidade do sul da China. Durante todo este período, a imprensa em língua portuguesa, ao contrário do que havia sido previsto, prosperou e consolidou-se. Três jornais diários, um semanário católico, outro bilingue, uma estação de rádio e outra de televisão, compõem o ramalhete de órgãos de comunicação social em língua portuguesa existente em Macau. O Hoje Macau foi lendo a realidade circundante, reflectindo sobre o seu papel e adoptando a forma que entendemos ser mais conveniente, útil aos nossos leitores e que nos agrada produzir. Assim, focámos a nossa atenção basicamente em assuntos locais, sejam eles de política, sociedade, desporto ou cultura. Se damos menos atenção a notícias internacionais ou de Portugal é porque sabemos terem os nossos leitores acesso a essa informação através de outros media melhor qualificados para o efeito. Assim, se exceptuarmos as notícias locais, o Hoje Macau preocupa-se em dar notícias da China e da Ásia, na medida em que são escassas no mundo de língua portuguesa, e em publicar artigos ou entrevistas cujo conteúdo ultrapassa a mera informação local e procuram, outrossim, estabelecer padrões éticos e políticos de comportamentos, de acordo com a nossa linha editorial, expressa desde o nosso primeiro número. Por outro lado, criámos a secção h, de artes, letras e ideias, na qual já contribuíram e contribuem escritores, artistas, pensadores e poetas relevantes da Lusofonia, fazendo assim com que o nome de Macau continuamente ressoe nos círculos literários e filosóficos dos PLP. Nesta mesma secção, promovemos ao longo dos anos a tradução sistemática de clássicos da poesia e do pensamento chinês, além de artigos sobre História de Macau e cultura chinesa de uma forma geral. Como diria Jacques de La Palice, tudo corria bem até começar a correr mal. Desde o início que sabíamos existirem em Hong Kong forças (estrangeiras, de Taiwan ou locais) que cuidavam poder fazer da RAEHK uma plataforma para atacar o Governo Central e o próprio país, ao abrigo da liberdade de expressão garantida pelo princípio “um país, dois sistemas”. Esses ataques foram tomando várias formas e exibindo variados pretextos mas alcançaram um ponto de viragem importante após 2016 e as mudanças operadas no contexto internacional, nomeadamente a postura muito mais agressiva dos Estados Unidos face à China, explanada em diversas campanhas internacionais e as acções de ONG’s patrocinadas pela CIA, o Congresso americano ou seus derivados. Hong Kong era o terreno ideal para lançar sombras sobre as esperadas acções do Governo chinês. Ideias de mais autonomia e até independência começaram a ser veiculadas em vários níveis comunicacionais mas que tinham sempre como alvo preferencial a juventude. Os 1000 (!) funcionários do consulado dos EUA em Hong Kong não ficaram inactivos e de mãos a abanar. Na óptica chinesa, as garantias e os direitos vigentes no segundo sistema não podiam de modo nenhum ser utilizados para atacar o país ou o seu Governo. Pequim compreendeu a situação e exigiu “patriotismo” aos candidatos a Chefe do Executivo nas eleições de 2017. A rua explodiu, o Governo local estremeceu e as eleições nunca chegaram a acontecer. O pretexto seguinte foi uma “casca de banana” chamada lei da extradição, na qual o Governo de Hong Kong escorregou sem pensar duas vezes. Pedida pela justiça de Taiwan para obter a extradição de um cidadão de Hong Kong, que alegadamente assassinara uma jovem na Formosa, o Governo entendeu, obviamente, que a lei não podia ignorar também a extradição para o Interior da China. E nestes termos a elaborou. Mal deu entrada no Conselho Legislativo, a rua explodiu. O governo recuou mas parte da rua, parte dos dois milhões que se manifestara contra a lei, recusou voltar para casa e entendeu pedir tudo o que sabia ser impossível de obter. Contudo, desta vez, as coisas estavam muito mais bem montadas. Nas manifestações surgiam kits especialmente preparados, enveredava-se pela violência, dividia-se a cidade em dois (azuis e amarelos), os principais activistas desdobravam-se em viagens internacionais para obter visibilidade, apoio e sanções contra a RAEHK e