A última garrafa (num consultório privado)

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]OUTOR: Pode até ser.

(silêncio)

 

RAUL: Pode até ser, o quê? O comprimido ou o livro?

 

DOUTOR: Ambos. Ambos, meu amigo. Diga-me uma coisa, você já contou essa sua doença a alguém, para além de mim?

 

RAUL: Claro que não, doutor. Não sou doido.

 

DOUTOR: Claro que não. Precisava apenas de me certificar.

 

RAUL: Porque pergunta isso?

 

DOUTOR: Por nada. Curiosidade apenas.

 

RAUL: (sorrindo) Parece que o doutor começa a estar bastante interessado no meu caso.

 

DOUTOR: Efectivamente, estou.

 

RAUL: Olhe, porque é que não fazemos um negócio?

 

DOUTOR: Como assim?!

 

RAUL: O doutor dá-me o comprimido e eu conto-lhe tudo acerca da minha doença, para que possa escrevê-la, logo assim que eu morra. E escreve como se não se tratasse de um caso real, mas fictício ou filosófico, como queira. Está a ver?

 

DOUTOR: Está doido, homem? Não quero escrever nenhum livro, nem sequer seria possível escapar de tal situação. Ou você julga que pode ir para casa e tomar o comprimido na sua cama? Não! É preciso que esteja num hospital ou numa clínica e seja acompanhado por um médico que se responsabilize por todo o processo, que neste caso seria eu. Depois, obviamente, o seu caso teria também de ser reconhecido pelos outros médicos.

 

RAUL: Não me pode dar o comprimido, simplesmente? Ninguém precisava de saber.

 

DOUTOR: Como não? Assim que o encontrassem morto, vinham imediatamente aqui.

 

RAUL: Mas ninguém sabe que aqui vim!

 

DOUTOR: Como não?! Você está registado…

 

RAUL: Não é difícil fazer desaparecer uma ficha médica, doutor.

 

DOUTOR: Então e o que fazemos à enfermeira? Matamo-la?

 

RAUL: Ela não se vai lembrar, doutor. Entra tanta gente aqui no consultório.

 

DOUTOR: Claro que se vai lembrar. Você não é pessoa que passe despercebida. Mais a mais para uma mulher. Nem pense nisso. Vou esquecer que me fez essa proposta.

 

(silêncio)

 

DOUTOR: Deve ter sido a primeira vez que tentou algo de ilegal, não? Ainda vai acabar por começar a viver, homem. Se continua assim…

 

RAUL: O meu problema não é moral, doutor. Se não parar de pensar desse modo, estamos aqui a perder o nosso tempo. Crê que não é possível fazer com que a enfermeira não se lembre de mim?

 

DOUTOR: Suborno, quer você dizer?

 

RAUL: Por exemplo.

 

DOUTOR: A continuar assim ainda acaba mas é no governo, homem. Está mesmo a falar a sério?

 

RAUL: Doutor, pareço-lhe homem para brincadeiras?

 

DOUTOR: De qualquer modo, ainda que fosse possível, seria muito fácil saber-se que o comprimido saiu daqui.

 

RAUL: Porquê?

 

DOUTOR: Porque há registos de todos estes comprimidos. A polícia começaria a investigação imediatamente por aí. E como é que você quer que eu lhes explique a falta de um dos comprimidos.

 

RAUL: Roubo.

 

DOUTOR: Roubo? E assaltavam-me o consultório para levar um comprimido?

 

RAUL: Porque não? Você até poderia corroborar a hipótese de eu ser um caso obsessivo, que tinha tentado tudo para que me desse o comprimido, que você rejeitou peremptoriamente. E até me tinha sugerido um amigo psiquiatra.

 

DOUTOR: Então já não precisamos de omitir a consulta?

 

RAUL: Não! Está a ver, só traz vantagens. Já não é necessário a cumplicidade da enfermeira.

 

DOUTOR: E como é que você entrava aqui?

 

RAUL: Não é difícil, doutor. Provavelmente o prédio não tem segurança. E assaltos é o  que se vê mais por aí, doutor! Mais assalto, menos assalto, não faz muita diferença. Não é necessário muita explicação.

 

DOUTOR: De qualquer modo, tinha de existir um arrombamento, por certo.

 

RAUL: Também não é difícil.

 

DOUTOR: Deixe-me perguntar-lhe uma coisa, que julgo que está a esquecer. Como é que você iria saber quais eram os comprimidos e onde estavam?

 

(silêncio)

 

RAUL: Pois essa parte já é mais difícil.

 

DOUTOR: Esqueça isso, homem. E, para além do mais, não estou interessado na contrapartida do negócio.

 

RAUL: Não quer escrever sobre o caso?

 

DOUTOR: Talvez queira, mas como facto da medicina e não como ficção ou o que quer que seja. Começo, de facto, a acreditar que a sua doença é real, percebe?

 

RAUL: Quer, portanto, manter-me vivo, é o que é. Estudar-me.

 

DOUTOR: Se quiser pôr as coisas desse modo.

