Piménio Ferreira: “A retórica anti-cigana sempre funcionou em Portugal”

Piménio Ferreira, mais conhecido por Gitelles Ferreira, militante anti-racista, 34 anos, engenheiro físico, nacional romani. É um homem com um discurso provocador, um humor corrosivo, gentil e com um sorriso que não deixa ninguém indiferente

Gitelles, nós vivemos numa terra intercultural e os ciganos – em particular – vivem há cerca de cinco séculos em Portugal. O que se passa para as comunidades ciganas continuarem “à margem” da dita sociedade?


Falta mudar o modelo de sociedade. Este é extremamente estratificado, colocando pessoas em lugares subalternos para privilegiar uma minoria violenta. A estrutura social branca é patriarcal e racista. O que se chama de ‘margem’ da sociedade é na verdade um lugar intrínseco à mesma, que lhe pertence. Dito de outra forma, as pessoas ciganas foram incluídas neste modelo de sociedade desde que descobriram a Europa e seus reinos. O problema é o modelo de sociedade que se mantém e o lugar para onde foram relegados e como foram relegados: com violência, em estatuto de inferioridade face aos brancos, sem direito à dignidade humana, a constituir família, a escolher a própria língua e religião, expropriados de todo e qualquer direito cultural e material. Um lugar construído e mantido até hoje por violências e perseguições genocidas e etnicidas. Em 1463, a um Vasco Gitano era-lhe aforada uma herdade. Em 1521, os gitanos, ou ciganos, eram já usados como referência para tudo o que é considerado mau no modelo de sociedade. O “contra-exemplo” face ao branco que se destacaria pela positiva. O ‘anjo’ e o ‘demónio’; o ‘outro’, o inimigo; aquele contra quem todo e qualquer ataque e perseguição é legítimo. Incluindo a proibição de se defender, de ter armas, qualquer tipo de bens, e direito de permanência.

E é por lhes ser negado esse direito à permanência que ainda hoje temos comunidades ciganas nómadas dentro do país?

Sim, sem dúvida. Há muitas formas de forçar o nomadismo: directamente, proibindo a permanência e expulsando com força policial ou militar; indirectamente, recusando habitação pública ou privada a pessoas ciganas, por serem ciganas; e ainda através do processo de gentrificação.

Eu li o resultado de um inquérito da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia, onde se diz que aproximadamente 80% dos ciganos inquiridos vivem abaixo do limiar de risco de pobreza do seu país; um em cada três ciganos vive numa habitação sem água canalizada; um em cada três ciganos pertence a uma família em que alguém se deitou com fome pelo menos uma vez no mês anterior; e 50% dos ciganos com idades entre os 6 e os 24 anos não frequentam a escola. Por que é que isto acontece assim?


É a perseguição histórica, que continua. Não há empobrecimento que não tenha causa externa. No caso, um sistema político de expropriação total e imposto na base da violência. Já em 1648, D João IV, o Restaurador, proibia ‘dar-se ou alugar-se casas a ciganos’. O mesmo D João IV que conseguiu o reino de Portugal graças a D. Jerónimo da Costa e aos seus 250 Cavaleiros. O mesmo D. Jerónimo da Costa que morrera a defender a independência de Portugal face a Castela. Cigano, tal como sua mulher e filhos. Entre proibições de permanência, “que não entrem ciganos no reino e saiam os que nele estiverem” (D João III, 1526), com expulsões, degredos para as galés, expropriação de bens e propriedades, impostas com penas de açoites, mutilação e morte, sistematicamente realizadas até aos dias de hoje (ainda em 2011 a Câmara Municipal de Faro queria proibir ciganos no concelho).

A proibição de trabalharem por conta de outrem (ninguém emprega trabalhadores ciganos, e os que aceitam fazem-no em total precariedade, para cargos mal remunerados e sem direitos e condições dignas). Não conseguem ficar dependentes de trabalho por conta própria, não conseguem meios de investimento, devido à extrema expropriação. Ficam dependentes da precariedade. Se quiserem saber como é viver em neoliberalismo puro, conheçam a vida dos ciganos. A realidade destes é paradigmática da agressão e desprotecção a que os “senhores” estão dispostos a ir, para seu proveito.

Os senhores de que falas, é o poder económico e político?

O grupo do poder político, social, cultural e económico. O proprietário, o colonizador. Esse grupo que está no poder desde que instituiu o sistema de dominação actual. E que só tem sentido dentro do modelo sociopolítico hierarquicamente estratificado em que vivemos. Daí a necessidade de acabar com ‘senhores’ e instituir um novo modelo de sociedade, saudável, livre, sem hierarquias nem estratos, sejam de raça, classe ou género.

O modelo em que vivemos leva a comunidade cigana (e não só) à exclusão económica, afastando-a do acesso ao consumo de produtos ou excluindo-as do seu processo de produção; à exclusão política associada à falta de acesso a informação; à educação e consequentemente a exclusão social que se vê na desigualdade de acesso a áreas comunitárias de qualidade como restaurantes, bibliotecas, teatro, cinema, concertos, cuidados de saúde, etc. Como se sente uma criança cigana ao perceber que não faz parte de um todo? Crianças que nunca se vêm representadas, nem em filmes, nem em livros, nem em desenhos animados, nem sequer num anúncio a comer cereais, por exemplo? Isso é um desastre para a auto-estima, é uma condenação à priori?

A questão é mesmo essa. As pessoas ciganas não estão “excluídas da sociedade”, ao contrário, estão incluídas nela. O problema é a existência do que cinicamente é chamado de ‘exclusão social’, qual termo orwelliano, e aí estarem sob coacção, as pessoas. Qual campo de concentração e extermínio. Aliás, os campos de concentração nazis são uma concretização mais visual do que se chama ‘exclusão social’ e, tal como aqui, não eram uma parte ‘excluída’ da sociedade nazi, mas antes a sua estrutura fundamental e caracterizadora. É um lugar de violência, onde as pessoas são mantidas pela violência, dedicado ao seu extermínio, e desenhado para que pouca gente consiga sair. E mesmo assim resistem. Tal como nos campos de concentração nazis.

E o que elencaste como exemplo de ‘consequência’ dessa ‘exclusão’, é na verdade o meio pelo qual essa exclusão também acontece e se mantém. Pessoas ciganas estão fora dos cinemas, quer como consumidoras quer produtoras (mas vão ao cinema). Estão fora da escola, da educação e da Academia. Quer como ‘utentes’ quer como produtoras (mas vão à escola e estão na base da construção de conhecimento e de debates académicos e científicos).

