Andreia Sofia Silva China / Ásia Entrevista MancheteAlexandr Svetlicinii, professor de Direito da Universidade de Macau: “Empresas estatais não são apenas actores económicos” O autor do livro “Chinese State Owned Enterprises and EU Merger Control”, recentemente apresentado na Fundação Rui Cunha, faz uma análise da última legislação aprovada no seio da União Europeia que regula o investimento das empresas estatais estrangeiras, incluindo da China. Alexandr Svetlicinii acredita que estas leis podem trazer mais obstáculos e diz que Portugal tem um quadro regulatório mais brando do que alguns Estados membros Quando começou a investigação que serviu de base a este livro? Há vários anos que investigo este tema mas nos últimos anos tive um projecto de investigação com o Instituto de Estudos Europeus de Macau, que me ajudou a transformá-lo num livro. Apesar de este abordar o tratamento das empresas estatais chinesas também levanta questões importantes sobre as empresas estatais europeias dentro da UE. Quando houver uma recuperação da crise económica, causada pela covid-19, talvez vejamos um maior envolvimento dos Estados na economia com investimentos e empresas estatais. Veremos talvez mais políticas industriais do que antes. Todas estas questões ligadas à propriedade estatal são relevantes para a UE e não apenas por causa da China. Deve haver regras mais claras de como lidam [as empresas estatais chinesas] com as empresas estatais europeias. Aborda no livro a ideia de “três grandes montanhas” aplicada aos investimentos estatais chineses. Esta expressão simboliza alguns obstáculos que têm de ser ultrapassados. Faço esta comparação para identificar três quadros regulatórios que servem de base aos investimentos estrangeiros na União Europeia (UE), mais especificamente aos investimentos feitos por empresas estatais chinesas. A primeira montanha diz respeito ao “controlo da fusão”, que já existe há algum tempo e que consiste na regulação das empresas em termos de competição. A Comissão Europeia e os Estados-membros, dependendo do volume de aquisições, exigem compromissos ou condições e podem, muitas vezes, proibi-las. O que acontece é que as aquisições por parte das empresas chinesas levaram a uma série de questões, porque algumas delas, muito básicas mas ao mesmo tempo importantes, não foram devidamente respondidas. Tais como? Falo do conceito de “unidade económica singular” para empresas que estão separadas em termos legais mas são controladas pela mesma entidade. Em termos de competição são vistas como uma mesma unidade económica singular. Esta questão, relativamente às empresas estatais chinesas, não foi devidamente respondida. Houve muitos debates sobre até que ponto este “controlo da fusão” é suficiente para proteger os mercados europeus tendo em contas as preocupações ao nível da influência na competição das empresas. Também falo das mudanças das regras desse “controlo da fusão”, no sentido de que outras áreas, e não apenas a competição, devem ser incluídas. A Comissão Europeia não se mostrou disposta a mudar as regras do “controlo da fusão” porque são aplicadas de forma igual às empresas europeias. Então focaram-se em outras regulações. Pode dar exemplos? A análise do investimento directo estrangeiro baseado na segurança. Este regulamento foi adoptado em 2019 e começou a ser implementado em Outubro de 2020 e não introduz regras novas, mas exige aos Estados-membros que cooperem nesta análise aos investimentos estrangeiros. Muitos Estados-membros estão a adoptar novas regras e têm de partilhar informações sobre estes investimentos estrangeiros, incluindo com a Comissão Europeia. Esta é a “segunda montanha”, o segundo quadro regulatório. O terceiro está, para já, no formato de proposta. E a “terceira montanha”? É um relatório publicado pela Comissão Europeia em Junho do ano passado onde se propõe que se adoptem um conjunto de padrões de análise para as empresas estrangeiras e quaisquer empresas que façam negócios na UE com subsídios estrangeiros estatais. Actualmente, há um controlo estatal desses subsídios que são garantidos pelos Estados-membros, e há regras restritas sobre a atribuição de subsídios pelos Estados-membros da UE. Mas não há um quadro regulatório para os subsídios que são concedidos por empresas estrangeiras. A Comissão Europeia quer colmatar esta lacuna e no final deste ano deve apresentar uma proposta legislativa nesse sentido. Estes três quadros regulatórios serão aplicados aos investimentos estrangeiros e também aos investimentos chineses feitos por empresas estatais, tendo em conta a segurança de sectores considerados estratégicos por alguns estados membros da UE. As empresas estatais são, por norma, grandes beneficiárias dos subsídios estatais, por isso é que [este quadro regulatório] é também aplicável. A relação entre as empresas chinesas e europeias, e a forma como estão presentes nos mercados, tem sido justa até agora? O que posso dizer é que os dois sistemas regulatórios, na UE e na China, têm diferenças, e por causa disso as empresas que operam dentro e fora claro que podem parecer e tornar-se diferentes. Não chamaria uma relação injusta, mas distinta. A questão para a UE é como colocar no mesmo nível as suas próprias empresas e as estrangeiras. Por exemplo, os mercados europeus estão a tentar reduzir as diferenças com os