Luís Carmelo Artes, Letras e Ideias hElogio da embriaguez [dropcap]N[/dropcap]ietzsche nasceu em 1844, um ano depois da morte de Holderlin. A sucessão pode parecer inócua mas não o é, pois 44 anos depois – os números têm por vezes o seu quê de mágico – a penúltima obra do autor a ser impressa, ‘O Crepúsculo dos Ídolos’ (1888), destruiu com alguma ferocidade o que restava do mito da inspiração que, de uma maneira ou de outra, chegou até aos nossos dias com aquela patine e rasgo próprios das estações de caminho de ferro abandonadas. Timothy Clark, autor de um livro que há uns anos me marcou, ‘The Theory of Inspiration’ (1997), referiu-se ao mito de Holderlin como o “de um jovem poeta destituído de si e do mundo, dolorosamente apaixonado e angustiado e que perdia literalmente a cabeça por causa dos contactos imediatos com a linguagem dos deuses.”. Nos antípodas destes relâmpagos de incandescência platónica, Nietzsche defendeu neste seu livro que, “para que haja arte” e “para que haja alguma acção e contemplação estéticas, torna-se indispensável uma condição fisiológica prévia: a embriaguez”. Esta embriaguez não é uma metáfora. Quando muito é um género que se divide em várias espécies. Lendo as passagens 8 e 9 do capítulo “Incursões de um intempestivo”, poderíamos dividir a embriaguez em quatro tipos (as designações são minhas): a vital, a extrema, a estimulada e a arrojada. a) A embriaguez vital corresponde à excitação sexual (a mais antiga e originária de todas), mas também à embriaguez resultante de certos influxos meteorológicos, como por exemplo a “embriaguez primaveril”. Juntemos a estas doses luminosas a embriaguez que se segue a todos os “grandes apetites” e “afectos fortes”. b) A embriaguez extrema diz respeito a todo o “movimento” que inclua “festa”, “rivalidade”, “feito temerário” ou “vitória”, mas também a embriaguez que resulte da “crueldade” e da “destruição”. c) A embriaguez estimulada advém, por sua vez, do “influxo dos narcóticos”. Das drogas ao álcool vale tudo nesta secção que sorri a muitos e bons poetas de todas as eras ‘in saecula saeculorum’. d) Por fim a embriaguez arrojada é a “embriaguez de uma vontade sobrecarregada e dilatada.”, ou seja, talvez a única que brota de dentro para fora como se cada ser humano fosse a nascente do poderoso Ganges. Depois desta categorização, Nietzsche explica a razão de ser da embriaguez enquanto condição da criação artística, dividindo o argumento em três passos. O primeiro prende-se com a excitação (“A embriaguez tem de intensificar primeiro a excitabilidade da máquina inteira: antes disto não acontece arte alguma.”), o segundo prende-se com a procura de um sentimento de plenitude e sobretudo com a intensificação das forças; por fim o terceiro passo – e o mais importante de todos – é o que mistura no limite o cosmomorfismo com o antropomorfismo: “deste sentimento fazemos partícipes as coisas, contragemo-las a que participem de nós, violentamo-las, — idealizar é o nome que se dá a esse processo”. Neste seu curiosíssimo diagnóstico, Nietzsche refere ainda que o embriagado apolíneo mantém excitado sobretudo o olhar, enquanto o embriagado dionisíaco, ao invés, intensifica e excita todo o sistema emotivo. Um e outro irão agir e entregar-se-ão à metamorfose que os fará ser sempre um outro, ou então o próprio mas com capacidade para redesenhar as coisas do mundo de um modo ilimitado. É evidente que, depois de ter aqui colocado a par a patologia inspirativa e a etiologia da embriaguez, só me apetece regressar a Al berto com quem, infelizmente, apenas falei por uma única vez. Neste trecho, a teoria de Nietzsche parece ganhar todo o seu fogo: “Mal começo a escrever sou eu que decido do caos e da ordem do mundo. Nada existe fora de mim, nem se entrechocam corpos etéreos, nem flutuam frutos minerais sobre o deserto da alma. A paixão extraviou-se. Não há contacto entre a realidade