Até no ataque à autoconfiança da criança cigana, falamos de um mecanismo de manutenção desta situação. Mas as pessoas ciganas respondem muito bem: com o orgulho cigano. Outra resistência, a mais uma agressão. As pessoas ciganas estão assim incluídas na sociedade. Num lugar que pertence a este modelo de sociedade moderno. E resistem e contrariam o poder de dominação e fazem questão de estar na cidade, no cinema, no teatro, na Academia, em todos os espaços. Com muita luta e sempre resistindo, mas estão lá. A exclusão social, mais do que um “lugar fora da sociedade”, é parte da sua estrutura social.

Queres dizer que há uma resistência colectiva?

No trabalho, já num contexto de precariedade absoluta, durante a pandemia, as pessoas ciganas arregaçaram mangas e mostraram mais uma vez, proactividade e criatividade na adversidade. Aprenderam vendo fazer e fazendo. E aqui, são novamente as mulheres quem salta para a linha da frente, dão a cara, aprendem a usar as ferramentas digitais com as suas filhas ou filhos, e lançam-se na rede. E assim exploram as vendas online bem como os trabalhos por aplicativo (transporte ou estafetas). Na habitação, num contexto de pandemia em que os despejos não foram travados – como deviam e dita a própria lei – moradores não deixaram de se organizar e lutar contra despejos injustos e reclamar a dignidade na habitação; associações de moradores aliadas na sua ação a outras organizações de luta pela habitação e anti-racistas.

De notar também como se reinventaram e intensificaram para angariar e distribuir bens alimentares e kits de máscaras/álcool gel para as pessoas mais expropriadas. Ciganas e não ciganas. Na luta anti-racista, novos movimentos surgiram e as suas acções intensificaram-se pelas redes sociais. Pessoas que nunca antes se tinham organizado ou militado, iniciaram os seus primeiros passos no activismo, engrossando esta via da organização e acção popular cigana e anti-racista. As pessoas esquecem, ou não querem valorizar, mas a acção cigana tem ajudado a determinar resultados na disputa política. Munícipes ciganos mobilizaram-se em grande e determinaram resultados eleitorais nas autárquicas de 2017, quer no Alentejo, quer na Área Metropolitana de Lisboa, causando inclusive terremotos eleitorais.

E mesmo nas Presidenciais, o segundo lugar foi resolvido por um valor equivalente ao número estimado de eleitores ciganos. Fora os votos não ciganos que foram mobilizados pela acção de eleitores ciganos. Pessoas ciganas estão inclusive a co-construir poder nos espaços de opinião, nos media local, nas redes sociais e na disputa política partidária e institucional. E mais importante ainda, na açcão popular e em alianças com outros movimentos sociais. Nunca parámos de lutar por todos os meios e continuamos a resistir.

Em contrapartida há cada vez mais discursos de ódio, da extrema direita em particular. Que tens a dizer sobre isso?

Para começar esses discursos são históricos e europeus. Não sendo nem actuais e menos ainda “da extrema-direita”. Esses discursos são adoptados e proferidos há muito tempo, mesmo em ‘democracia e liberdade’, por vários representantes do centro-direita, conservadores, centro esquerda, liberais, esquerda liberal, até representantes do PCP. A retórica anti-cigana sempre funcionou em Portugal, por ser a retórica mais brancogénica [de génese branca]. Isto é, que permita criar e dar o “branco” como o superior de todos. E assim agradar ao eleitorado branco que, ao sentir-se bem, compensa com o seu voto. Mesmo que as políticas implementadas pelos seus eleitos o prejudiquem ainda mais.

Para terminar gostava que falasses um pouco da tua experiência pessoal e como chegaste a activista?

Estudei, lutei pelos estudos, fiz alianças, formei-me, enveredei no mercado de trabalho da “precariedade formal”. Iniciei a minha acção militante e aqui estou hoje. Nós podemos transformar esta sociedade numa melhor. Essa certeza aliada ao facto da actual ter tanto sofrimento, faz qualquer pessoa querer ter uma atitude transformista. Eu quis ser ‘inventor’ (engenheiro físico) e militante antirracista. E através do estudo (não necessariamente escolarização) e da organização com outras pessoas, por sua vez, com outros estudos, formações e visões, fui aprendendo como o mundo funciona e como pode ser mudado. Mas antes de transformar, precisamos sobreviver.

Daí surgem dois tipos de acções: transformativas e de sobrevivência. A luta contra o discurso de ódio surge como sobrevivência, mas a sua derrota será uma vitória transformativa. Há muita coisa que – como pessoas que querem um mundo melhor – temos de fazer, nomeadamente trabalhar para criminalizar o discurso de ódio; condenar e proibir organizações com discursos e práticas racistas; denunciar a estrutura e lógicas institucionais racistas que organizam o Poder e gerem os recursos comunitários. E nesse sentido, têm havido vários tipos de ações, de petições, a manifestações. E precisamos de mais.

Eu, além de militar no movimento SOS RACISMO, participo no Podcast “Viemos Para Ficar”, com Mamadou Ba e Joseph da Silva. E se tudo correr bem, iremos em breve iniciar um novo projecto. Com pessoas amigas, temos também o projecto “Iniciativa Cigana”, dedicado a refletir e promover movimentos transformativos. Focado essencialmente em educar contra o anti-ciganismo, denunciando o genocídio histórico e continuado e trabalhando para um novo projeto de sociedade. Também com novos projectos na calha. E por fim, há sempre as acções voluntárias, sem uma organização, onde procuro partilhar o que descobri sobre o Anti-ciganismo e a história Romani em escolas e com pessoas interessadas. Além disto, há ainda a luta pela habitação, porque os despejos não pararam durante a pandemia. Devido à precariedade habitacional e laboral, os sujeitos racializados especialmente os nacionais Roma, são os que mais vulneráveis ficaram ao Covid-19. É fundamental haver acções nesta área; de todas as lutas, esta é a mais estrutural, pois vai contra um dos principais inimigos de uma sociedade saudável: a especulação imobiliária deste sistema capitalista, que coloca o lucro e os bens acima das pessoas e sua humanização.

