João Romão Confeitaria Vozes100 Esta é a centésima crónica que publico no Hoje Macau e com ela encerro esta Confeitaria que abriu há mais de quatro anos. A palavra assinala uma certa herança comum às culturas portuguesa e japonesa, afinal o mote inicial com que se propunha dar alguma coerência temática ao que se viesse a escrever: um olhar português sobre a vida no Japão e o mundo a oriente, tendo como título genérico uma palavra usada nas duas línguas, no caso o confeito, que terá atravessado mares e tormentas até se instalar tranquilamente nas ementas japonesas. Foi no final de Setembro do já longínquo 2018 que se publicou o primeiro texto, no rescaldo de animado fim de verão em terras lusas e graças às formidáveis alquimias do João Paulo Cotrim, exímio criador de espaços onde respirar fraternidade e desenvolver liberdades criativas. Entretanto deixou-nos, com a desolação inevitável, e deixou também uma Lisboa mais pobre e mais triste. Foi num desses preciosos momentos inventados pelo Cotrim que conheci o Carlos Morais José, director do Hoje Macau, que desde logo acolheu esta Confeitaria e me deu total liberdade para escrever o que quisesse sobre o que quisesse. Só lhes posso estar agradecido, a ele e ao José Manuel Mendes, o editor que nunca cheguei a encontrar. Desconhecia esta possibilidade de participar num projecto editorial – espaço sempre altamente propenso a conflitos, inerentes a inevitáveis divergências de estilos e perspectivas – sem ter qualquer tipo de problema em mais de quatro anos. Foram anos extraordinários, estes. A Confeitaria abriu em Sapporo, cidade no norte do Japão com longos invernos cobertos de branco, onde vivia na altura, quando nem sequer conhecia a quente e húmida Hiroshima, onde estou agora a dar por encerrado este longo ciclo de cem crónicas. Essa foi a mudança menor, no entanto, resultante de meras circunstâncias laborais, as inevitáveis formas de subsistência a que temos obrigação de atender, mas que felizmente continuam a contar pouco. No que realmente interessa, as mudanças foram muitíssimo maiores: termino este ciclo de regresso aos jornais com um outro ciclo ainda no início, o do crescimento da Sara, cuja chegada a este precário planeta foi devidamente assinalada com crónica publicada quatro dias depois de nascer, no início do verão do ano 2020. Nasceu a Sara em plena epidemia de covid-19 e esse foi um dos temas maiores da Confeitaria, como seria talvez inevitável: foram 11 as crónicas directamente dedicadas a este tema, a primeira das quais no início de Março de 2020, quando o vírus que já se tinha instalado na Ásia, desde finais de 2019, e dava os primeiros sinais da sua chegada à Europa. Hoje já parte do mundo vive num ambiente pós-covid mas esse não é certamente o caso de quem vive no Japão – e na Ásia em geral, aliás -, onde os quotidianos ainda carregam esse peso das restrições inerentes à tentativa de controle de uma pandemia que, apesar de tudo, já pareceu bastante mais grave. A vida e a cultura no Japão constituíam o mote inicial com que se decidiu abrir esta Confeitaria e de facto houve nove crónicas que assinalaram essa perspectiva pessoal sobre os quotidianos no país do sol nascente, sempre a abordar temas que já me fossem familiares mas que ainda assim me parecessem ter qualquer coisa de especial e extraordinário para justificar o tempo e a atenção de quem lesse. Na realidade, nos primeiros contactos com estes lugares geográfica, cultural e linguisticamente distantes, tudo nos parece estranho e especial. O tempo, no entanto – e às vezes nem é preciso muito – ajuda a distinguir entre o que é novidade ou diferença e o que é ignorância ou preconceito. A “literatura de viagens” contemporânea está cheia disso, vê-se facilmente. Ainda assim, arrisquei partilhar impressões rápidas de visitas a lugares próximos, com cinco crónicas escritas sobre a China, Tailândia e Indonésia, resultado de fugazes experiências de visita. Em todo o ocaso, foi o turismo – o assunto que me ocupa