e aquilo que escrevo neste momento. Há muito que deixei de sentir, de ver, de estar, por isso mesmo escrevo”*. Este ‘deixar de ser’ em Al berto funciona, na realidade, como um lugar já ‘depois da embriaguez’ que, no extravio da sua paixão, acaba também por parodiar a respiração inspirada. Ficamos KO, desapegados a um canto do ringue, sem teorias para coser os brocados que ainda restam. Diria que é o melhor estado de coisas que existe na vida. Funciona como se fosse um tempo ainda sem começo. É nesse oásis desprovido de deserto e de miragens que tudo afinal se inicia ou reinicia. Todos os dias. Holderlin de porcelana a lançar o disco e Nietzsche também de porcelana a lançar o dardo. E eu a vê-los a tragar uma IPA (Indian Pale Ale de apreciável amargor e sem ídolos) e a contemplar o movimento livre dos patos que voam entre o Jardim da Estrela e os baixios húmidos da Pampulha. *Al berto, O Medo, Assírio e Alvim, Lisboa, 1997, pg. 26.
Hoje Macau EventosFilme “Al Berto”, de Vicente Alves do Ó, vence prémios Áquila 2018 [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] filme “Al Berto”, de Vicente Alves do Ó, conquistou quatro galardões nos Prémios Áquila 2018, atribuídos hoje pela Fénix – Associação Cinematográfica. Segundo a associação, “Al Berto” recebeu o prémio de melhor filme, sendo ainda reconhecido o elenco, com Ricardo Teixeira como melhor ator, Rita Loureiro e João Villas-Boas na representação secundária. Os prémios Áquila, que cumpriram a quarta edição, distinguem as melhores produções portuguesas de cinema e televisão e os vencedores são escolhidos pelo público, através de votação ‘online’. O Áquila de melhor realização foi para Paulo Filipe Monteiro, pelo filme “Zeus”, e o de melhor argumento para “A morte de Luís XIV”, de Albert Serra. Dânia Neto foi considerada a melhor atriz pela prestação em “Perdidos”, de Sérgio Graciano. Nas categorias de televisão, foram ainda distinguidos “Madre Paula” como melhor série e “Paixão” como a melhor telenovela. O Áquila de melhor atriz principal de televisão foi para Luísa Cruz, na telenovela “Espelho d’Água”, e o de melhor ator para Diogo Morgado em “Ouro Verde”, secundados por Carla Andrino na série “Ministério do Tempo” e Pedro Barroso na série “Vidago Palace”. O prémio de melhor canção original ou adaptada foi para “Bang”, de Ella Nor, tema de abertura da telenovela “Jogo Duplo”. Foram ainda entregues prémios especiais às atrizes Joana Ribeiro e Catarina Avelar e ao Instituto do Cinema e Audiovisual pelo “um contributo valioso ao desenvolvimento do audiovisual português”. “Esta quarta edição dos Prémios Áquila não teve uma gala mas sim um anúncio dos vencedores, transmitido hoje no canal televisivo Cinemundo”, refere a associação. A Fénix é uma organização cultural independente e sem fins lucrativos fundada em 2014 pelo produtor Vasco Rosa.
Rui Filipe Torres h | Artes, Letras e IdeiasAL BERTO em filme versão pop gay [dropcap style≠'circle']O[/dropcap] filme AL BERTO, do realizador Vicente Alves do Ó, teve estreia comercial a 5 de Outubro de 2018. Um filme é sempre o resultado de duas coisas, o olhar de quem o filma e as condições de produção que o circunscreveram. Este axioma encerra e contém todos as variáveis, equipas artísticas e técnicas, contextos, estéticas e pensamento cinematográfico, distribuição e mercados. Este AL BERTO é o do Vicente Alves do Ó. Na nota biográfica que se pode ler na página da Assírio & Alvim, editora da obra poética do AL BERTO, prémio PEN de poesia em 1987, lê-se : “Poeta e editor português, de nome completo Alberto Raposo Pidwell Tavares, nasceu a 11 de Janeiro de 1948, em Coimbra, e faleceu a 13 de Junho de 1997, em Lisboa. Tendo vivido até à adolescência em Sines, exilou-se, entre 1967 e 1975, em Bruxelas, dedicando-se, entre outras atividades, ao estudo de Belas-Artes. Publicou o primeiro livro dois anos depois de regressar a