26 Abr 2021

Raquel Banha: “As pessoas não têm de ignorar a deficiência”

Raquel Banha tem 24 anos e considera-se uma “Artivista”. Mulher de vários talentos, domina a arte da escrita no seu blog Chairleader e é mestre em Marketing Digital. Nasceu com uma doença neuromuscular rara e usa o blog para quebrar tabus e falar sobre a deficiência

Foto – Inês Oliveira

 

Li no teu blog, a certa altura, que “há 20 anos que namoras a tua varanda solarenga, local da casa onde te sentes mais viva e livre, e onde aprendes a viver através dos outros, das pessoas, dos animais, das plantas”. O que seria necessário para poderes sair da varanda e viver essa vida que tanto observas?

Há muitos factores, na verdade. Moro num prédio com 24 degraus, que não tem rampa, não tem elevador, não tem nada. E durante 18 anos, o meu pai, todos os dias, me transportava às cavalitas. Além de eu estar, obviamente, dependente dele, 56 anos já começam a pesar no corpo de um adulto. Então apareceu a Ana.

A Ana é a tua assistente pessoal.

Sim, comecei a ter assistência pessoal desde Outubro de 2019 e já desde essa altura que houve a necessidade de arranjar maneira de sair de casa, de forma, mais ou menos, autónoma. E em Maio de 2020, instalámos uma cadeira elevatória. Ainda não é ideal, por várias razões: esta cadeira de rodas (eléctrica) não vai a casa por exemplo.

Quanto é que pesa?

200 quilos.

Há ajudas do Estado para tudo isso?

Há algumas…esta cadeira foi o Estado que me deu, mas demorou três anos a chegar. É uma eternidade (sorri). Como estávamos numa situação complicada e urgente, pois o meu pai já estava mesmo muito mal das costas, tivemos de arranjar rapidamente a cadeira elevatória, e então fomos nós, do nosso bolso, que a pagamos. Agora estamos à espera da junta de freguesia. Disseram que como os degraus para entrar no prédio ainda estão na rua, poderiam fazer a obra sem cobrar nada. Portanto, para sair de casa, esta era a minha primeira barreira, a barreira arquitectónica, que é a mais óbvia. Depois há uma outra barreira, a barreira emocional. Eu agora, felizmente, com a Ana, supostamente já poderei fazer aquilo que quero. Mas estamos a falar de 23 anos. Foram 23 anos sem a oportunidade de fazer aquilo que eu queria, à minha maneira, no meu horário… E a nossa mente acaba por se moldar a essa realidade. E agora, tenho a oportunidade de sair, mas não sei o que é que vou fazer, não sei o que é que posso fazer, nem tão pouco tive oportunidade para construir um circulo social de amigos consistente para dizer “agora vou tomar um café com…” Não criei isso ao longo do meu desenvolvimento. E claro, tenho a consciência de que a minha personalidade também não ajuda. Às vezes acabo por ficar em casa, pois vou lá fora fazer o quê? Não sei. Há muita coisa que não conheço, não sei por onde começar… e isto depois é uma bola de neve. Costumo dizer que a independência é um músculo. E, no meu caso, foram 23 anos que estive sem utilizar esse músculo. É um processo lento e demorado.

E há o problema com que se deparam todas as pessoas que têm de se deslocar em cadeira de rodas eléctrica, que é a impossibilidade de entrar na maioria dos locais públicos, porque não têm acesso.

Pois, não entro.

Portanto aquela coisa de telefonar a alguém a dizer “vamos jantar não sei onde e depois vamos a uma discoteca” ou uma combinação de última hora, é uma coisa que não existe para ti. Tens de ter tudo programado, saber onde é que podes entrar e onde é que não podes entrar.

Lá está. É aí que entra o lado emocional. O trabalho de sair e planear tudo, com a grande possibilidade de chegar aos sítios e as coisas não correrem bem. Isso desmotiva-me imenso. Por isso é que digo que o lado emocional comanda tudo.

Compreendo.

Há aqui um degrau sim, mas o lado emocional é aquele que dita que vamos ter de arranjar uma solução, uma alternativa. E de facto a nossa vida tem de ser programada com muito tempo de antecedência. Tenho de telefonar primeiro, para saber se o sítio é acessível, depois as pessoas dizem-me que “ah, é acessível, sim”, chegas lá e não é acessível. Porquê? Porque as pessoas também não têm formação técnica para saber avaliar se aquele espaço é totalmente acessível ou não. Mesmo com a Ana ao meu lado é muito cansativo para mim…

Há um termo, que começa a ser usado quando se fala de discriminação e preconceito social contra pessoas com capacidades reduzidas – que é o “capacitismo”. Queres falar um pouco sobre isto? E já agora, gostava imenso que desenvolvesses a tua ideia de que (para ti) está ligado a uma “premissa de que assim que uma pessoa nasce e/ou fica com uma incapacidade é automaticamente um ser especial.”

Acho que é uma tendência natural da sociedade. Quando vês alguém diferente, começa a surgir uma variedade de suposições à volta dessa pessoa e nós baralhamos muito os termos “diferente” com “especial”. E não tem nada a ver uma coisa com a outra. Diferente é diferente… Ser especial é quando alguém faz alguma coisa que realça e tem valor. Estando agora mais dentro da comunidade de pessoas com deficiência, é algo que eu noto muito. Todos nós, a certa altura da nossa vida, somos chamados de “especiais e únicos”. Depois, quando chegamos ao mundo real e temos este contacto com pares da nossa comunidade, percebemos que afinal há mais pessoas como nós, percebemos que afinal não somos assim tão especiais, nem únicos. E isso tem várias consequências a nível psicológico e emocional. Por exemplo, pessoalmente, acho que isto mexeu muito, e mexe, com a minha autoconfiança. Quando faço alguma coisa e as pessoas me elogiam, fico sempre na dúvida se é puro mérito meu, ou se está ligado com esta conotação “especial da deficiência”. Ou seja, o facto de eu me ter apercebido desde cedo que não era assim tão especial, não era assim tão única, criou uma necessidade dentro de mim de criar essa “parte especial de mim” de que tanto falavam. E então há aqui uma espécie de exigência comigo mesma, “tenho de fazer alguma coisa para ultrapassar a minha deficiência”. Mas eu pergunto: será que isso é mesmo necessário? Será que isto é algo meu, ou é uma necessidade que desenvolvi por causa de tudo isto à minha volta? Não sei.

Também dizes que sentes com frequência as pessoas estarem contigo e isso fazê-las sentirem-se bem porque estão perante alguém que está pior do que elas. Perverso, não?