profissionalmente enquanto investigador e professor – que ocupou a maior arte do espaço desta Confeitaria: 26 crónicas, publicadas entre os fins de Setembro de 2018 e de 2022, que foram assinalando tendências na forma como se usa o tempo e os recursos para o lazer e a viagem ou as particulares implicações de uma pandemia global sobre uma actividade que pressupõe movimento, deslocação e contacto. Mas o turismo também foi uma porta de acesso à discussão sobre a economia capitalista contemporânea, com a degradação acelerada de recursos, crescentes desigualdades e injustiças sociais ou esmagadores processos de gentrificação mal disfarçados de renovação urbana e branqueados com palavreado “inteligente” e “sustentável”. Além do turismo, houve 22 as crónicas que discutiram e criticaram a insustentabilidade do capitalismo actual, incluindo os seus cartéis internacionais que determinam políticas económicas, e reinventam as suas máquinas globais de extorsão sistemática, branqueamento de capitais e fuga ao fisco. Na realidade, todas as 99 crónicas que escrevi têm como pano de fundo um sistema económico irracional, altamente predatório e violento, ainda que essa análise se possa exprimir enquanto se discutem temas aparentemente diferentes, como sejam as alterações climáticas e as ações de mobilização e protesto das gerações que sentem o futuro comprometido e que só encontram como resposta a ameaça de prisão, o que também ocupou quatro crónicas desta Confeitaria. Este sistema económico que nos tocou viver é também o resultado de uma certa crise das ideologias que contrapõem a solidariedade e a comunidade à competição e ao individualismo – tema que ocupou três crónicas, por manifesta falta de assunto – e tem também implicações sobre o ambiente de violência e ódio racista e fascista que vai ocupando espaço mediático e político contemporâneos – assunto que motivou outras três crónicas. Até a transformação das embaixadas nacionais em pobres gabinetes de prestação de serviços a empresas turísticas, assunto que também ocupou uma crónica, tem e ver com este servilismo de Estados que cada vez menos se preocupam menos com comunidades e mais com a farsa da eficiência dos negócios. Poucos ou nenhuns destes temas estavam programados desde o início: foi sempre a realidade, na sua imprevisível e surpreendente evolução, que foi abrindo os caminhos que aqui fui explorando. Aliás, mesmo o único tema que tinha à partida espaço garantido nesta agenda em sempre em construção – os Jogos Olímpicos de Tóquio, aos quais dediquei cinco crónicas – acabou por se realizar uns anos depois do previsto e com portas quase fechadas. Por outro lado, com a devida prudência e contenção, só dediquei ao futebol uma crónica, que é assunto ultra-sensível e capaz de suscitar melindres inconsequentes. Também dediquei uma crónica ao José Mário Branco, das melhores pessoas com quem tive a sorte de me cruzar, e outra perda maior nas nossas vidas. Voltarei eventualmente ao Hoje Macau, num registo mais ocasional, mas agora é tempo de fechar a Confeitaria, que eu sempre gostei de sair quando a festa ainda vai boa. Valeu a pena a travessia. Obrigado!
André Namora Ai Portugal VozesA centésima Hoje é uma data histórica na minha satisfação pessoal de escriba, porque orgulhosamente dirijo-me pela centésima vez aos meus queridos leitores do HOJE MACAU. Escrever 100 crónicas sobre o que se vai passando neste Portugal, garanto-vos que não é fácil, especialmente numa linguagem acessível a todos. Há cronistas aqui nos jornais Expresso, Público, Correio da Manhã, Diário de Notícias e outros que assiduamente são alvos de críticas dos leitores que enviam para os directores das publicações o seu direito de resposta. Em 100 crónicas que vos enviei, apenas dois leitores, usaram esse desiderato e, por sinal, não tinham razão. Fi-lo sempre do modo mais eficiente e verdadeiro que soube. Para mim, escrever neste jornal é uma honra e saúdo todos quantos trabalham neste diário, o melhor de Macau, em especial uma