Sofia Margarida Mota Entrevista Eventos MancheteEntrevista | Pedro Lamares, actor Pedro Lamares teve um percurso que passou por múltiplas formas de expressão artística, até que Pessoa o encaminhou para dizer poesia, o que o levou à representação. Todas estas estradas trouxeram o actor até Macau numa viagem que culmina, sábado às 21h, no palco do Teatro D. Pedro V, onde vai recriar o poema “Ode Marítima”, de Álvaro de Campos [dropcap]E[/dropcap]stá em Macau a recitar a “Ode Marítima” de Fernando Pessoa. Como é representar este texto emblemático do Pessoa? A Ode Marítima é aquilo a que chamamos na gíria teatral “um bife”. É um grande naco, e não é pela quantidade de texto. Aliás, eu não o faço de cor, o espectáculo é uma leitura viva e encenada. É um desafio brutal, acho que é, eventualmente, a coisa mais difícil e mais exigente que já disse. O texto pede uma entrega absoluta, não vale a pena dizer aquilo se não estiver disponível a entrar naquela espiral e encontrar a determinada altura o vórtice e alguma linha de trabalho que não seja um desatino total, que não seja só a loucura. Não há outra forma de fazer este espectáculo, sem ser com entrega total. A “Ode Marítima dá cabo de mim, é porrada emocional. Na semana antes de ter este espectáculo normalmente adoeço, fico sem voz. É uma cena psicossomática. O texto tem uma estrutura perfeita, é completamente pessoano; temos todo o delírio do Álvaro de Campos, visceral, mas tens o cérebro do Pessoa permanentemente a actuar sobre aquilo. O texto é tripartido. O primeiro bloco é a instalação, em que ele se senta no cais de pedra numa manhã de Verão e começa a observar o que vai acontecendo, mas ainda numa zona muito pacífica. A segunda parte é a subida em espiral, o delírio absoluto e depois cai a pique de um momento para o outro. O terceiro momento é todo em baixo é toda a reflexão sobre o que aconteceu ali. A primeira vez que disse a Ode, ao trabalhar o texto em casa, há nove anos, sentei-me à noite na mesa da sala com um whisky, um cinzeiro e um maço de cigarros à frente. Comecei a tentar ler o texto para dentro e aquilo é ilegível. Entra-se nas onomatopeias e é impossível, não estava mesmo a conseguir. Quando ia para aí na quarta página, voltei atrás e resolvi começar a dizer o texto em voz alta. Descomprometidamente. Liguei um cronómetro. Percebi que o texto tem exactamente 60 minutos, divididos em três blocos de 20. Sem ter o texto na cabeça, comecei a dizê-lo e entrei naquela espiral. Aliás, como ele diz no texto “o volante começou a girar dentro de mim”. Quando dei por mim, eram duas da manhã e, de repente, tudo começou a surgir com essa lógica muito evidente. Representou Fernando Pessoa no filme “ Filme do Desassossego” de João Botelho. Como foi essa experiência? Morri de medo no início. A minha ligação ao Pessoa vem de muito pequeno. Com treze anos comecei a ler Alberto Caeiro, quando o meu padrasto me ofereceu “O guardador de rebanhos”. Aquilo mudou tudo. Acho que foi isso que me pôs a dizer poesia, foi o dizer poesia que me pôs a estudar teatro. Aquilo condicionou o caminho da minha vida de uma forma definitiva, sem charme e sem romantismos. Fazer o Pessoa no “Filme do Desassossego” era assustador para mim. Além da força que o Pessoa tem na minha vida e, portanto, a responsabilidade natural que isso já me traria, existe todo um imaginário. Toda a gente tem um Pessoa na cabeça, qualquer português tem uma imagem do Pessoa. É um ícone. Corremos o risco de rejeição, como se se tratasse de um corpo estranho. Na altura, tive uma conversa com muito importante com o João Botelho, em que lhe falei desses medos, e ele disse-me: “Não quero fazer um documentário histórico, para isso existe a BBC. Quero fazer um filme, isto é sobre arte. Portanto, tu