É perverso mas toda a gente pensa assim, eu inclusive. Aliás, ainda não consegui formular uma opinião sobre o voluntariado internacional, por exemplo. Agora está muito na moda, um jovem ir a África ou à Ásia fazer voluntariado durante umas semanas ou meses. Mas na maioria dos testemunhos que tenho lido, as pessoas vão com o objectivo principal de verem que há pessoas em situações piores do que elas. Vão lá, são iluminados pela desgraça dos outros e voltam seres superiores, com um currículo todo pimpão. E isso faz-me comichão. Mas lá está, não quero ser demasiado fundamentalista, porque ainda estou a tentar perceber este fenómeno e essa necessidade das pessoas se compararem a outras, para pensar “ah, afinal eu tenho que dar mais valor à minha vida”. Mas, até agora, com a informação que tenho, isso incomoda-me.

Naturalmente.

Incomoda-me, irrita-me. Nós não devemos comparar a nossa realidade com a dos outros.

Sim, a dor dos outros não pode ser um bálsamo para nós…

Não é? Irrita-me muito.

É a isso que tu chamas “objectificação da deficiência como meio de inspiração”?

Sim, mistura-se um bocado com o ponto anterior. “Eu gosto e sinto-me bem em ver alguém em “piores” condições que eu. Faz-me sentir melhor”… E há aquela cena do “ah eu vejo alguém com deficiência a fazer determinada coisa, se ela consegue, eu também consigo”.

Mas também há pessoas que fingem ignorar. 

Conheço várias pessoas, das quais tive necessidade de me afastar um pouco, porque elas vinham sempre com esse discurso do “ah, eu quando olho para ti, não vejo a deficiência”… as pessoas claramente deparam-se com uma pessoa diferente, com alguma coisa que não conhecem ou entendem, e a maneira delas lidarem com isso, ou tentarem disfarçar esse sentimento de estranheza, é dizerem “ah, eu olho para ti e não vejo a deficiência”. As pessoas não têm de ignorar a deficiência. É como eu estar a olhar agora para ti e ignorar que tens uma coisa nos ouvidos (os auscultadores do gravador). É ridículo. Não é real…. não faz sentido.

Como o que te aconteceu na escola, numa aula de ciências.

Exactamente isso… acho que foi numa aula de ciências, sim, em que o laboratório era no primeiro andar. A escola não tinha elevador, rampa, nada. E marcaram a aula lá para cima e eu fiquei muito chateada porque, quando eu vou para uma escola, a primeira coisa que se faz é falar com o conselho, com a direcção, para mostrar que eu tenho uma deficiência e que não é para esquecê-la, é precisamente para tê-la em conta. E marcaram aulas para o primeiro andar. Eu falei com uma professora e ela, com um ar muito despreocupado, diz-me para eu não ficar chateada porque isso queria dizer que olhavam para mim e não viam a minha cadeira de rodas. E isso não é um argumento válido. É só parvo.

Fazes parte da direcção do Centro de Vida Independente cujo objectivo é a defesa e a divulgação da filosofia da vida independente em Portugal. Queres falar-nos sobre o vosso trabalho?

A filosofia da vida independente vem revolucionar a maneira como se lida com a deficiência, pois há vários modelos da deficiência e o mais comum é o modelo médico. Que pressupõe que estas pessoas “têm de ser curadas”, e até haver uma cura, não há nada a fazer. As pessoas são postas num hospital ou num lar, à espera que aconteça algo, que não vai acontecer. Pronto. E a esperança destas pessoas está apenas ligada à ciência e aos laboratórios. Quando, na realidade, os processos de descoberta e de evolução científica demoram, às vezes, mais do que uma geração. Ou várias gerações. E não podemos deixar morrer gerações, à espera de algo que pode ou não acontecer. Então, houve a necessidade de se criar o modelo social, que diz que somos todos diversos funcionalmente e que as sociedades é que não estão adaptadas para toda a gente. Nascemos ou adquirimos esta ou aquela doença, e vamos provavelmente, morrer assim. Mas queremos viver a melhor vida possível com a nossa realidade, no presente. Sabemos perfeitamente que vamos sempre precisar de uma segunda pessoa para concretizar aquilo que queremos. Isto da vida independente não é nada mais, nada menos, do que fazermos aquilo que nós quisermos, tendo controlo total da nossa vida, das nossas opções. Com a ajuda de uma segunda pessoa.

No teu caso a Ana, a tua perna metade, como lhe chamas?

A minha perna metade (sorri) é como ter uma muleta, estás a ver? A muleta está lá disponível para eu poder fazer aquilo que eu quiser. A vida independente já é uma realidade nalguns países na Europa. Nomeadamente na Suécia, onde estão super avançados, e onde ter um assistente pessoal é super banal. Em Portugal, até há muito pouco tempo, nunca se tinha falado na hipótese de sermos nós a controlar a nossa vida. Há uma frase emblemática neste movimento que é “Nada sobre nós, sem nós”. É muito isso: é trazermo-nos como parte activa deste processo todo. Uma coisa que é muito comum ainda nas associações e instituições de pessoas com deficiência, é que a maioria delas são geridas por familiares, por cuidadores e por pessoas que não têm deficiência. E temos de alterar isso, porque são essas pessoas que estão a decidir e a lutar por coisas que nós podemos lutar. Temos uma voz e queremos muito ser activos e fazer acontecer, e não ir por aquele lado da solidariedade, de pedinchar, entendes?

Entendo, claro. É um direito que nos assiste enquanto seres humanos.

Tem a ver com direitos humanos, é isso mesmo. Os direitos humanos não são solidariedade. Está na constituição, está na lei. E nós trabalhamos para garantir que estes direitos humanos são cumpridos. Acho que é essa a nossa principal função, para que mais pessoas tenham estes direitos. Porque, por exemplo, em Lisboa, neste momento, somos apenas, salvo erro, menos de 50 pessoas a usufruir de assistência pessoal, paga pelo Estado. E isso é muito pouco.

Um tema que é particularmente sensível e que continua um tabu para as pessoas em geral é o amor, a paixão, a sexualidade. Muitas pessoas com diversidade funcional encontram-se dependentes da ajuda de outras para exercer a sua sexualidade. Em Espanha sei que há assistentes sexuais, mas não sei se esse serviço existe em Portugal, creio que ainda não.

Oficialmente não.

Queres falar um pouco sobre isso?