 

RAUL: Eu não quero pô-las desse modo, doutor. Já lhe disse que não tenho tempo. Não me faltava mais nada! Além do que sofro, transformar-me em cobaia.

 

DOUTOR: Mas parece que não tem muitas outras alternativas.

 

(silêncio e o doutor serve mais whisky)

 

RAUL: Escute, doutor. Desculpe voltar ao assunto. E se você dissesse à polícia que eu cheguei aqui armado e que, depois da enfermeira ter saído, o ameacei com uma arma para obter o comprimido. Você nada pôde fazer, senão entregá-lo. Assim que sair daqui, telefona imediatamente à polícia a participar o roubo e dá-lhe todos os meus dados, que estão na ficha, de modo a que eles possam intervir e impedir que use o comprimido. Está a ver? Uma coisa limpinha. Nem você se compromete, nem eu saio daqui sem o comprimido.

 

DOUTOR: Mas seria necessário que a polícia encontrasse essa tal arma em sua casa. E não me vou arriscar a que você diga que sim e, depois, não há arma nenhuma. Quem se lixa sou eu. Compreende?

 

RAUL: Podia ser uma faca! Trazia uma faca grande de cozinha comigo. Não vai duvidar de que tenho uma, pois não?

 

DOUTOR: E se me pedem para descrever a faca, o que é que faço?

 

RAUL: É fácil, doutor. Se quiser descrevo-lha ou, então, diz muito simplesmente que perante a surpresa e o medo nem sequer reparou nas características da faca. Que me diz?

 

DOUTOR: Digo-lhe que começo a ter medo de si, é o que lhe digo. Porque você não desiste, realmente.

 

RAUL: Se o doutor soubesse o que sofro não estranharia a minha insistência. Peço-lhe apenas um pouco de piedade, doutor, por favor.

 

DOUTOR: É impressionante a mente pragmática que você tem!

 

RAUL: É a dor que me traz todo este pragmatismo, doutor.

 

DOUTOR: Responda-me com toda a sinceridade. Estaria disposto a matar, por esse comprimido?

 

RAUL: Não lhe posso responder a essa pergunta, doutor. Nunca sabemos aquilo de que somos ou não capazes de fazer. Mas posso dizer-lhe que estou disposto a quase tudo para morrer.

 

(o telemóvel toca novamente)

 

16 Jan 2018

A última garrafa (Num consultório privado)

[dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]AUL: Então o que é que está em causa, doutor?

DOUTOR: Remédio. O que está em causa é o remédio. Os outros encontram-no e você não. É isto que está em causa.

RAUL: Não é que não tenha tentado.

DOUTOR: Será?

RAUL: Porque dúvida? Julga que…

DOUTOR: Se quer mesmo saber, você parece-me demasiado decente para ter remédio. Para se ter realmente esforçado em encontrar um.

RAUL: Não estou a compreender.

DOUTOR: Está. Não quer é compreender, que é diferente. Meu amigo, você não tem qualquer problema com a vida. Você não tem é vida. Vive, tem responsabilidades, como já disse, mas, no fundo, está à parte dela. Em relação à vida, você está de fora. Porque não se quer sujar. Não é possível viver e não se sujar. Há que casar, há que trair, há que ser encornado, há que conspirar, aqui e ali, contra este ou aquele, há que dizer mal. Sou capaz de jurar que você nunca ganhou sequer um escudo ilícito. Isso não é viver. Você trabalha em contabilidade, já alguma vez se enganou propositadamente?

RAUL: Julgo que o doutor está a confundir a vida com o mundo.

DOUTOR: Estou? E qual é a diferença, é capaz de me dizer?

RAUL: O mundo é o mundo, a vida é a vida. São palavras diferentes. E as palavras devem ter alguma razão.

DOUTOR: Pois para resposta não está mal. Fica-se na mesma.

RAUL: Olhe, posso dizer-lhe que o mundo não me dói, e a vida sim. O que se passa no mundo, o que as pessoas fazem, não me causa o menor abalo. Mas a vida é-me insuportável. Falava em decência, mas julga que me importa a fome que há no mundo, as guerras que o estão a destruir? Julga que me importa a miséria nas ruas, a violência, a droga? Nada disto me causa o menor abalo, doutor. Mas a vida dói-me.

DOUTOR: E importa-lhe a miséria que habita cada um de nós, sem excepção?

RAUL: Não, doutor. Porque isso é luxo que eu não tenho. Preocupar-se pela miséria do ser humano é um luxo. Como também é um luxo não se preocupar com nada, viver constantemente em diversão. Infelizmente, não me posso dar a esses luxos, porque a vida dói-me muito, doutor.

(silêncio e, entretanto, o doutor serve mais whisky)

RAUL: Obrigado.

DOUTOR: No fundo, o que me está a dizer é que não é humano.

RAUL: Talvez, doutor. A minha doença não me permite sê-lo. Mas não esqueça que essa ideia de humano é formada por os que não estão doentes. Talvez para os sãos, os que adoecem e recuperam, os irrecuperáveis não sejam humanos. Já pensou nisso?

