A Guerra Perdida

 

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]enrique Manuel Bento Fialho é poeta e crítico de poesia. Tem uma dezena de livros publicados, desde 2000, e este, A Grua (volta d’mar, 2017), é o seu mais recente trabalho. Trata-se de um livro com vinte poemas, com os títulos de 1 a 20. A grua, que dá título ao livro, aparece em todos os poemas, como metonímia do humano. Do humano na sua solidão, no seu isolamento. Veja a última estrofe, do primeiro poema (p. 4):

(…)

não se mexendo

é apenas uma grua parada

a olhar trabalhos ao abandono

nada que agite os corações receosos

nada que provoque exaltações de espírito

pois tudo o que é melancólico

pode ser esquecido

pois tudo o que é triste

deve distrair-nos

e ficar para sempre parado onde ninguém ligue

onde ninguém dê por isso

bem no meio de nós

 

Através da grua vê-se melhor o humano. “há muito parada / a grua observa a obra” (p. 3) Há uma profunda desolação nas páginas deste livro. Mesmo quando aparece um faísca de esperança, ela surge apenas para que ilumine melhor a desesperança que habita um coração humano, a desesperança que habita este mundo de homens, como escreve o poeta no poema 12, à página 22: “(…) acredito nos homens / e na força das utopias / acredito nos horizontes que impelem à caminhada / para logo ao primeiro passo / tropeçarem no abismo / e das crenças e das utopias restar apenas / e tão-somente uma ideia vaga (…)” Pressente-se, ao longo destas páginas, a soar no fundo como se de um baixo contínuo se tratasse, que a vida humana existe para provar que tudo é desesperança. Aliás, poucos livros de poesia atingem este grau de desesperança que “A Grua” atinge, se é que algum se lhe pode comparar quanto à invocação desta erva daninha do humano. E aqui identifica-se dois tipos de desespero: 1) de todos aqueles à margem de uma vida boa ou dentro de parâmetros razoáveis, como se vivessem numa infra-humanidade; 2) a do poeta, aquele que, apesar de não partilhar essa infra-humanidade directamente, partilha através de uma consciência aguda, como se o poeta tivesse sido condenado a cantar a solidão e perfídia humana.

A grua também se torna num lugar de referência – poder-se-ia dizer de peregrinação – para os marginais deste mundo, pelo menos da parte do mundo próximo da grua, como o poema 4 é exemplo maior. Desde o sem-abrigo, logo no início do poema – “entre tapumes de chapa o sem-abrigo / fez a cama com caixão de cartão / e tapou-se com folhas de jornal” – passando pela máfia russa – “entre tapumes a máfia russa enterrou vivos / uma puta e um chulo da concorrência” – passando também pela puta – “e fechou os olhos enquanto a puta / o mamava a troco de vinte euros”– até à primeira vez do amor – “entre tapumes um casal de namorados / fez amor pela primeira vez”. E ainda esse isolamento maior que é ser-se só num mundo completamente diferente do nosso: “entre tapumes um chinês recolheu-se / a chorar com saudades de casa”. A grua onde habita tudo o que é o humano nas margens de si mesmo e dos seus temores, como no poema 3, à página 8:

ninhos de ratazanas

abrigos de drogados e prostitutas

 

indiferente a hábitos rastejantes

a cegonha não se queixa

prossegue o seu destino à margem das intempéries

sociais

que ateiam focos de discussão e raiva

 

No fundo, como nos versos do poema 6 (p. 12): “a grua era um farol a servir de referência / aos náufragos de uma cidade turbulenta.” A grua tem assim múltiplos sentidos, mas todos como metonímia do humano, em múltiplos modos de apresentação. E, por conseguinte, a miséria humana não se poderia dizer apenas nas margens, ainda que seja aqui que ela se faça sentir com mais eloquência ao longo do livro. A miséria humana é também a de todos aqueles que diariamente se dirigem ao trabalho, que repetem as suas acções quase mecanicamente ou, pelo menos, sem se perguntarem porque fazem isso, à imagem dos militares, que, segundo consta, não questionam as ordens dadas, como se lê no último poema do livro: “ainda nos comovem as sirenes / as mães com os filhos pela mão à entrada das / escolas / os homens fardados para o trabalho / com cara de quem vai para uma guerra perdida” (p.39), ou ainda “a caminho dos empregos como pregos” (p. 36). E a guerra já perdida para onde se caminha é a própria vida. Defender a vida, dia a dia, é essa guerra perdida. Perdida, não só porque não podemos ganhar, e sabemo-lo de antemão, mas também porque enquanto dura, a vida, estamos impedidos de fazer um gesto de paz, porque viver é estar continuamente em guerra. Percorre-se o livro com a sombra de que o mundo está podre, de que o humano é a grande doença do mundo, como fica bem claro no início do poema 14 (p. 26):