Olha, ainda no outro dia falei disso, ou ouvi falar disso, que tem a ver com o papel do assistente sexual. Qual é o papel do assistente sexual? Isso também é um tabu. As pessoas pensam que um assistente sexual é quase como um prostituto ou uma prostituta e não tem nada a ver uma coisa com a outra. Portanto, na sua génese não há sexo entre a pessoa com deficiência e o assistente. O objectivo do assistente é…por exemplo, uma pessoa com muito pouca mobilidade e que tenha muita dificuldade em ter prazer sexual com ela própria – masturbação, o ou a assistente sexual ajuda nesse processo, mas é a mão da pessoa com deficiência que faz essa exploração, com a força da mão do/da assistente. Não é uma mão qualquer em cima do teu corpo, é a tua própria mão, onde tu quiseres, como tu quiseres, mas com o auxílio de uma segunda pessoa. Depois ainda há outro tipo de assistência, necessária numa relação sexual, onde já estão envolvidas duas ou mais pessoas. Imagina que uma dessas pessoas tem dificuldade em fazer o movimento necessário para a relação acontecer – o assistente sexual poderá auxiliar nisso. Poderá estar na relação, mas nunca activamente. Portanto, está lá, mas apenas para auxiliar na realização da mesma. Outra situação, por exemplo, é uma relação sexual entre duas pessoas com deficiência.

Sim, sim. Eu conheço um casal assim. Têm dois assistentes, um para cada um deles.

Lá está. Têm? A sério?

Sim, vêm de Espanha, precisamente.

Fantástico. Que bom para eles. E depois há aqui uma outra situação, que ainda não está muito bem delimitada. Por exemplo, a Ana não é assistente sexual, é pessoal, mas até que ponto eu não poderia pedir à Ana que me ajudasse a pôr uma lingerie mais sensual? Ou, imaginando que eu não preciso de ajuda para o acto em si, mas preciso ajuda para me limpar. É um assistente pessoal ou é um assistente sexual? Ainda há coisas não estão muito bem definidas. Porque no fundo as tarefas que eu mencionei já não fazem parte do acto em si, são coisas extras ou posteriores.

Mas é importante que se criem condições em Portugal para formar esses assistentes. A sexualidade é um direito.

Aos 17 anos fui a uma conferência sobre sexualidade na deficiência e foram mencionados vários exemplos de progenitores que masturbavam os filhos. Isto é uma coisa completamente impensável! Por vários motivos lógicos, emocionais, de privacidade e dignidade humana. E isto acontece em Portugal, mais no interior, onde os pais acabam por dar este prazer sexual aos filhos… É algo sobre o qual o Estado devia ser responsabilizado. A sexualidade é um direito humano, logo o Estado tem de dar resposta a este tipo de casos. Obviamente no que toca a encontrar um parceiro sexual, estamos, teoricamente, muito teoricamente, em pé de igualdade. Visto que todos nós passamos por isso.

Quando falamos em sexualidade, falamos também da relação com o nosso corpo e é uma coisa por que toda a gente passa. Toda a gente tem de encarar isto como uma realidade. Faz parte da nossa vida, de todos nós.

Mas eu estou confiante que mais dia menos dia também haverá assistentes sexuais em Portugal.

Para terminar esta conversa, gostava que desenvolvesses a ideia que deixaste expressa no teu blogue e que diz: “Quero viver num mundo onde todos os Dom Quixotes têm lugar seguro para viver as suas aventuras de cavalaria e enfrentar todos os seus monstros e gigantes.”

Dou muito valor à saúde mental, para mim é das coisas mais importantes na vida. Porque…ok, eu tenho uma deficiência, é o que é, não há volta a dar, nem há muito mais para explorar, digamos assim. Mas existem todos os desafios que passam por “viver com a deficiência” e “viver num mundo que ainda não está preparado para viver com a deficiência”. E além disso, como é que eu hei de explicar… venho de uma família toda ela bastante emocional, digamos assim…e também há historial de doenças psicológicas na minha família – eu própria tenho depressão crónica há cerca de 15 anos – tenho ansiedade, sou obsessiva e compulsiva, mas para mim tudo isto é muito natural. Sou uma pessoa que fala abertamente sobre tudo. Essa frase que eu escrevi vem da minha necessidade de querer falar sobre isto tudo, sem ter vergonha, sem ter medo. E por um lado também gostava de ser compreendida, sabes? Porque, na verdade, quantos de nós não enfrentamos demónios e monstros? Todos nós temos desafios ao longo da nossa vida e é super natural a nossa mente levar-nos a sítios estranhos. E eu sinto muito essa necessidade de falar com as pessoas e tocar em assuntos mais “chatos”. E as pessoas não gostam de falar de problemas, nem sempre gostam de pôr a cabeça a funcionar e eu não sou assim. Eu gosto de falar sobre as coisas, gosto de tocar nas feridas e tenho um humor, muito negro e sarcástico, “eu vou falar sobre aquilo que tu não queres falar”. Gostava de sentir mais abertura por parte das pessoas para poder falar e dialogar sobre isso, sobre monstros e gigantes. Eu acho que é muito por aí. Pelo menos eu espero contribuir com aquilo que eu faço na vida e com o meu blog.

11 Mar 2021

André E. Teodósio: “O meu trabalho é a desmontagem de um dogma”

André E. Teodósio tem 43 anos. É encenador, músico, cantor, actor, escritor, apaixonado, excêntrico, activista e defensor das comunidades mais desprotegidas. É um dos directores do colectivo Praga e foi considerado em 2012 pelo jornal Expresso um dos portugueses mais influentes

 

A distinção do Expresso em 2012 é uma responsabilidade muito grande. Sente-se bem nesse lugar?

Isso surge de uma coisa muito específica, provavelmente de eu ter conseguido, muito cedo, acesso a determinados modos de produção que outra pessoa da minha idade anteriormente não tinha. E acho que tem a ver com a acessibilidade aos modos de produção … não sei se terá necessariamente a ver com a própria prática artística em si. Não faço a mínima ideia. Mas isso também não me motivou muito, porque as relações de escala laborais variaram muito mesmo quando fui nomeado. Creio que sempre lutei ou pautei a minha prática artística por uma saída do preponderante. Não sei se terá alguma influência mas sei que de alguma forma contribuí para a disponibilização de pessoas, de práticas, de modos de olhar o mundo e de formas laborais que eram bastante atípicas no seio institucional. E até mesmo enquanto prática colaborativa e solidária com várias pessoas, portanto isso se calhar poderá ter sido mais visível para as pessoas. Mas isso já existia com outros colectivos, tanto no Colectivo Praga – eu não estou lá desde a fundação – como no Cão Solteiro, na Sensurround, na Casa Conveniente como em muitas outras estruturas que desapareceram ou por asfixia ou simplesmente por mutação de projecto. Portanto, não sei em que sentido é uma grande influência porque eu é que me senti sempre influenciado por muitas coisas. Ao contrário de Harold Bloom não tenho nenhuma “angústia da influência”, pelo contrário acho que é mesmo a contaminação … bom, dizer esta palavra hoje em dia … mas é a contaminação que é importante, que é fundamental.