quadros regulatórios que mencionei há pouco. E há depois o acordo de investimentos entre a China e a UE, onde se tentam impor condições de competitividade à China e isso é suposto ajudar as empresas europeias no acesso aos mercados e às operações no país. [É uma tentativa] de colocar entidades distintas, de ambientes diferentes, mais ou menos ao mesmo nível. Relativamente ao acordo de investimentos, que análise faz? Quem beneficia mais com ele, a China ou a UE? Um dos objectivos da UE foi garantir o acesso das empresas europeias ao mercado chinês e também colmatar estas lacunas na China para que as empresas europeias possam operar no país. Este acordo coloca alguns compromissos do lado da China e alguns deles estão directamente relacionados com estes objectivos. Se acompanharmos o desenvolvimento da China em matéria de investimento estrangeiro, nos últimos anos ela própria foi-se abrindo a novos mercados e sectores. O país reformou a sua legislação e tornou-a mais fácil para empresas estrangeiras. O que este acordo faz é instituir uma obrigação. Por exemplo, uma das preocupações da UE é que as empresas estatais tenham um tratamento preferencial, o que faz com que seja mais difícil aos investidores estrangeiros competir com elas no mercado chinês. E uma das obrigações é que ambas as partes devem garantir que as empresas estatais tomem as decisões com base em questões comerciais, ou seja, como uma empresa e não como um órgão estatal. O livro refere a ideia de as empresas estatais chinesas serem vistas como “o pilar do socialismo com características chinesas”. A UE está a prestar mais atenção a esse lado político do investimento? Há que compreender o tipo de efeito. Por exemplo, o facto de as empresas estatais poderem ser guiadas não só por razões comerciais mas também por algumas políticas e económicas, por a China querer desenvolver determinados sectores. Às vezes as empresas estatais podem tomar decisões que poderiam não se basear apenas na obtenção de lucros mas na implementação dessas políticas. Mas este facto não é único para a China, podemos nomear muitos países onde as empresas estatais têm essa função pública, e mesmo na UE isso acontece. As empresas estatais não são apenas actores económicos, também têm funções sociais e políticas. Talvez haja uma diferença em termos de intensidade, relativamente ao facto de as empresas europeias não serem tão importantes para o Estado como são na China. Pergunto se essas empresas têm também uma agenda política. Não parece que na UE haja uma clara compreensão ou articulação do tipo de agenda política das empresas estatais. Na adopção das regulações sobre o investimento estrangeiro, baseado em questões como a segurança e a ordem pública, um dos critérios incluído foi o domínio estatal sobre o investimento estrangeiro. A regulação europeia sugere que a propriedade estrangeira possa ser analisada caso represente uma ameaça em matéria de segurança nacional. Alguns Estados-membros também incluíram este critério nas leis nacionais. A própria UE não tem competência em matéria de segurança, então cada estado-membro vai decidir por si se considera ou não uma ameaça. Até agora não existe consenso por parte dos Estados-membros sobre eventuais ameaças à segurança ou ordem pública causadas pelos investimentos das empresas estatais. Mas há países com indústrias mais desenvolvidas, como é o caso da França ou da Alemanha, que parecem ser mais cautelosos relativamente ao investimento estrangeiro estatal, enquanto que outros países, com indústrias menos desenvolvidas, acolhem melhor esse investimento. Não o consideram uma ameaça e têm-no em conta consoante o sector de investimento. Estas regulações podem trazer grandes mudanças a nível prático? Todo este desenvolvimento legislativo pode criar um obstáculo adicional para os investimentos de empresas estatais estrangeiras. Contudo, o acordo de investimentos entre a China e a UE vai ser um exercício importante de construção da confiança entre ambas as partes. E se for implementado de forma satisfatória ambas as partes vão ganhar com ele e os futuros investimentos possam ser vistos de uma outra forma. Agora há uma atitude cautelosa por parte da UE, sobretudo numa altura de recessão económica. Devido à nova legislação e recessão económica talvez possamos esperar mais obstáculos a este tipo de investimentos em sectores estratégicos. Este é o período da presidência portuguesa da UE. Espera algumas alterações em matéria política e legislativa na relação com a China? Não vejo que neste período a relação entre a China e a UE sofra mudanças significativas. São poucos meses de presidência e provavelmente o acordo de investimento não será ratificado nos próximos seis meses, vai levar mais tempo. Mas quando falamos da relação bilateral entre a China e Portugal talvez seja mais aberta, por uma questão estratégica, comparada com outros Estados-membros. Um sinal que vemos é que Portugal já tem regras de análise de investimento directo estrangeiro desde 2004, mas estas não requerem uma pré-aprovação ou notificação dos investimentos estrangeiros. Apenas permitem que o Governo intervenha e reveja projectos individuais que possam gerar maior preocupação em matéria de segurança nacional. É um regime algo aberto. Alguns Estados-membros adoptaram regras mais estreitas, mas Portugal não o fez.