DOUTOR: Não, ainda não tinha pensado nisso. Talvez tenha razão. Talvez seja necessário pensarmos de novo o que é ser humano.

RAUL: Talvez, doutor.

DOUTOR: Por outro lado, pensar que algum dia se irá aceitar a doença como parte integrante do humano é ingenuidade. A doença é um intervalo na vida.

RAUL: Na vida, não, doutor. A vida também pode ser uma doença, como pode constatar por mim.

DOUTOR: Talvez então a doença seja um intervalo na existência, um intervalo no modo como se entende o mundo. (com ar de ausência) Sim, talvez seja mais isso. (regressando do seu curto estado de ausência) Mas está agora a compreender melhor o ódio que se tem aos médicos, não?

RAUL: Sim… Até onde me pode ser possível, porque não tenho muita experiência acerca disso.

DOUTOR: De qualquer modo, não diga ainda que eu constato a sua doença. Vamos tentar. Mas até agora…

RAUL: Quer dizer que ainda continua a não acreditar no que lhe digo.

DOUTOR: Não se trata disso, homem! Antes de mais acredito que não me está a mentir. Depois também acredito que me está a relatar algo que, embora estranho, não parece destituído de sentido. Ou você julga que se o julgasse doido ainda estava aqui a ouvi-lo? Pode não parecer, mas tenho mais que fazer. (pausa) Preciso é de compreender, percebe?

RAUL: Perceber, percebo, doutor. Mas o problema é que julgo que está a ir pelo lado errado. Isto não se compreende.

DOUTOR: A ser assim, estamos mal. Mas, seja como for, se conseguir compreender que não se compreende já é alguma coisa.

RAUL: E, para isso, precisa de tempo.

DOUTOR: Exactamente! Tempo.

RAUL: Está a sugerir que venha aqui com regularidade e, de cada vez, passemos uma ou duas horas a conversar até que possa compreender que não compreende? E, entretanto, continuo a sofrer.

DOUTOR: Bem, meu amigo, convenhamos que não lhe restam muitas outras saídas. Por um lado, você não se quer matar e, por outro, eu também não o mato. Não o mato é como quem diz, não lhe dou o comprimido que necessita para morrer em paz. (não deixando de falar, levanta-se e dirigi-se à estante com livros) Não vamos estar com ilusões. Qual era o médico que estaria interessado em compreender o seu problema e em ajudá-lo? Enviava-o para a psiquiatria ou, no melhor dos casos, para a neurologia e já estava. Passava a bola a outro, está a ver? Mas eu não. Eu quero realmente compreendê-lo. Quero compreender o que se está a passar consigo. Não me parece que tenha muitas alternativas, amigo. De qualquer modo, se quiser, se assim o entender pode procurar outro médico. Está à vontade para o fazer. Aliás, uma segunda ou terceira opinião será sempre melhor.

RAUL: Doutor, eu não quero opiniões, quero um comprimido. Quero morrer, doutor. Agora diga-me com sinceridade. Julga que tenho realmente hipóteses de receber esse comprimido, ou não?

(regressa à mesa com um livro na mão e pousa-o sobre a mesa)

DOUTOR: Vamos a ver. Vamos a ver.

RAUL: O problema, doutor, é que não tenho muito tempo. Não quero continuar a sofrer mais, nem quero morrer coberto de dores.

DOUTOR: Calma, amigo, não desespere! Para já, isto vai bem encaminhado.

RAUL: Isto o quê, doutor?

DOUTOR: O seu pedido.

RAUL: Vai então dar-me o comprimido?

DOUTOR: Calma! Não disse isso.

RAUL: Então o quê, doutor?

(silêncio)

RAUL: Responda-me, por favor!

DOUTOR: (procurando uma página do livro) Você costuma ler?

RAUL: Não, nem por isso.

DOUTOR: Se não se importar, gostava de lhe ler uma passagem deste livro.

RAUL: Faça favor!

DOUTOR: «O único problema filosófico é o suicídio. (…)» Conhece o autor?

RAUL: Não. Quem é?

DOUTOR: Camus. Albert Camus. Escritor e filósofo francês, que morreu ao volante do seu automóvel em 1967 com 51 anos.

RAUL: E o que é que isso tem a ver para a nossa conversa, doutor? Já lhe disse que não me quero suicidar.

DOUTOR: Precisamente por isso! Você não quer viver, mas também não se quer matar. É um problema novo, homem. Compreende o que lhe quero dizer?

RAUL: Não estou bem certo disso. Mas também é coisa que não me interessa. Já lhe tinha dito anteriormente que não me interesso por filosofias.

DOUTOR: Mas o que é certo é que você, tanto quanto sei, e quer queira quer não, está a abrir um precedente para a compreensão do homem e das suas relações com a vida e a morte.

RAUL: Pois, pode até ser. Mas não é coisa que me interesse, doutor. Aquilo que me interessa…

DOUTOR: Já sei, homem! O que lhe interessa é o comprimido.

RAUL: E, então, sempre mo vai dar, ou vai escrever um livro acerca de mim?

9 Jan 2018