Mas é muitas vezes mal compreendido, ou mesmo mal-tratado. Já o ouvi dizer que isso acontece desde sempre na sua vida.

Há duas coisas, uma é a maneira como eu me apresento fisicamente, isso desde cedo foi bastante problemático porque não foi consentâneo com aquilo que era esperado de um rapaz, eu sempre vesti roupas da minha mãe. Mas quando não me apetece “levar com nada” mascaro-me de pessoa – entre aspas – normal. Na maior parte dos dias sou insultado. Conto esta história várias vezes, eu estava na rua com um amigo e disse-lhe que todos os dias era insultado e ele responde-me que isso era com certeza um exagero, nisto passa um carro e ouve-se “eh paneleiro”. Todos os dias é a mesma coisa, há um insulto. Porque a minha indumentária, os meus gestos, a minha apresentação física não se coaduna com uma ideia cristalizada daquilo que é um homem e então há esse lado, que é um lado diário, que infelizmente perdura ao longo de 43 anos. Ainda no outro dia a minha mãe me ligou e disse “espero que não tenhas saído de vestido” – depois do lançamento do livro da Joacine Katar Moreira eu estava de vestido – “porque estamos a atravessar momentos políticos em que isso já não é possível. As ruas estão vazias há uma direita em ascensão”. Com 43 anos ser a minha mãe a ligar-me, preocupada com uma coisa que nunca foi uma preocupação sua, é bastante significativo de uma consciência do espaço que eu quero ocupar e do espaço que a sociedade me está a dar ou não. Depois há um lado, eu não lhe chamo de irreverência mas sim de consciência crítica, em relação a tudo o que me é dito. Eu sou gémeos, tenho este traço de não estar contente comigo próprio, portanto eu também exijo à sociedade estar à altura do não comprometimento com uma ideia fixa daquilo que a sociedade quer para si própria. E tendo isso em conta coloco sempre a dúvida. Alguém me diz que “não se pode fazer assim”, ou que uma determinada coisa “é assim”, e eu automaticamente questiono e tento reflectir as razões que levam a criar determinados tipos de dogma. E depois não tenho pejo em dizer, porque a minha liberdade, a liberdade pela qual os nossos pais lutaram, é a liberdade democrática e de comunicação e não assente numa mediação por gestos vazios, uma espécie de terceira via que é bastante característica de pessoas que cultivaram uma esquerda profunda e que se desviaram para uma esquerda centro; a ideia de um aburguesamento dos ideais e da liberdade, uma higienização dos comportamentos, até críticos, dizia eu, não vou abdicar dessa liberdade conquistada pelos nossos pais e de alguma forma conquistada por mim diariamente através da violência a que estamos todos sujeitos, a que muitos de nós estamos sujeitos, por discordarmos, por nos vestirmos de maneira diferente ou por termos ademanes que não são esperados. Não vou abdicar dessa liberdade. Até ao momento em que tiver que abdicar dela. E depois logo decido se saio de novo, se vou para outro sítio, ou se estou pronto para dar o corpo às balas. Mas não aceito uma ordem de ninguém. E acho que isso é muito comum em muitas pessoas, na verdade eu só estou provavelmente num spot light qualquer, ou estive num spot light qualquer, que permitiu isso ser visível. Mas não acho que a luta seja feita sempre de uma forma visível, há muitas pessoas que estão a fazer a mesma luta que eu, mas uma luta invisível.

Em Setembro de 2020, a sua criação Inverted Landscapes apresentada em Berlim, foi alvo (segundo palavras suas) de abuso de poder, xenofobia, queerfobia e racismo, ao serem expulsos da rua por um segurança da Axel Springer. É um forte ataque à liberdade individual e artística. O que é que aconteceu?

Tendo decidido deixar de usar o espaço do museu e ir para o espaço público confrontamo-nos sempre com vários problemas em relação ao nosso tipo de comportamento. Muitas pessoas acharam que era indigente apesar de ainda não haver a obrigatoriedade do uso da máscara e mantermos o distanciamento. Havia pessoas que passavam por nós diariamente na rua e nos chamavam inconscientes indigentes etc., por estarmos a ensaiar em jardins públicos. E diziam-no bem alto para serem escutados por uma audiência.

Mas essa situação não aconteceu em Berlim?

Foi cá em Portugal, no jardim da Estrela e no jardim do Campo dos Mártires da Pátria. Depois em Berlim aconteceu que um senhor, ao ver um homem negro e duas mulheres que não parecem as mulheres icónicas ou que não são consentâneas com uma ideia canónica, a ocupar um espaço público e a “fazer umas coisas esquisitas” expulsou-nos da rua. Expulsou-nos da rua sem qualquer tipo de pejo em dizer que a rua lhe pertencia. Que os monumentos lhe pertenciam, que o prédio lhe pertencia, não a ele mas à Companhia, e que ele estava a zelar por ela. O que gerou uma grande insegurança em relação àquilo que para nós era um território de liberdade. E veio provar de facto – e a performance é sobre isso, Inverted Landscapes – que nós não temos território em lado nenhum. Não há espaço para nós. Há uma historiografia, mas essa historiografia não tem espaço. Pode ter determinadas comunidades que o abraçam determinados “safe spaces” mas são sempre coisas enclausuradas, reservas onde nós nos podemos auto qualificar ou manifestar lá dentro mas que não são transversais à sociedade toda.

Quem são esses “nós” de que fala?

Pessoas que têm opressões variadas, pessoas precarizadas, marginalizadas etc.

As categorizadas “minorias”?!

Exacto. Depois o episódio final deu-se quando eu ia a entrar no avião com a Ana Tang e o Paulo Pascoal (actores da performance). A mim, enquanto pessoa aparentemente branca, não me foi colocado nenhum entrave para entrar no avião, mas a Ana Tang e o Paulo Pascoal foram subordinados numa espécie de avaliação da sua nacionalidade e da sua aptidão para entrar naquele voo (Berlim/Portugal) …eu não posso falar muito sobre isso porque na verdade o processo está em tribunal na Alemanha com o caso do Paulo. No caso da Ana, perguntaram-lhe se falava inglês – porque presumiram que ela era “não europeia” – e supõem uma capacidade comunicativa que não é a real. Em relação ao Paulo foi um entrave do princípio ao fim, foi chamado pela polícia, foi levado pela polícia …foi bastante grave.

