Rui Flores VozesA válvula de escape [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] libra esterlina encontra-se em mínimos históricos. Os bancos internacionais que durante anos tiveram as suas sedes europeias em Londres estão a anunciar a saída do Reino Unido até ao final do ano, não esperando pela invocação do artigo 50.° do Tratado da União Europeia pelo governo britânico. A responsável pelo governo escocês já anunciou que a Escócia vai preparar-se para um novo referendo sobre a independência. As consequências iniciais da recuperação da soberania nacional britânica em relação a Bruxelas parecem ser desastrosas. As perspectivas de dias mais risonhos não parecem convencer muitos. Pelo menos por ora, enquanto as consequências financeiras continuarem a afectar o bolso dos britânicos que estão a ver o seu poder de comprar diminuir ao ritmo da desvalorização da sua divisa. As sondagens mostram que o número de eleitores que se encontram arrependidos por terem votado “leave” no referendo de 23 de Junho seria suficiente para ter dado a vitória ao campo do “remain”. Isto tudo além do “vox populi”, dito por vários britânicos, meio a sério, meio a brincar, de que nunca o termo “União Europeia” foi tão pesquisado quanto na noite em que foram anunciados os resultados do referendo. Que ninguém parece ter alguma vez pensado em todas as consequências do Brexit é um dado adquirido. Havia umas suposições. Supunha-se que a libra pudesse flutuar mais do que quando a Grã-Bretanha estava dentro da União Europeia, embora nunca tenha adoptado o euro como divisa nem tenha aderido ao espaço Schengen, expressão máxima da livre circulação de pessoas no interior das fronteiras da União Europeia. Mas a possibilidade da desvalorização da libra seria algo, pois, que precisaria de ser confirmado pela realidade dos factos. Supunha-se que a União Europeia não aceitaria que um futuro acordo de comércio livre entre o Reino Unido e a União não contemplasse a livre circulação de pessoas. Mas isso poderia ser discutido. Negociado. Em política nada é certo, embora o acordo que existe entre a União e a EFTA (Associação Europeia de Comércio Livre, composto pelo Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça), tenha como uma das suas premissas a livre circulação de pessoas entre os quatro estados e a União. Alias, a intransigência dos suíços em relação à circulação de pessoas levou a que as negociações com a União Europeia se prolongasse por 20 anos. E só foi desbloqueado depois de as autoridades helvéticas terem aberto as portas à entrada de estrangeiros sem restrições. Ainda assim, supunha-se que a Grã-Bretanha conseguiria travar a imigração de europeus. E isso seria um dado positivo, pois os britânicos haveriam de ter recuperado a sua soberania. Quatro meses passados sob o referendo que ditou a saída do Reino Unido da União Europeia, os vários sinais que saem de Londres apontam num só sentido. Ninguém sabe muito bem como se vai processar a retirada do Reino Unido. À cabeça de todos os responsáveis britânicos, Theresa May – para quem Brexit alegadamente “significa Brexit”, como ela disse quando substituiu David Cameron na chefia do governo – não parece estar particularmente empenhada numa solução rápida. Anunciou para Março a invocação do artigo 50.° do Tratado da União Europeia, mas o conteúdo da proposta da futura relação com o bloco europeu não é nada clara. Aliás, caso não cumpra a promessa de iniciar formalmente negociações com Bruxelas até Março qual será a consequência desse incumprimento? Se do ponto de vista politico, tudo indica que Theresa May está longe de ter definido o que será o conteúdo da proposta da futura relação do Reino Unido com a União Europeia, do ponto de vista institucional sucedem-se as vozes que pedem que seja o parlamento britânico a ter a palavra final no conteúdo do novo acordo a estabelecer com Bruxelas. A justiça britânica já foi chamada a tomar posição, determinando qual deverá ser o papel destinado ao parlamento em todo este processo. Enquanto o caso aguarda superior decisão pela justiça britânica, durante este fim-de-semana o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair veio contribuir um pouco mais para a confusão. Segundo Blair, a Grã-Bretanha deve manter as suas opções abertas sobre o Brexit, o que é como quem diz “devemos considerar a possibilidade de não avançar com a saída do bloco europeu”. Como o parlamento britânico deve ser soberano em matéria de relações externas, dizem muitos juristas, estaria encontrada uma porta de saída para o imbróglio do Brexit. Blair veio dizer o que muitos pensam. A angústia sobre a futura relação da Grã-Bretanha agravou-se esta semana com as dificuldades colocadas pela Valónia, região belga com pouco mais de três milhões de habitantes, governo e parlamentos próprios, em aceitar o acordo de comércio livre com o Canadá – um documento com mais de 1600 páginas negociado entre Bruxelas e Otava nos últimos sete anos. As dificuldades colocadas pela Valónia estão a ser interpretadas em Londres como um sinal dos inúmeros trabalhos que o Reino Unido ainda vai ter de superar para consumar o seu divórcio com o clube dos 28. É que a seguir a qualquer acordo estabelecido com Bruxelas, os termos da relação futura entre britânicos e a Europa a 27 vão ter de ser ratificados por pelo menos 38 dos parlamentos nacionais e regionais da Europa. E poderão nessa altura surgir outras Valónias. E depois há outras feridas pelas quais poderá ainda brotar muito sangue. Feridas anunciadas como o novo referendo sobre a independência da Escócia. Tudo consequências muito pesadas para quem queria ver restaurada a sua soberania nacional.