não vais ser o Fernando Pessoa, vais ser o Sr. Pessoa do ‘Filme do Desassossego’. Constrói”. Aquilo libertou-me completamente, mas não me tirou a responsabilidade. FOTO: Sofia Margarida Mota Tem um espectáculo intitulado “A poesia é uma arma carregada de futuro”. É isso que acha da poesia? Acho, absolutamente. Na arte em geral, e como escolhi a poesia como ferramenta é dessa que vou falar. Não tenho interesse na arte que não desarrume. Não tenho interesse em nenhum movimento artístico que não esteja comprometido com alguma coisa. Uma coisa que é feita só para agradar ou para ser bonita não me interessa como arte. Atenção que eu adoro o belo, sou um esteta. Adoro o belo, adoro pilotar aviões e não há nada mais belo do que estar lá em cima, no cockpit a ver o pôr do sol no Saara. É lindíssimo, mas não é arte. O meu trabalho artístico tem quase sempre um comprometimento, pelo menos com uma ideia de mundo, de pensamento, com uma ideia social que me acompanha. Estas coisas estão juntas. Portanto, o poema do Gabriel Celaya, cujo título dá nome a esse espectáculo, tem exactamente que ver com aquilo em que acredito. Ele diz: “maldigo a arte que é concebida como luxo cultural para os neutrais”. Estamos a falar da palavra. Acha que a palavra escrita está em vias de extinção nesta era digital? Se pensarmos em escrita, como caligrafia, tinta e coisas feitas à mão, ou livros em papel, não sei se em vias de extinção, mas em vias de entrar numa zona residual quase museológica acho que sim, dentro do romantismo. Ainda existem máquinas de escrever, e penas e canetas de tinta permanente, mas ninguém as usa. Eu tenho em casa porque sou um romântico e acho bonito, mas não as uso também. Portanto, acho que, mais cedo ou mais tarde, o objecto livro estaria mais ou menos na mesma dimensão. Eu não leio em livro electrónicos porque não me dá jeito. Gosto de sublinhar e de riscar de dobrar folhas, porque sou arcaico. Mas não tenho nada contra. Não acho que isso seja o fim da escrita. Há ameaças muito mais sérias à escrita e ao pensamento crítico que não sei se os distingo um do outro. Quais? A banalização e o vício do excesso de estímulo. A lógica digital que começa a trabalhar em nós uma ideia de que se não estivermos a ser permanentemente estimulados e se uma coisa não nos agarrar desde o primeiro momento com imensa informação visual sonora etc., nós desistimos dela. Isso sim, acho que é uma coisa que nos vai afastando daquilo que precisamos para ler e que nos vai pondo mais à superfície. A leitura exige de nós outro tipo de exercício mental, outro tipo de contemplação, de atenção e de paciência, de pensamento, de tempo. É muito mais fácil ver um filme do que ler um livro, e por sua vez é muito mais fácil ver uma série do que ver um filme e por sua vez é muito mais fácil ver um vídeo de cinco minutos do que acompanhar uma temporada de uma série. E por aí vamos. Por isso, depois aparecem fenómenos de escrita como uma fotografia e uma frase inspiradora, algo que não demore mais de 30 segundos a ler. Isso para mim ameaça mais a escrita do que o formato digital em si. Não sou conservador, a escrita pode mudar de forma. Mas acho que estamos num processo social que pode pôr em risco, e aí a escrita e a leitura são só a ponta do iceberg. Isso está a pôr em risco a nossa capacidade de questionamento e isso sim, pode ser gravíssimo. Quais são os livros da sua vida? Antes de mais tenho que falar do “Guardador de Rebanhos” do Alberto Caeiro, porque é brutal. Esse estará seguramente entre os livros da minha vida. O “Medo” do Al Berto que foi um livro que literalmente desfiz, a capa já saiu, criou bolhas. O Herberto Hélder, não é um livro, é um autor, mas também tem uma importância brutal. Portanto, se tivesse que escolher