o país, portanto, tudo indicava estarmos perante esquemas bem planeados e preparados para manter o caos vivo nas ruas da cidade. E, durante meses, assim aconteceu. Hong Kong manteve-se paralisada e o seu Governo mostrou-se impotente para resolver o problema. Do lado dos activistas e, sobretudo, dos seus títeres, anunciavam-se tanques e tropas do outro lado da fronteira, rezava-se por uma intervenção militar que reavivasse os fantasmas de Tiananmen. Mas Pequim não mandou tropas, mandou uma lei. Chamou-lhe “de segurança nacional”. E com isto deixou todos com as calças na mão e a caminho do tribunal. Do resto rezará a História, conforme quem a contar. Poderia Macau passar incólume face aos problemas da ex-colónia britânica? Sabemos que não. Nunca assim foi, desde 1848, data da fundação de Hong Kong, e nunca assim será. Em primeiro lugar, a referida lei de segurança nacional foi dotada de extraterritorialidade, o que significa que pode ser aplicada fora de Hong Kong, isto é, por exemplo, em Macau. Mas, em segundo lugar, a lei é um aspecto da questão e o ano de 2021 foi fértil em mostrar-nos outros aspectos, talvez mais sombrios, quiçá mais preocupantes, que a mera extensão de uma lei, aliás desnecessária na RAEM, quer em termos jurídicos, quer em termos político-sociais. Antes de mais, teremos de referir os dois acontecimentos que mais ondas levantaram durante este ano: o caso TDM e a exclusão de candidatos às eleições para a Assembleia Legislativa. Claramente, o caso TDM, que se refere aos canais em língua portuguesa, está relacionado com a cobertura noticiosa que os canais efectuaram dos conflitos em Hong Kong, bem como do tom empregue em certas notícias claramente contrárias às posições do Governo chinês, que reproduziam a narrativa dos EUA e dos seus aliados sobre questões como Taiwan, Tibete ou o Xinjiang. Sendo a TDM um órgão de comunicação social que pertence, maioritariamente, ao Governo da RAEM, podemos imaginar que tipo de reacções terão existido da parte de um Gabinete de Ligação do Governo Central e de um Comissariado do Ministério dos Negócios Estrangeiros cada vez mais atentos e bem equipados com pessoal capaz de ler e entender português, ao ver que um canal de televisão de um governo local exprimia posições e opiniões, na sua maioria, contrárias à narrativa nacional. Ora, se até certa altura o que era publicado em língua portuguesa parecia não afectar as autoridades chinesas, a partir dos eventos de Hong Kong operou-se uma mudança significativa, na medida em que a China considera, provavelmente com razão, que se encontra sob um ataque “frio” do Ocidente e de modo nenhum quer admitir no seu território um espaço que apoie, abrigue ou fomente esse ataque. Obviamente, a recém-nomeada administração da TDM vinha com a missão de regular o estado do sítio. Não o conseguiu, contudo, fazer sem levantar ondas, de forma pacífica e harmoniosa. Ao sublinhar perante a redacção constituída por jornalistas portugueses que o patriotismo era um valor a respeitar, entre outras afirmações lost in translation, levou a uma série de demissões e rectificações na cadeia de comando da emissora. A administração da TDM pretendia uma linha editorial mais de acordo com as orientações nacionais, sobretudo em temas não relacionados com Macau mas com o país. Muito então se questionou e berrou que a liberdade de imprensa tinha acabado em Macau, que o segundo sistema já era. O que não é verdade, porque além da TDM, os outros media não foram chamados, não foram avisados, condicionados ou censurados prévia ou posteriormente no sentido de estabelecer esta ou aquela narrativa sobre este ou aquele acontecimento. É certo que são mantidas (e ainda bem) numerosas conversas e contactos com as autoridades, que se esforçam, como em qualquer lugar do mundo, por passar a sua versão dos factos. Cabe aos jornalistas fazer o rastreio final e assim temos feito no nosso jornal sem problemas. O que de algum modo se estranha é a surpresa que estes eventos causaram nalguns, como se não fosse prática comum dos governos em geral intervir nos media que controlam. Talvez, por inocência ou ignorância, julgassem