Portugal. Em mais de vinte anos de actividade literária, a expressão poética assumida por Al Berto, o pseudónimo do autor, distingue-se de qualquer outra experiência contemporânea pela agressividade (lexical, metafórica, da construção do discurso) com que responde à disforia que cerca todos os passos do homem num universo que lhe é hostil. Trazendo à memória as experiências poéticas de Michaux ou de Rimbaud, é no próprio sofrimento, na sua violenta exaltação, na capacidade de o tornar insuportavelmente presente (nas imagens de uma cidade putrefacta, na obsidiante recorrência da morte e do mal, sob todas as suas formas) que a palavra encontra o seu poder exorcizante, combatendo o mal com o mal. É neste sentido que Ramos Rosa fala de uma “poesia da violência do mundo e da realidade insuportável”: “a opacidade do mal ou a agressividade do mundo é tão intensa que provoca um choque e um desmoronamento geral”, mas “à violência desta destruição responde o poeta com uma violenta negatividade que é uma pulsão de liberdade absoluta, que procura por todos os meios o seu espaço vital.”, sublinhando ainda a forma como esta espécie de “grito de fragilidade extrema e irredutível do ser humano, do seu desamparado infinito, da sua revolta absoluta e sem esperança”, se consubstancia, ao nível do estilo, num ritmo “ofegante, precipitado, como um assalto contínuo feito de palavras tão violentas como instrumentos de guerra” (cf. ROSA, António Ramos – A Parede Azul. Estudos Sobre Poesia e Artes Plásticas, Lisboa, Caminho, 1991, pp. 120-121).” No filme do Vicente Alves do Ó, conhecemos um Al Berto nos anos de 1975, em Sines, regressado do seu exílio em Bruxelas. Importa notar que 1975 é o ano quente, o tempo de maior tensão social e cultural vivido na sociedade portuguesa depois dos anos de convulsão do final da regime Monárquico e implantação da República nos anos de fronteira do séc. XIX para o Séc. XX. O mundo estava ainda dividido em mundo livre, o mundo Ocidental de economia de mercado aberto, e o mundo para lá da “cortina de ferro” , a Europa Oriental e a sua zona de influência , de sistema comunista, mercado planificado e onde o Estado era assumido como um poder de classe, mas naquele caso, a classe dos proletários. Em Portugal sonhava-se as possibilidades do mundo. Sines avançava nos projetos já anteriormente decididos ( Estado Novo) da grande indústria da energia a partir do petróleo. Sines, a vila porto de pesca, vivia novos enxames, gente que chegava das ex-colónias e ali procurava um recomeço de vida, e mão de obra à procura do salário. A Sines chegava também o poeta. A casa apalaçada da sua família tinha, como tantas outras, sido objecto de expropriação. Desabitada, era o lugar ideal para um Maio de 68, não em Paris, mas em Sines. Este é o contexto. O filme mostra um AL BERTO em que o seu capital de transgressão pouco mais parece ser do que o desregramento e o amor homossexual . Poderá a muitos não parecer pouco. Para mim é. Pouco se percebe, para quem não o saiba já, do tempo social e histórico em que a narrativa acontece. Pouco se sabe da profunda sensibilidade estética, do homem que na sua vida e já naquele tempo teve como lugar absoluto a sua obra literária. Por essa altura, 1974/75 escreveu “ À PROCURA DO VENTO NUM JARDIM D’ AGOSTO” , em “atrium” , lê -se: “ luta de sonâmbulos animais sob a chuva, insectos quentes escavam geometrias de baba pelas paredes do quarto, em agonia, incham, explodem contra a límpida lâmina da noite, são resíduos ensanguentados do ritual. na cal viva da memória dorme o corpo. vem lamber-lhe as pálpebras um cão ferido. acorda-o para a inútil deambulação da escrita. abandonado vou pelo caminho de sinuosas cidades, sozinho, procuro o fio de néon que indica a saída. eis a deriva pela insónia de quem se mantem vivo num túnel de noite, os corpos de Alberto e Al berto vergados à coincidência suicidaria das