um livro diria a “Poesia Completa” porque me reensinou a dizer poesia. Ensinou-me a não trabalhar pela parte racional a não trabalhar só pelo entendimento do texto e pela sua narrativa. Com ele tive de trabalhar com outro lado de mim, com uma sensação de pele e com imagens. Estes três ao nível da poesia terão sido os mais marcantes. Ao nível do romance, coisa bastante óbvias. Marcou-me imenso ler “Os Maias”. A primeira vez que chorei a ler um livro foi a ler “Os Maias”, acabei de o ler e voltei a ler passado um ano. Outro romance que li muitos anos mais tarde e que me marcou imenso, do Sándor Márai, “As velas ardem até ao fim”, é muito duro. Tchekov também me marcou-me muito. O Oscar Wilde também me marcou muito, deixa-me desarrumado. Mas é engraçado que nunca tinha pensado nos livros da minha vida. Acho que o “Ensaio sobre a Cegueira” também seria um dos livros da minha vida. Fala daquilo que pode ser a sociedade em estado de medo ou em estado de crise. Começou nas artes plásticas, ainda andou pelo jazz e, a determinada altura, entrou numa licenciatura em música sacra. Chama-se adolescência. Há aquelas pessoas que na adolescência vão fumar charros ou fazer coisas que os pais não deixam. Eu não tive uma educação católica, portanto, acho que o meu gesto de rebelião aos 18 anos foi estudar música sacra. Tive lá um ano e fui-me embora para estudar teatro. A literatura não faz partes das artes está em humanidades. É uma lógica estranha, deve ter sido escrita pelo Kafka. Depois vais para as tais artes e passas anos a estudar história de arte e algumas técnicas de desenho, pintura e escultura e gravura. Mas acabei por estudar teatro, a profissão dos esquizofrénicos. Como queria ser tanta coisa ao mesmo tempo, decidi fazer algo que me pagam para ser uma coisa diferente de cada vez. Acabou de chegar a Macau. O que gostaria de levar daqui? Na verdade, gostava de ter três experiências: sentir a cidade na sua memória histórica e no confronto entre passado e presente, sem saudosismos bacocos. Gostava de ver o que restou e como as pessoas vivem; tenho alguma curiosidade de ver a parte dos casinos, uma curiosidade exótica. Quero ver aquelas luzes e sentir-me num filme americano dos anos 90. Depois gostava muito de dar um salto ao continente. Passar a fronteira e ir à China de verdade.
Hoje Macau EventosTeatro |CCM à procura de actores para residência artística com encenador de Hong Kong [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]Centro Cultural de Macau está a recrutar actores para integrarem uma residência artística com o prestigiado encenador de Hong Kong Fredric Mao. Em comunicado, o Instituto Cultural (IC) indica que um grupo seleccionado de actores locais vai ter oportunidade de subir ao palco para integrar uma produção profissional especialmente concebida para esta experiência criativa, sob a direcção de Mao, reconhecido tanto como actor como encenador nomeadamente pelos Prémios de Teatro de Hong Kong. As audições com Fredric Mao vão ter lugar nas instalações do CCM de 21 a 23 de Setembro, devendo o espectáculo final subir ao palco um ano depois. O projecto faz parte de uma série de residências que, ao longo dos anos, tem trazido profissionais das artes performativas do exterior para apurar as técnicas artísticas do panorama cultural de Macau, indica o IC. Os interessados podem visitar o ‘site’ do CCM para mais informações.