que Macau é uma terra utópica onde as práticas banais de controlo por parte do poder não existem, que a TDM é uma cooperativa de jornalistas e que o segundo sistema (ou seja, a manutenção, em termos largos, do mesmo regime que existia antes da transferência de soberania) garante uma terra de leite e mel, onde a liberdade jorra abundante das fontes como nunca jorrou em local conhecido do Homem. Não se lembram, por exemplo, do férreo controlo noticioso nos mesmos canais da TDM durante a vigência da administração portuguesa, que incluiu censura, despedimentos e um total servilismo ao governo, “a bem da nação” e por “patriotismo”. Isto para não falar da censura exercida sobre o canal chinês da mesma empresa. Há muita gente esquecida (ou ignorante) nesta terra… Mas o que estava para vir não tinha a ver com jornalismo. Era pior e mais preocupante do que os acontecimentos na TDM. Ora, em Hong Kong, juntamente com a lei de segurança nacional, emergiu no discurso político de forma radical, como resposta a expressões de maior autonomia ou independência, o conceito de “patriotismo”. Portanto, Hong Kong deixa de ser governado “pelas suas gentes” e passa a ser governado pelas suas gentes sim, mas desde que sejam “patriotas”. Neste sentido, foi nomeada uma comissão para avaliar o patriotismo dos candidatos às eleições e excluir os que não satisfaziam os critérios ou tinham um historial criticável para evitar que elementos anti-China ou anti-Governo Central chegassem a lugares de poder, como acontecera nas eleições anteriores. (É fácil de perceber, por quem se interessa por História, que o conceito de “hai guo” [à letra, amar o país; patriotismo] encontra reverberações na alma chinesa distintas das que se verificam nas suas congéneres ocidentais. Isto porque, além do que as autoridades classificam como “século de humilhação” e que vai da Guerra do Ópio (1848) até à fundação da República Popular em 1949, a China esteve submetida, desde o século XIII, ao domínio mongol e depois manchu, com um breve intervalo de três séculos de dinastia Ming. Durante o “século da humilhação”, o País do Meio, esta civilização de cinco mil anos, viu-se repartido, invadido e espoliado por potências estrangeiras. É por isso muito natural que o conceito de “patriotismo” cale fundo na alma chinesa contemporânea, agora que o país recuperou a sua grandeza e lugar de destaque no contexto global.) Se em Hong Kong o Governo Central poderá entender que pulula gente anti-patriótica, a soldo de interesses estrangeiros, sustentado por ONG’s duvidosas e com meios para convocar manifestações violentas e garantir excelentes resultados eleitorais, tal caso não se verifica, nem se verificou, em Macau. Nesta cidade, por motivos demográficos, entre outros, existe uma população na qual não se detecta a desconfiança e animosidade contra a China e o Partido Comunista que encontramos em Hong Kong. Nem os membros das chamadas “associações democráticas”, de uma forma geral, jamais tiveram um comportamento anti-patriótico que pusesse em questão, por exemplo, a pertença de Macau à China ou a legitimidade do Partido Comunista. Talvez tal tenha acontecido mas disso não temos memória. A sua acção, embora pecando por escassa, limitou-se a um útil papel de vigilância de acções governativas que em nada questionaram os valores essenciais da RAEM. Só a realização das vigílias do 4 de Junho e um esporádico, quase ritual, pedido de eleições directas para o Chefe do Executivo (que, aliás, felizmente não vêm consagradas na Lei Básica), marcaram de outro modo as acções dos ditos “democratas”. Seriam razões suficientes para os excluir das próximas eleições, importando de Hong Kong a “prova de patriotismo”? Não estará Macau a navegar sobre escusadas ondas e a criar uma desnecessária desarmonia? Por outro lado, não estará o círculo de poder na RAEM cada vez mais restrito aos poderosos que logo se apressam a exibir fulgente o seu “patriotismo”, até porque este lhes permite afastar vozes inconvenientes não para os interesses do país ou da população de Macau, mas para os seus próprios interesses. Esta limitação de candidatos às eleições