saudação ao Director Carlos Morais José por compreender que os portugueses residentes na RAEM satisfazem-se em saber o que vai acontecendo no seu país. Vários temas tinha em agenda para vos noticiar, mas não posso deixar passar em claro um fenómeno imensamente triste que Portugal está a viver. Este nosso condado portucalense perdeu o seu pulmão, o que é gravíssimo. A Serra da Estrela está a arder há mais de uma semana. Dois mil homens dos bombeiros, GNR e Protecção Civil têm-se sentido impotentes para controlar o maior incêndio jamais registado. Na zona de Unhais dá dó: toda a floresta está ardida, várias casas estão em ruínas devido às chamas, uma dúzia de combatentes da paz ficaram feridos e um carro dos bombeiros de Loures, possivelmente por não conhecerem as curvas mais perigosas do país, capotou e três ocupantes estão gravemente feridos. Os aviões são de dimensão pequena e pouco conseguem fazer contra a imensidão do fogo. Vergonhosamente existem três aeronaves de grande dimensão, os Canadair, mas apenas um está operacional. Custou-me muito ouvir o primeiro-ministro a dizer que os dois aviões avariados só daqui a dois anos é que estarão reparados. Até parece que estamos no Terceiro Mundo. As populações protestam e afirmam que não existe coordenação no combate às chamas. Os pastores choram, porque têm ficado sem os seus animais e alguns eram o seu sustento, como cabras e ovelhas, que lhes ofereciam o famoso queijo da serra. A Serra da Estrela tinha a maior área arbórea do país e mais de 15 mil hectares já arderam e atingiram localidades como Guarda, Covilhã, Gouveia, Manteigas e Seia. Muitas pessoas foram evacuadas de suas casas e em Unhais da Beira toda a população teve de ir embora. Vários alojamentos turísticos também já foram evacuados. Os responsáveis da Protecção Civil concordam com as críticas da população, mas afirmam que a tragédia é enorme e quase impossível de a dominar. No entanto, este incêndio está pejado de factos surreais. Era importante que efectivamente alguém com capacidade técnica e independente pudesse fazer uma análise ao que aconteceu. Tem tudo menos de normalidade, nomeadamente no seu combate. Era importante para que a culpa não morresse solteira. Por exemplo, na zona de Gouveia encontravam-se várias corporações de diferentes locais do país. Assim, que se soube do acidente do carro de bombeiros que capotou e deixou gravemente feridos três combatentes, todas essas corporações foram-se embora… Para o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, António Nunes, a situação é muito preocupante. Para o presidente da Liga, o Governo devia ter accionado o mecanismo europeu à semelhança de França que já está a receber apoio de vários países no combate aos seus imensos incêndios. Contudo, já o referimos aqui numa outra crónica sobre os incêndios que têm destruído os diferentes pulmões ambientais, que a mão criminosa está no terreno. A Polícia Judiciária tem realizado um trabalho exemplar, o mesmo não se podendo dizer dos tribunais. Vários indivíduos têm sido apanhados a pegar fogo nas florestas. E neste ponto, lembramo-nos dos muitos drones que já foram adquiridos pelas autoridades. Por que razão esses drones não foram colocados ao serviço de vigilância da Serra da Estrela, sabendo-se que poderia ser o próximo palco de mais um desastre natural. Os drones são fundamentais para detectar através de imagens o que se passa no terreno. Isso, não aconteceu e é neste ponto que as populações têm toda a razão em criticar e revoltarem-se contra a descoordenação que esteve bem à vista. Não chega desculparem-se com as condições climáticas, com a seca extrema e com a falta de água nas barragens. Todos aqueles que se situam nos gabinetes de análise à protecção das gentes que ficam sem nada, deviam ter uma maior capacidade de coordenação e não ouvirmos um popular a dizer que os fogos “não têm rei nem roque”… Acabei de escrever a centésima crónica e, este facto, deve-se fundamentalmente à vossa aceitação. Bem hajam.