Miguel Martins h | Artes, Letras e IdeiasBiografias e paradoxos [dropcap style≠‘circle’]B[/dropcap]rando — nalguns momentos de alguns contextos, um actor absolutamente extraordinário — é uma das minhas grandes embirrações, só superado pelos seus discípulos/lacaios Anthony Perkins e James Dean. Suponho que para partilhar da minha posição baste ler a biografia “Brando Unzipped” (“Brando mas pouco”), escrita por Darwin Porter. O actor assinou, em tempos, uma autobiografia, “Songs my mother taught me”, mas, nessa, tudo é revestido por uma sobrecapa de edulcorante cor-de-rosa. Gosto de biografias. À antiga, encomiásticas ou mesmo romanceadas. Quanto a esta nova tendência, desbocada e sem freios, devo confessar que me deixa, muitas vezes, perplexo. Que move estes biógrafos? É que Porter expõe, implacavelmente, o carácter e o comportamento do actor e os efeitos nefastos destes sobre quem o rodeava. A sua homossexualidade frenética, que funcionava a par de uma heterossexualidade ora vingativa ora cosmética, são centrais à análise que realiza. Bem assim, não poupa outras estrelas de Hollywood – a pedofilia de Spencer Tracy ou o masoquismo brutal de James Dean, por exemplo, entre muitos outros homossexuais encapotados, chocará quantos, ao longo de décadas, abrigaram os seus sonhos burgueses à sombra das mistificações dos grandes estúdios. O “closet” de Rock Hudson é, à luz do que é exposto nesta obra, algo de absolutamente trivial, embora o mal-estar que isso lhe causava fosse tanto que lhe provocou um tique que lhe destruía, continuadamente, a unha do polegar direito. Outras biografias têm revelado factos deste teor: Em “De Niro: a biography”, por exemplo, John Baxter expôs a homossexualidade do pai do actor, o pintor e escultor Robert De Niro, Sr., que chegou a ter um envolvimento amoroso com o enorme Jackson Pollock. Aliás, recentemente, De Niro filho assumiu o facto, com toda a naturalidade, acrescentando que teria gostado de discutir o assunto com o seu progenitor. “Ginsberg: A Biography”, de Barry Miles, entre muitos outros factos potencialmente chocantes, aborda as relações sexuais entre o escritor beat e o irmão mais novo, deficiente mental, do seu namorado. Ao escrever estas linhas, ando a ler uma espécie de autobiografia do romeno Ion Pacepa, responsável pelos serviços secretos de Nicolae Ceaușescu, em que a homossexualidade de Yasser Arafat é revelada. Repito: Que move estes biógrafos? No caso do último livro referido, trata-se, claramente, de um ajuste de contas. Mas, quanto aos demais, os seus autores são, supostamente, admiradores dos biografados. E, contudo, parecem achar por bem expor factos que os mesmos preferiram não publicitar. Porquê? Guiá-los-á uma espécie de moralismo? Se sim, parece-me altamente imoral (como, aliás, os moralismos quase sempre são). Ou estarei a complicar o que é simples e o objectivo dessas manobras será, simplesmente, vender livros, ganhar dinheirinho, à custa da privacidade alheia? Depois destas leituras, como é bom regressar a qualquer uma das vibrantes biografias que saíram da pena de Stefan Zweig e de que fui grande leitor na adolescência. A de Erasmo de Roterdão ou a de Fernão de Magalhães, por exemplo. Ou, até, à extensa e imaginativa biografia de Camões assinada por Campos Júnior. Não há verdade que valha uma boa estória. Em minha defesa, devo dizer que nada de pessoal me move contra os referidos biógrafos. Aliás, Darwin Porter assina, com Danforth Prince, a 17ª edição (2002) do guia turístico Frommer’s relativo a Portugal e aí, a propósito de um bar que tive no Bairro Alto, afirma (e prefiro não traduzir): You don’t have to be an avid reader to enjoy this place, but the breadth and scope of literary knowledge that has been mastered by its owner might leave you deeply impressed. Miguel Martins, who’s usually tending the bar, teaches courses (…) on the history of Jazz, and welcomes everyone – from the most conservative to the most counterculture of hipsters – into his nightlife joint. Simpático. Confesso que me dá algum prazer ver-me referido em letra impressa. Apercebi-me disso bem cedo – teria uns dezasseis anos