para a Assembleia Legislativa leva-nos a pedir o que sempre pedimos às autoridades da RAEM. Não é mais democracia, nem mais liberdade, mas sim mais transparência governativa. É nossa vontade confiar plenamente no Governo e nas autoridades judiciais. Por isso, urgia compreender as razões, os critérios, os pecados, que levaram às exclusões. Para termos todos a certeza de que vivemos no primado da lei. Entretanto, as coisas são o que são e não outra coisa. O senhor Jacques continua a acompanhar este texto. E neste momento, como há vinte anos, vivemos tempos incertos. A pandemia deixou-nos financeiramente de rastos e não se entrevê uma luz segura no fundo deste túnel. A comunidade portuguesa enfrenta este tempo de pandemia sem uma aberta há quase dois anos para visitar o seu país ou, simplesmente, passar umas férias que não seja na China. O que não pode garantir muita saúde mental. A verdade é que a saída de jornalistas, pelo seu pé, da TDM e as acções desenvolvidas junto da Assembleia da República em Lisboa, bem como a publicação de artigos de opinião e reportagens nos jornais em Portugal, críticos da situação de Macau, alvoraçaram o ambiente no seio da comunidade portuguesa, provocando intensos debates, questionamentos e até desistências. Liberdade para frente, direitos para trás, segurança para um lado, bem-estar para o outro, etc. & tal, e mais alguma coisa. Vozes ultrajadas, olhos arregalados de conjuntivite, pularam bravas em defesa da Declaração Conjunta, da Lei Básica, do derrube dos comunistas e, na onda, talvez do governo socialista de António Costa. Sem se preocuparem com o elefante. Felizmente, tanto o governo português como a Assembleia da República, entenderam que, campanhas internacionais aparte e delírios egóicos esgotados, o problema era outro, precisamente o elefante; o que está no meio desta sala, a quem alguns unicamente sentem a cauda, outros a tromba, sem realmente compreenderem que se trata de um elefante e que importa mantê-lo vivo: a nossa comunidade. É que, na rugosidade do actual contexto internacional e regional, de modo nenhum, a comunidade portuguesa de Macau poderia ser vista por Pequim como um ponta-de-lança local de interesses estrangeiros. De modo nenhum, a comunidade portuguesa de Macau, com uma presença de 500 anos, poderia ser tomada por “inimiga” e, aos poucos, convidada a procurar outras paragens. Ora, também para este jornal, a manutenção da comunidade portuguesa em Macau é um dos nossos principais desideratos e responsabilidade (esta sim, patriótica). Neste sentido, entendemos que não nos cabe a nós, comunidade portuguesa de Macau, como nunca coube, por aqui derrubar ou prejudicar dinastias ou regimes. Demo-nos com os Ming, depois com os Qing, a seguir com as duas repúblicas, e aqui continuamos em paz para cooperar e viver neste grande país, independentemente das atribulações políticas nacionais ou internacionais. O nosso objectivo é criar laços, ligar e construir, do modo que for mais conveniente ao desenvolvimento da RAEM, nomeadamente através da divulgação da civilização e da cultura chinesas em língua portuguesa. É isso que o Hoje Macau, a par com um jornalismo independente e rigoroso, ao serviço da população, aqui faz há vinte anos. E, com a vossa ajuda, se propõe fazer por muitos mais, nesta quinta era do mundo.
Carlos Morais José Editorial VozesWe know not what tomorrow will bring [dropcap]O[/dropcap] Hoje Macau cumpre o seu décimo nono ano de publicação. Talvez de vida. Quantas vidas habitam num jornal? Pensem no assunto que é para isso que existe um jornal: para pensar. Para informar, certo; mas que essa informação não enforme, que a vossa mente seja um terreno minado por diversas guerras e não a praia de uma Ilha dos Amores. A verdade é um horizonte do qual nos pretendemos aproximar. A cada frase, cada parágrafo, na descrição de cada facto. Esses passos exigem um trabalho de bricolage, de construção de um puzzle constituído por peças infinitas. Exige também uma percepção geral das coisas e das pessoas, das suas histórias e das suas genealogias. Nunca, por definição, estará completo. É um trabalho infinito, ainda