 

não quero saber

não me contem do mundo nem das suas mortes

desliguei-me de tudo

incluindo do cansaço com que me desligo

 

Perante esta evidência, a do mundo a cair, a do mundo ser um lugar de expiação, vive-se de modo a não nos cruzarmos com essa consciência. Este é o mundo onde se rouba sem ter fome – “ó ladrões sem fome” (p. 35) – principalmente porque não se tem fome, e como se de um mandamento tratasse. O mundo não é um lugar lícito. Viver é – sempre o foi, mas é-o agora cada vez mais – empanturrar-se de entretenimento, de diversão. E a grua, na sua inutilidade – “uma grua inutilizada no centro da paisagem / como tudo quanto respira / como tudo quanto existe” (p. 27) – aparece-nos como profeta, como o filho de deus, que recebe todos os enjeitados da vida, pois são eles que melhor a dizem, e ilumina o estado em que está o mundo. A grua é o filho de deus que nos falta, que não encontramos nas igrejas, nos templos, nos gestos das pessoas. A grua recebe todos, principalmente os que não têm nada e os que expõem os seus defeitos. E porque a poesia não é deste mundo, é ela que dá testemunho desta descida da grua ao mundo. No fundo, a poesia morreu e não sabe disso. A poesia não levanta sequer o rabo da cadeira, não tem força para nada, no mundo de hoje (e talvez tenha sido sempre assim). Leia-se estas duas estrofes do poema 20 (p. 38):

 

os poetas do meu tempo

sobretudo as raparigas

reivindicam grandes incêndios

falam com a boca cheia de labaredas

mas eu olho para eles e para elas

e mais não vejo do que fósforos inofensivos

a atear queimadas de entulho

raivas amenas pautam explosões de entusiasmo

e a paixão com que falamos uns dos outros

cai por terra como estrume

a fertilizar exíguos canteiros de alegria

 

Chegados aqui resta-nos terminar. Pois neste livro até o bem parece conversa e gestos de bêbado. Mas há alguma coisa boa neste livro? De outro modo, há alguma coisa boa que este livro nos mostre, para além da consciência cortante do estado miserável do mundo e dos homens? Há! Mostrar-nos que precisamos de ver. Não é urgente o amor. É urgente ver. É urgente a consciência da existência do fora de nós. Impossibilitados que estamos de nos olhar a nós mesmos, neste mundo que nos pisa, neste mundo em que o emprego nos suga as horas e a alegria e a possibilidade de pensar, e nos empanturra de entretenimento, é urgente olhar as coisas como se nos olhássemos a nós. Uma grua, um sapato, uma árvore que resiste nos baldios, podem despertar-nos para a nossa vida. Ver lá fora é preciso, diz-nos este livro. Talvez o diabo tenha criado o ecrán de televisão, o ecrán de computador, o ecrán, para nos impedir de ver o mundo, de ver as coisas, de ver os outros. Porque o mundo que nos aparece nos ecráns não é o mundo, mas um filtro do mesmo. No ecrán o que nos aparece é a distancia, uma distância em relação ao mundo. O mundo é o que nos é próximo. Embriagados de distância, afastamo-nos de nós e do mundo. Antes de terminar, com um poema de Henrique Manuel Bento Fialho, acrescento que a capa do livro foi concebida pela Inês Ramos.

 

14.

não quero saber

não me contem do mundo e das suas mortes

desliguei-me de tudo

incluindo do cansaço com que me desligo

 

acordo a olhar para ti e espanto-me

basta-me tal espanto

apontas para oeste

na direcção de um mar infindo

de aventuras perdidas

 

como o ponteiro de uma bússola

indicas-me os caminhos

do ocidente

e eu penso que nestas terras nunca o sol nasceu

 

não quero ocorrências

enterro-me nos lençóis com tudo desligado

nem música consigo ouvir

registo num pequeno caderno as últimas vontades

(ser transformado em cinza

e largado no lixo como se nunca tivesse existido)

e ensaio um possível epitáfio para os meus dias

(acidente

que não sonha

apenas delira

não dorme

apenas arfa)

 

não quero saber

se prescrevem poemas a quem como eu

olha os caminhos que indicas e vê

uma obra embargada

em edifício emparedado

uma grua inutilizada no centro da paisagem

como tudo quanto respira

como tudo quanto existe

 

simplesmente não quero saber

está vento

tenho frio

o céu nublado pesa-me nos olhos que fecho

enquanto enterro mais um pouco o corpo

por debaixo dos lençóis

18 Abr 2017