quando o South Shore Chronicle, um jornal da Nova Inglaterra, publicou uma série de artigos sobre Lisboa em que me era dado algum destaque, pois servia de guia ao jornalista, o meu amigo Leo Pilachowski. Ganhei-lhe o gosto. Bem mais divertida é a biografia do grande Robert Mitchum assinada por Lee Server e subintitulada “Baby, I don’t care”. Permito-me contar-vos dois dos episódios aí relatados: Numa entrevista, a dado momento, perguntam a Mitchum, actor da “velha guarda”, sem grandes preocupações metodológicas, acerca dos seus “registos”. Sendo que boa parte da sua carreira fora dedicada aos westerns, ele responde: “Como actor, tenho dois registos: com cavalo e sem cavalo”. Um outro episódio, de graça dificilmente traduzível, ocorreu quando Mitchum se preparava para contracenar com uma actriz muito religiosa e extremamente avessa a palavrões. Constrangido, um membro da produção abordou o actor, conhecido por praguejar muitíssimo: — Senhor Mitchum, ela instituiu uma espécie de caixa de esmolas. Se alguém disser merda tem de meter lá um dólar. Se disser porra, dois dólares. O actor interrompeu-o, perguntando: — And how much does she charge for a fuck?
Paulo José Miranda Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasCarla Maciel: “Adoro o que faço. Sou uma privilegiada” Carla Maciel [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á vinte anos que vens trabalhando em teatro, cinema e televisão. Imagino que exijam esforços e técnicas diferentes. Podes explicar-nos quais as maiores diferenças que encontras nesses diferentes modos de se ser actriz? E tens alguma preferência por um deles? E a tua preferência foi mudando ao longo dos anos, ou sempre se manteve a mesma? O meu pai era um apaixonado pela música e em criança comecei juntamente com ele a aprender a cantar e tocar guitarra. Durante a infância e a juventude a música e a dança ocupavam a maior parte do meu tempo. Até que aos 17 anos entrei numa escola de teatro no Porto. Tive o privilégio de ter um enorme background do que poderia ser este universo tão fascinante e ao mesmo tempo tão assustador. O teatro apareceu de uma forma espontânea. Não tenho preferências. Adoro o que faço. Sou uma privilegiada . Gosto de fazer de tudo um pouco. Depende muito das fases e do trabalho que aparecer. Até agora tem sido muito equilibrado mas confesso que o cinema tem sido a linguagem que menos tenho trabalhado. Há sempre alguns personagens que marcam mais as actrizes, quais foram os personagens que mais te marcaram até hoje? E por quê? Fiz muitos personagens ao longo da minha carreira. Passei por várias companhias desde o Porto até chegar a Lisboa e tive a sorte de interpretar grandes personagens. Houve uma personagem que dada a exigência de transformação me deu muito gozo fazer, uma velha alentejana (inspirada na minha avó) no Teatro Meridional. O espectáculo chama-se Amanhã, de José Luis Peixoto. Nos últimos anos a Madame Bovary, de Gustave Flaubert, tão inteligentemente encenada pelo Tiago Rodrigues; e Albertine, a partir de Marcel Proust, e tão brilhantemente escrita e encenada pelo Gonçalo Waddington. Em televisão também tive a sorte de fazer bons papéis. De há uns anos a esta parte tens trabalhado com o teu marido, o Gonçalo Waddington, há algumas desvantagens em levarem o trabalho juntos para casa, ou são só vantagens? A minha parceria com o Gonçalo nasceu instintivamente. Conhecemo-nos e ambos tínhamos um percurso artístico e objectivos semelhantes. À medida que fomos crescendo e amadurecendo, fomos conciliando os nossos sonhos sempre com a nossa vida pessoal. Claro que traz desvantagens e riscos, adoramos debater, somos os dois muito activos mas sempre com espírito de equipa, de colectivo, pelo respeito mútuo na discussão das