Só porque é negro?

Porque é um negro angolano. E viajávamos os três em conjunto. Mas qualquer pessoa que não seja coincidente com os interesses da maioria tem sempre entraves de acessibilidade a recursos e meios.

Mas eles não queriam que o Paulo entrasse no voo? Qual a justificação dada? Porque é negro?

Sim, porque é negro e angolano e estamos a atravessar uma pandemia por isso não podia ir no voo.

Como assim?

Eu perguntava “mas se for um americano”? Responderam “um americano é um europeu”.

Um americano não é um europeu.

Exacto. Foi o que nós dissemos. Muito grave, foi muito grave. Foi mesmo muito grave. Nós tínhamos uma declaração da embaixada e o Paulo tinha um comprovativo de residência. Pedimos para fazer uma chamada para a pessoa da embaixada que nos contratou e que nos passou as declarações e eles não nos deixaram ligar. Estavam sempre a inventar mecanismos e razões para a não inclusão ou aceitação do Paulo no voo; para o expulsar.

Mas foi detido?

Ele foi detido, entre aspas. Não foi levado algemado mas foi detido pelo SEF. Foi levado para uma sala própria para ser inquirido.

Conseguiram trazê-lo?

Entrámos no último minuto antes de fechar a “gate”. Foi horrível. Foi mesmo horrível.

Disse numa entrevista recente que o próximo passo é a identity bender. “Hoje sou uma cadeira, amanhã sou uma flor. ” É sem dúvida um lugar de total liberdade – o oposto do que aconteceu em Berlim – e eu pergunto-lhe, para si há um Ser e um estamos a ser?

Sim, há duas coisas. Eu estou a falar de alguém que já teve capacidade de ter uma identidade firmada, o que não é tão comum assim socialmente. As pessoas negras, migrantes transgénero, a sua identidade ainda não está firmada não têm o seu espaço. E parece-me um pouco impossível poderem sair de uma coisa que ainda não conquistaram ou a que não tiveram direito. Acho que há duas coisas, uma é o meu estado a partir do estado onde eu tenho capacidade de escolha e outra é alguém que não tem capacidade de escolha. Quem não tem capacidade de escolha precisa de ter todos os meios para poder conquistar a sua identidade. Em relação a mim, acho que já tendo uma identidade firmada não porque a quis ter, mas porque me foi dada socialmente, processualmente, legalmente até, o meu trabalho é o mesmo de uma desmontagem de um dogma. Acho que as pessoas podem ser o que quiserem. Mas também podem encarar a sua vida como “estando a ser qualquer coisa” como estando a ser um protocolo de verdade, como estando a ser um protocolo legal, como estando a ser um protocolo médico, etc. Então o meu processo de criação o meu processo ontológico vá, é essa ideia de que “eu não tenho de ser” mas “eu posso estar a ser o que quiser”. E o “estar a ser” está em relação com o mundo. Eu sou o peso de uma cadeira. Os nossos corpos em termos quânticos são isso tudo – já existe – é uma retração, uma simplificação da linguagem para nos entendermos a nós próprios ou para nos espelharmos através de uma imagem. Mas na verdade nós já somos muita coisa, uma matéria descartável dessa força e dessa vitalidade que é a energia e que é a vida. Somos uma matéria descartável disso, nós existimos mas o que conta é o “o que é”, o que está a sair do nosso corpo, porque é aí que a nossa vitalidade, a nossa energia está a surgir, porque o nosso corpo vai lentamente sendo abandonado como uma metamorfose. A minha identidade está relacionada com as várias partes de uma totalidade na qual eu faço uma morfose consoante a minha condição. Quando o meu cão se senta ao meu colo eu sei que estou a ser alguém que tem uma relação com o cão, mas também estou a ser uma cadeira e tenho um propósito uma finalidade. E pronto tem a ver com isso, sair de um dogma daquilo que me é imposto que é “eu sou o André sou um homem branco blá blá blá” e poder sair desse simplismo que é a minha presença no mundo ou a nossa presença no mundo.

A arte é em si uma identity bender? Onde tudo é tudo e onde tudo é nada? O sítio para o pensamento?!

Sim, é uma ferramenta cognitiva é uma forma de entender o mundo mas que provém de um excesso de tempo e de um excesso de meios. Só quem de facto tem algum tempo livre e alguns meios consegue estar nesse processo em que sai da prisão de ter de estar no mundo de uma determinada forma; a prisão do corpo, a prisão da língua, a prisão da alimentação, a prisão da sociedade, a prisão legal…e acho que a arte é essa saída da prisão.

A libertação de tudo?

Sim, é dobrar a língua. É partir a língua que aprendeste…é partir a identidade que aprendeste, partir o teu nome, partir a nacionalidade… é partir. É sempre partir. É amplificar uma experiência a partir desses suportes… sim, é isso… ampliar a experiência.

A propósito de partir, agora noutro contexto, há um relatório anual da Comissão Europeia Contra o Racismo e a Intolerância (ECRI) do Conselho da Europa que alerta para o crescimento dos discursos de ódio, o aumento do racismo, da discriminação racial e da intolerância. Estão a surgir vários movimentos conservadores, ou ligados à extrema-direita contra a chamada “ideologia de género”; rejeitam a distinção de sexo e género, argumentando que qualquer género separado do sexo biológico não deve ser reconhecido. O que podemos fazer para combater estas ideias?

Não sei…é uma resposta que não tenho para dar. Não será uma acção colectiva como foram em anos anteriores … mas pequenas bolhas de mudança. Existem vários grupos activos na reivindicação de direitos e de mudanças e todos eles têm de ser escutados pelo poder e de alguma forma fortalecidos pela nossa presença e pela nossa audiência. Agora …não sei na esfera civil como é que isso politicamente é possível uma vez que a fragmentação que existe na ordem civil existe também no poder. E aí já estamos a falar no âmbito global e geral onde todas as mudanças e todas as reivindicações pequeninas podem acontecer, ou não, mas que não influenciam ou abanam o status quo desse poder. Não sei como é que se faz. Mas tenho tentado estar engajado politicamente e socialmente de diversas formas … mas não sei mesmo como é que isso tem alguma consequência geral a não ser uma consequência prática de os grupos onde os quais me incluo conseguirem conquistar algumas coisas. Pode haver uma mudança através de todas estas mudanças pequeninas mas ainda é muito difícil vê-las e acho que passam por estratégias maiores como repensar a participação social, repensar aquilo que são os meios de comunicação, repensar a responsabilidade na internet individual e também nacional, repensar a economia, repensar a distribuição, repensar a presença exterior de determinados países e a sua relação ou conivência com determinadas formas de agir … muitas coisas que é preciso ir fazendo e que eu acho que estes microcosmos podem ir desencadeando aos bocadinhos. Não acho que a arte tenha de pensar sobre estas coisas, mas acho que a arte que perpetua a lógica que até aqui chegou não é uma arte que sirva neste momento. Não é que seja negativa, mas não é operativa para aquilo que é necessário neste momento.

