Allen Ginsberg

[dropcap]O[/dropcap] espectáculo que os EUA dão de si neste imbróglio do impeachement é deplorável. É um espelho onde já nada se reflecte, um palco psicóptico, perverso, pasto de abutres que se servem de expedientes espúrios para manter uma refeição que não passa de um holograma, dado que o clown no poder, de tanto desdenhar regras e ética e se julgar acima da lei, já mostrou à saciedade que o rei vai nu.

Neste dia 15 houve nova revelação: um colaborador do advogado de Trump, um videirinho chamado Parnas, contou, preto no branco, que entregou em maio, a pedido de Giuliani, um ultimato ao futuro presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, no qual se declarava que nenhum representante do governo americano participaria de sua cerimônia de posse e que a ajuda militar americana seria retida se não houvesse o anúncio de uma investigação sobre Biden e seu filho, Hunter.

“Trump sabia exatamente o que estava acontecendo”, assegurou à emissora MSNBC, “Ele estava ciente de todos os meus movimentos. Eu não faria nada sem o consentimento de Rudy Giuliani ou do presidente”.
Mas os Republicanos varrem a realidade para debaixo do tapete; a defesa que apresentam para Trump é a de arvorar uma suposta inconstitucionalidade no acto dos Democratas.

O próprio Biden – o que é espantoso – não vai à luta, não gasta munições na defesa da dignidade de um cargo que anseia ocupar. Ficamos a saber que antes de dispor-se a enfrentar tiranos e opressores pensará no custo político.

O mundo ficou reduzido à conversa fiada; atendamos ao pedido de Ginsberg, no seu Hino a Kali: “ajuda-me (deusa) na impotência de todos os meus eus/ e faz-me a graça, destino manifesto/ de nunca mais renascer americano”.

À conversa fiada nunca se entregou Ginsberg, que tem vindo ao meu encontro. O ano passado, comprei na rua uma biografia sua da 10/18, depois, procurando um livro de Jacques Darras topei com outro dele, dedicado a Ginsberg, adquiri-o; em novembro reparei que Kenneth White escrevera um livro sobre ele e não resisti.

E o que é certo é que muito para além de gostar ou não da sua poesia é inegável que Ginsberg era um homem com rosto, sem um cabelo de espessura entre o que era e o que fazia. Ginsberg foi um autodidacta, como Pound, menos preocupado com as técnicas da versificação e os acentos prosódicos, menos bulímico no apetite por culturas transversais, e menos interessado na procura de uma forma poética nova do que na de uma sageza de vida autêntica. Daí que tenha sido um poço de escândalos, não porque sim, antes por ser consequente com a sua noção de liberdade.

Em 1964, Richard Newton tirou-lhe, e ao amante Peter Orlovsky, a fotografia que ilustra a crónica. Em 1970, a foto foi publicada na capa da revista Evergreen. Foi uma pedrada no charco, como foram a publicação de Uivo, as suas participações em todas as manifestações anti-Vietname, a sua militância gay. Uma vez, numa leitura de poesia alguém do público perguntou a Ginsberg o que ele entendia por poesia. “Nudez”, foi a sua resposta. “Nudez? É vago!”, escarneceu o outro, e, como resposta, Ginsberg imediatamente tirou a roupa.

Não era de conversa fiada – consequente do primeiro átomo ao último cabelo.
Esteve presente, em todas festas, em todas as lutas. Foi detido várias vezes, voltou à primeira fila das trincheiras contra as manobras da CIA e do FBI, num país em que se mata por isso, escrevendo, assinando manifestos políticos, sem nunca descuidar os seus retiros búdicos e o estudo dos seus místicos.

Hoje faz falta alguém com esta dimensão, olha-se para os States e é um marasmo.
Em 2017, lembrando-me do Uivo (que volta a estar actualíssimo) e da sua importância na minha juventude escrevi esta homenagem:

“UIVO: Se encosto a lâmina ao pulso/ e num gesto sacudido ressuscito/ na carne que gorgoleja a estupefacta/ gaguez do Titanic, o que brota do rasgão// não é mármore de Carrara/ ou a expectoração dos lírios, por isso/ peço-vos, Não evoquem Deus em vão/ se vos parecer de mau gosto// que vos pragueje: “Puta/ que vos pariu, vão mamar/ na sexta pata do cavalo!”./
À velocidade com que os dias me// tropeçam dói o lábio rebentado/ com que tento ainda amar-vos,/ e assim não pode mais a poesia/  aquietar-se na literalidade do mundo.// Também eu vi os maiores espíritos/ da minha geração destruídos pela loucura,/ esfaimados, histéricos, nus, aspirando/ à tona do asfalto o que sobrava de pólen// às veias que uma agulha vitrificara;/ vi-os, aturei-os, caricatos, e vomitei-os,/ como capitonês sem sintaxe, / desacomodados acenos, ímpios// e fraternos como ossos de cão/ sem porto; ouvi-lhes as vozes espargidas/ pelas pás encardidas das ventoinhas/ dos mais reles hotéis à margem// de rios de pez; conheci-lhes o gaio desespero/ da alma, a fibrilação dos escarros, o sémen,/ e a liberdade demencial com que,/
transidos pela agonia das ressacas,// afinal se empanturravam em delícias do mar/ e maionese; transcrevi-lhes os sonhos./ Só pretendiam, à boleia da melancolia/ dos anjos, exceder o romantismo,// ou ter encontros com Deus num peep show./ De tudo isso me fartei, de salmos,/
de haikus acompanhados de batata frita,/ de paratextos em néon e da auto-indulgência/ dos malditos. Repilo agora qualquer pena/ de mim mesmo por não ter nascido/ um santo e se encosto a lâmina/ ao pulso o meu sangue galga, ganha/ a alacridade dos virgens, o aroma/ a caca fresca que um casco ervado deflagrou,/ – conseguisse eu ainda insultar a vida,/ mas tudo aquilo que em mim se perde// faz estrume! É-me pois indiferente/ se não me perdoam que, farto/ de queixumes, de pretos e brancos,/ de colonos e corruptos, me dane// para acompanhar-vos ao futebol,/ e antes escreva, com canivete, em apneia,/ (a cerveja é sempre preta), no tampo/ da autópsia de um país que vai falir.”

26 Jan 2020