ideias. Juntar o útil ao agradável e porque não? Dois casamentos numa única lógica. Respeito, cumplicidade, e muito amor pelo que fazemos. Uma outra actividade à qual tens emprestado o teu tempo é o da leitura de textos literários. Embora hoje não seja uma actividade exclusiva de actores – há, aliás, cada vez mais não actores a fazerem leituras –, os actores fazem-nos melhor? Comecei a ler muito tarde. Sou uma auto didacta. À medida que ia trabalhando com encenadores e colegas, fui escutando e absorvendo informação. Nomeadamente livros que eram bases importantes para o entendimento do próprio espectáculo. Com os anos comecei a sentir falhas estruturais, senti que precisava de ler os clássicos por exemplo, os filósofos, a poesia e por aí adiante. Qualquer pessoa que lê muito, sabe ler um texto. Claro que os actores têm mais facilidade, talvez pela colocação da voz, alguma interpretação e talvez um maior à vontade. Mas depende dos textos. Qual achas que está mais pujante hoje, em Portugal, o teatro ou o cinema? Penso que ambos estão pujantes. O cinema tem dado provas que cada vez mais há novos realizadores e de qualidade. Neste momento encontram-se um grande número de curtas e longas metragens fora do país, em festivais, a mostrar que o nosso cinema português apesar das dificuldades existentes ainda tem cinema de excelência. Estreou recentemente o filme do Marco Martins, São Jorge, que é a prova disso. Em relação ao teatro existe cada vez mais criadores, estão a nascer novas companhias, e os teatros, que têm vindo a criar diferentes dinâmicas para que o público consiga ter opção de escolha do teatro que pretende ver, apresentam-nos cada um a sua linguagem, trabalhando cada um deles para públicos diferentes. Considero que estamos no bom caminho. Apesar das dificuldades sentidas temos de ser perseverantes e exigentes continuando a mostrar o quanto a cultura é essencial. Nunca desistir. Que projectos para este ano? Este ano entro como actriz na segunda parte de uma tetralogia escrita e encenada pelo Gonçalo Waddington, O Nosso Desporto Preferido – futuro distante, com estreia em Abril no Teatro Municipal São Luiz. E em Novembro junto-me á actriz Teresa Sobral para criarmos um espectáculo com um texto do Gonçalo M. Tavares que tem estreia prevista para Janeiro de 2018. O ano ainda se preenche com um mestrado de teatro, ser mãe intensivamente, leituras e o que imprevisivelmente aparecer.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasAlbertine, o Continente Celeste, de Gonçalo Waddington [dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]onçalo Waddington acaba de editar uma nova peça de teatro, O Nosso Desporto Preferido Presente, na Abysmo, mas no início de 2015 saía na mesma editora Albertine, O Continente Celeste, livro que iremos ver aqui hoje. Esta peça de Gonçalo Waddington, composta em três actos, cruza a mecânica quântica e a teoria da relatividade com a obra de Marcel Proust, Em Busca Do Tempo Perdido, ou, como escreve o escritor Valério Romão no posfácio que acompanha esta edição da Abysmo: “(…) uma fatia do tempo perdido, [e não o todo da obra] através da qual se faz a arqueologia da narrativa de Proust (…)”. Mas para além das relações cruzadas entre o tempo de Proust e o tempo das ciências do micro e do macro cosmos, aquilo que primeiro salta à vista é a ligação deste texto com os da tragédia grega. Em que sentido? No sentido da tradição, no sentido da mitologia, isto é, no sentido em que Gonçalo Wadddington toma a obra de Marcel Proust do modo que os tragediógrafos tomavam a tradição mitológica. Através da obra de Proust, Waddigton cria uma peça de teatro; através da mitologia da Hélada, os tragediógrafos criavam as suas tragédias. A fala de Marcel a Albertine, no segundo acto, abre