cidades. eis a travessia deste coração de múltiplos nomes: vento, fogo, areia, metamorfose, água, fúria, lucidez, cinzas. ardem cidades, ardem palavras, inocentes chamas que nomeiam amigos, lugares, objectos, arqueologias, arde a paixão no esquecimento de voltar a dialogar com o mundo, arde a língua daquele que perdeu o medo. germinam fluidos mágicos por dentro da matéria contaminada do corpo, os órgão profundos gemem assustados pelo excesso, nunca mais voltámos a encontrar um paraíso. a pausa para respirar não existe, o tempo dos grandes desertos absorveu a seiva dos adolescentes dias. a insónia, essa ferida cor de ferrugem, festeja noctívagas alucinações sobre a pele. no ácido écran das pálpebras acendem-se quartos alugados onde pernoitamos. são enfim brancos esses pedaços de memória onde dávamos abrigo e sossego aos corpos. para sobreviver à noite decidimos perder a memória. cobríamo-nos com musgo seco e amanhecíamos num casulo frio, perdidos no tempo, mas, antes que a memória fosse apenas uma ligeira sensação de dor, registámos inquietantes vozes, caminhámos invisíveis na repetição enigmática das máscaras, dos rostos, dos gestos desfazendo-se em cinza. escutámos o que há de inaudível em nossos corpos. era quase de manhã no fim do cansaço. despertava em nós o vago e trémulo desejo de escrever. … O filme AL BERTO do Vicente Alves do Ó, acontece, propõe-se acontecer no tempo desta escrita, e tem o mérito de nos permitir regressar a ela, de exigir mesmo esse regresso a todo do corpo da escrita do poeta, porque é aí, e só aí, que sentimos o batimento do sangue, o sal das lágrimas, o espanto e o horror do mundo, neste combate em que raramente se passa o estágio de aprendiz ofuscados na euforia das guitarras eléctricas e esparsos fios de mel. Vicente Alves do Ó, é um realizador inteligente, sabe o que quer, sabe onde está. Sabe também que cenas como a vandalização da livraria que coloca no filme não aconteceram. Sabe que a homossexualidade e o comportamento transgressivo da norma sexual é um dado permanente e comum, embora sempre um interdito, no quotidiano das comunidades, sejam rurais ou citadinas, agora ou ontem. Mas a associação direta do artista, da sensibilidade inerente à prática e exercício duro, solitário, feroz, radical, da arte, à homossexualidade, coisa muito vista cá no burgo, é uma falácia, como outras. Ser homossexual não é passaporte para ser poeta, ou cineasta, ou pintor, como evidentemente também não é impeditivo, nem barreira. Hoje, quando passam 20 anos ( o tempo corre veloz) , da morte do Alberto e do Al Berto, SINES vive-o como o seu máximo e justo herói. AL BERTO é património e identidade de SINES, tal como o Festival Músicas do Mundo recentemente distinguido – a 19 de Setembro- pela Plataforma Europeia de Festivais , entre os 715 festivais de todas as áreas artísticas, um dos seis vencedores desse prémio europeu. Ou a excomunhão farisaica de que nos fala Vicente Alves do Ó, de uma vila a expulsar um dos seus habitantes, não tem uma ligação assim tão direta ao real vivido pela comunidade, ou a mentalidade da comunidade mudou totalmente, e o pecador é agora o santo eleito. Inocente também não é colocar o partido comunista português como o agente principal da repressão à liberdade de costumes do poeta. É uma visão, a do realizador, e terá sempre o mérito de trazer à discussão o cinema português e o poeta Al Berto. No filme temos alguns rasgos do imaginário e do real, e em várias sequências estivemos perto de um tratamento com maior profundidade da complexidade do pulsar da realidade social nesse tempo retratado, mas quase sempre, a inquietude e o sonho do mundo, fica reduzida a um registo pop gay. O poeta AL BERTO resiste, foge, como sempre fez, arde no caminho solitário como cometa, resiste consciente da sua efemeridade, foge da tela para a obra, a palavra escrita, onde permanecerá maior e voz singular.