antes de se encontrar submetido ao escorrer imparável do tempo e dos acontecimentos. É um saber sincrónico, quase instantâneo, que a todo o momento se desfaz na diacronia. E embrulha peixe ou desaparece no frenesi digital. Este trabalho, de inesgotável paciência, quantas vezes de contenção ascética, de contornar charcos e armadilhas, assombrado pelo tédio do mundo e pelo encontro regular com a maldade, é constantemente desafiado pelas alterações políticas, sociais e económicas a que a nossa era nos submete. A velocidade é estonteante e não promete abrandar. O que ontem nos parecia impossível ou, no mínimo, altamente improvável, circula hoje nas várias redes, reais ou virtuais. Se, por um lado, a pandemia travou a produção material e de serviços; por outro, estimulou reencontros e reajustes de outra ordem, inclusivamente individual, cujos resultados estão longe de ser claramente perceptíveis. Macau, além da covid-19, sofreu este ano as dores provocadas pela situação desencadeada em Hong Kong. Assistimos um acelerar da História, aparentemente evitável, mas talvez impossível de travar. Infelizmente, a questão, ao ultrapassar as fronteiras da ex-colónia britânica e as aspirações da sua população, para se inscrever num mapa geoestratégico, desfigurou justificáveis expectativas e sublinha a fragilidade das intenções num contexto de realpolitik . Por aqui, esperamos que Pequim proteja a RAEM e não nos transforme num dano colateral da situação pantanosa de Hong Kong. Macau entende-se bem com a Lei Básica, possui a sua própria Lei de Segurança Nacional e reafirmou, em 20 anos de percurso nem sempre idílico, a sua identidade de sempre. Se entendida como equipa, a população da RAEM e o seu modo de vida ganharam claramente o jogo. Para quê mexer nas regras? Não será uma atitude, acima de tudo, imprudente? Devido à pandemia, o Governo de Ho Iat Seng não teve ainda ocasião para demonstrar a sua capacidade para governar. Entretanto, de uma forma geral, os sinais dados durante este período, a capacidade para tomar decisões e, sobretudo, uma maior empatia com a população, leva-nos a esperar que o Executivo invista num melhoramento da qualidade de vida, da habitação, do ambiente, da saúde, etc., de modo coerente e durável, tendo em conta a necessidade de uma proficiente distribuição da riqueza e a criação de oportunidades para todos. Mas, acima de tudo, em tempos de incertezas, seria importante que o Governo tranquilizasse, amainasse os actuais ventos, não se precipitasse em estradas sem retorno e nos mostrasse que entende a identidade de Macau como cidade pancultural, onde diversas comunidades pacificamente coabitam e dominam a sublime arte de lidarem com a diferença e o desconhecido. * O Hoje Macau entra assim no seu vigésimo ano de publicação. E, claro, não queremos deixar de assinalar a ocasião. Só que, ao invés de o fazermos na data do nosso aniversário, entendemos ser mais interessante estender a festa ao longo do ano e não a confinar a um único acontecimento. Assim, os nossos leitores e amigos podem contar diversas iniciativas “anti-tédio” do Hoje Macau no glorioso ano de 2021. Em Junho de 2020, organizámos a Semana da Cultura Chinesa, que se veio a revelar um dos mais importantes acontecimentos culturais do ano, no qual a comunidade que se expressa em Português teve a oportunidade de mostrar o seu interesse e aprofundar o seu conhecimento da China e dos chineses. Na altura, publicámos sete traduções de clássicos, abrangendo áreas tão diversas como a poesia, a estética, o pensamento, a etnografia e a estratégia militar. Prometemos, desde já, prosseguir com este trabalho de aproximação de culturas e de pessoas, afinal, o cimento real que une os povos e possibilita um futuro comum. Mas não ficaremos por aqui. Outras iniciativas, projectos, festas, estão previstos para este ano, sob a égide do nosso jornal e dedicados a toda a população de Macau e não só. Contamos, como sempre, convosco porque é unicamente convosco que podemos contar. Leiam-nos, discutam-nos, amem-nos, odeiem-nos, participem. Numa palavra, dêem prova de vida. We know not what tomorrow will bring.