a possibilidade de a “tradição” de Proust ser revisitada, de se escreverem outras peças, outras tragédias acerca deste corpo de mitos que é, agora, o a obra de Proust: “Mas não é para isso que serve esta soirée, minha querida. Se quiseres podemos combinar uma outra noite com essa temática.” (p. 53) Não é, contudo, somente esta relação transversal com a tragédia grega que encontramos como diálogo estabelecido com a tradição teatral. Há também, e aqui sem dúvida incontestavelmente consciente por parte do autor, uma apropriação, em alguns momentos da peça, dos artifícios técnicos usados por Pirandello em algumas das suas mais conhecidas peças, como sejam o caso de Esta Noite Improvisa-se e Seis Personagens Em Busca De Um Autor. Principalmente na primeira das obras citadas, que começa com o encenador no palco falando aos espectadores, antes do início da peça (aqui, em Waddington, o efeito aparece através do Anfitrião, que se dirige a nós leitores antes de entrarmos na peça propriamente dita); e, depois da fala do Anfitrião, a espera dos autores no palco pela entrada do público. Mas ao longo da peça, encontramos nos diálogos entre Marcel e Albertine um desacordo em relação ao que cada um deveria dizer, em relação ao que estaria ou não escrito pelo autor, mas que os actores deturpam ou improvisam, deixando isso inteiramente a claro. Veja-se à página 40, a fala de Marcel para Albertine: “Mas não é isso que está escrito.”, Ao que responde Albertine com: “É sim.” Ou à página 48, também em uma fala de Marcel: “Eu não escrevi nada disso.” Ao que Albertine replica, na página seguinte, com: “Pois não. Não assim. Mas as memóórias enganam.” O que nos leva a ver que, se por um lado o artifício técnico é o do grande escritor siciliano, por outro serve aqui propósitos diferentes. Não se trata propriamente do autor da peça, a que as personagens se referem, como em Pirandello, mas ao inventado autor personagem Marcel (Proust). E se em Pirandello o jogo de sombras e luz, através da verdade e da mentira, são o grande leitmotiv da pergunta pela realidade, aqui nesta peça de Gonçalo Waddington é a memória e a sua natureza de criação e recriação da realidade passada, do acontecido, que está em causa, que arde na noite. Por outro lado, a mecânica quântica ou a teoria da relatividade, a teoria das cordas, os buracos negros, os buracos de minhoca, a anti-matéria acabam por aparecer para nós um universo tão paralelo como o universo de Proust, na sua obra, fazendo com que a memória, aquilo que constrói e desconstrói o acontecido, seja um instrumento quântico de alcance de nós e dos nossos actos; um instrumento quântico que, à imagem do princípio de incerteza de Heisenberg, não nos permite certeza nenhuma acerca do acontecido, daquilo que acontece. Não há certeza acerca de nada do que se fez ou fizemos, colocando a obra de Proust numa dimensão ainda mais problemática do que a que ela já tinha antes do início desta peça. A posição de Waddigton face à obra de Proust, ao invés de lhe dar uma mão de coerência, de linearidade, aumenta-lhe a entropia, termo fundamental para a leitura desta peça. “(…) a entropia é a tendência para a desorganização” (p. 27); “A tendência, com o passar do tempo, é para a desorganização” (Ibidem) Assim, também toda e qualquer interpretação da obra de Proust, naturalmente exposta à entropia, ao passar do tempo, aumenta-lhe a desorganização, abre brechas nas paredes das páginas, socalcos nos parágrafos; aumentam também os resíduos, o lixo, que cada vez mais nos impede de ver o quarto limpo que Proust escreveu. A chave com que se abre esta peça, que nos permite entrar no mundo de Gonçalo Waddigton, encontra-se nesta surpreendente e bela passagem, à página 29, na cena 5 do primeiro acto, em um monólogo de Marcel: “(…) warmholes (…) um túnel, ou atalho, que junta dois pontos distantes no espaço-tempo. O equivalente às madalenas embebidas em chá, no meu universo.” A existirem, os buracos de minhoca, permitir-nos-ia viajar no tempo e encurtar espaços, por conseguinte, viajar a paragens do universo às quais jamais poderíamos ir, sem esse artifício. Também é assim a memória. Ela faz-nos não só viajar no tempo, como também nos faz viajar no espaço, no sentido em que nos projectamos aos lugares que de algum modo carregamos na memória. Mas aquilo que parece interessar mais, a Gonçalo Waddigton, acerca da memória é o efeito de criação que ela mesma tem. A memória não é apenas um artifício de recolha de informação, de nos lembrarmos do que aconteceu ou do que aprendemos, ela em si mesma, nesse seu modus operandi de retorno, recria a realidade do acontecido. Como textualmente se pode ler na fala de Albertine, à página 49: “(…) Mas as memórias enganam. Fundem-se como buracos negros e tornam-se uma só. Não respeitam as regras espácio-temporais. Cada memória que fabricamos, mais uma memória que engavetamos, mais uma peça para o puzzle-eu, maior a entropia da nossa singularidade [e não esquecer a passagem já aqui citada, acima, “(…) a entropia é a tendência para a desorganização” (p. 27); “A tendência, com o passar do tempo, é para a desorganização” (Ibidem)]. O destaque anterior é de minha responsabilidade. É nesta capacidade de fabricarmos memória, que reside a nossa identidade. A identidade de cada um de nós vai sendo fabricada à medida que também fabricamos as memórias. Nem todas as memórias são fabricadas, evidentemente, mas só essas importam à identidade, só essas importam àquilo que vamos fazendo de nós mesmos. Assim, contrariamente à canção antiga, que dizia que recordar é viver, em Albertine, O Continente Celeste, criar é viver. Vive-se criando o nosso presente, no passado que fomos. Por outro lado, e nas relações estabelecidas na obra entre memória e mecânica quântica, tudo o que se cria, pelo passado que fomos, passa também a existir. Aquilo que alteramos no presente, e em relação ao passado, passa realmente a existir, mesmo que antes não tivesse existido. Veja-se a passagem, já no acto final, à página 61: “Em todos os mundos, ao invés de acontecer um colapso, como na interpretação de Copenhagen, no momento em que levanto a mão direita, há um split, uma divisão. E dois mundos-universos passam a coexistir, como linhas paralelas que nunca se tocam.” O acontecido e o fabricado em relação ao acontecido coexistem em todos os tempos, como aparece no poema final do livro, à página 63: “Em todos os mundos Albertine continua a tocar As minhas sonatas preferidas Na pianola do meu quarto. E a acariciar-me, Como eu quero, Às horas que eu quero. Albertine fica trancada no seu quarto, Quando eu quero, sempre que eu quero. Albertine, Albertine, De split, em split, em split” Mas há também nesta peça, e como não poderia deixar de ser, já que dentro do universo de Proust, o problema das relações humanas, em particular a da relação entre Marcel e Albertine (no segundo acto, apenas), mas que pode ser extensa às relações entre qualquer um de nós, em uma relação amorosa ou, melhor dito, nesse lugar peculiar que é o “depois do fim de uma relação amorosa”, como à página 52: “Porque é que nunca te casaste comigo? Porque é que não respondeste aos meus telegramas?” Ou à página 58: “Porque é que não me salvaste?” Ou ainda o tão conhecido “Achas que nós poderíamos ter ficado juntos?” (Ibidem) Albertine, O Continente Celeste mostra-nos um autor com um mundo próprio, reflexivo e que estabelece um diálogo com várias tradições, sem deixar de expor a fragilidade humana, que levanta voo com o desejo e a criação do amor.