Para terminar, pedia-lhe que desenvolvesse esta ideia que li num post seu. “Um determinado tipo de mundo está a definhar, preso aos seus costumes e práticas de sustentação do seu status quo, mas nós continuamos a ser a seda vibratória impossível de ser detida. Porque até à morte e nela, “A body convulsion / is our dance version”.”

Isso fazia parte dos textos do Inverted Landscapes, e tem a ver com tudo isto na verdade. Nós não vamos parar, nós sabemos que estamos aqui numa fase transitória, e que somos simplesmente carne para esta vida ganhar mais força mais eco e, portanto, há uma coisa que é superior a nós. Não precisa do nosso corpo e da nossa voz, temos de ser obreiros dessa força e dessa voz e caminhar para a frente porque ela vibra em nós. Essa mudança vibra em nós, não precisa de nós para nada. Quando já não estivermos à altura daquilo que a vida nos exige, ela abandonar-nos-á mas o nosso sopro vai continuar e a nossa matéria vai continuar, e os ecos das mudanças que fizermos vão continuar para os outros; as conquistas sociais, as conquistas estéticas etc. Então é isso, esta força da vida que é uma seda vibratória. É uma coisa que se mexe sem nós, neste corpo que está aqui entre um espaço e um tempo que habita este planeta. E é isso, esta performance é isso. Não parar. Nós não vamos parar. Mesmo que venha um senhor dizer-nos que não podemos estar ali, que no teatro nos digam que o que fazemos é dança com texto, que os políticos nos digam que nós não podemos existir, mesmo que nos insultem todos os dias na rua, nós vamos avançar. Vamos avançar com as nossas saias, com as nossas cores, com os nossos corpos, com as nossas identidades por conquistar, outras já em completa transformação, vamos avançar. Vamos avançar e não vamos parar.

ENTREVISTA Teresa Sobral
FOTOS Inês Oliveira

19 Jan 2021

Ariana Furtado, professora: “A escola tem de servir para educar para a empatia”

Ariana Furtado tem 44 anos de idade, é professora e coordenadora da Escola Básica do Castelo em Lisboa. É uma mulher com um sorriso contagiante, ideias fortes e um enorme sentido de justiça
Gostava que começasse por falar do projecto na sua escola “Com a mala na mão contra a discriminação”.

Este projecto nasceu de muitas pessoas, sobretudo da Simone Andrade do Teatro da Voz. A Simone estava com uma oficina nesta turma de 4.º ano que se chamava “como ler os direitos humanos”, onde todos faziam uma viagem pelos direitos humanos e como eram aplicados em vários países. Como é que as crianças olhavam para a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o que é que no dia a dia delas seria diferente se a levassem a sério. E numa das sessões estivemos analisar os manuais escolares que abordavam os “ditos” descobrimentos e… aquilo foi tão arrasador em termos de linguagem histórica que eu fiquei chocada. Eu que já sou professora há tantos anos, ao ver a forma como a Simone abordou o tema e a facilidade com que os meus alunos respondiam às perguntas que ela fazia – a uma nova visão que ela trouxe para dentro da sala de aula, e não a visão apresentada no livro de Estudo do Meio sobre a classificação dos povos ao longo da história, no mundo – olhei para a minha turma, com miúdos vindos de várias partes do mundo, uma turma absolutamente heterogénea com miúdos da Ásia, de África, do continente americano, e percebi que nós estamos a fazer praticamente tudo errado nas escolas. Se queremos educar crianças para a cidadania, para a intervenção, para a discussão de ideias, para serem capazes de emitir uma opinião, e os manuais escolares só apresentam uma visão – e temos de ser francos, o ensino em Portugal está muito assente nos manuais escolares – tem que ser por aí que nós temos de começar a desconstruir um pouco e a dar espaço para eles encontrarem formas de conseguir emitir opiniões, fazer perguntas.

Está a dizer que os professores estão formatados para passar apenas informação?

Eu não quero generalizar não é nada disso, mas nós passamos informação mas não construímos caminhos para que eles possam dialogar, conversar sobre as questões. Ora, é isso que faz com que nós enquanto civilização avancemos, discutir sobre o que estamos a aprender. Mas não há tempo nas escolas para a discussão. É tudo muito formatado e o que os manuais apresentam “é o que os manuais apresentam” mas se apresentam informação, ela tem que ser correcta.

Os manuais que falam dos descobrimentos enaltecem apenas os feitos dos portugueses e nunca falam das diferentes culturas que já existiam nessas terras e a escravatura é apresentada como uma simples troca de produtos.

Exactamente, os povos europeus chegaram e já lá estava vida, cultura, civilizações, diferentes formas de organização; algumas bem mais avançadas do que as europeias e que não foram valorizadas. Nos manuais escolares europeus não há acesso a essa informação. No manual de Estudo do Meio da minha turma, os escravos continuam a surgir como um produto, como disseste, e muitas vezes o que eu sinto é que nós professores não somos capazes de provocar a discussão e a dúvida no aluno, não se discute se é correcto em termos de direitos humanos, se na altura já era correcto ou se não era, e isso é muito importante.

E surgiu assim o projecto.

Sim, depois juntei-me a várias pessoas, algumas ligadas ao associativismo, com as quais ia partilhando estas ideias e criamos um conjunto de oficinas sobre o tema “as relações entre todos” na sala de aula, nos recreios, fora da escola, na vida. Como é que podemos olhar-nos e discutirmos ideias. Se determinada situação faz sentido – mais do que ser correcto ou não correcto – se faz sentido ou se não faz sentido; se evoluímos, se não evoluímos; porque é que as coisas acontecem, porque é que as coisas não acontecem… e foi assim que este projecto começou.

Quer fazer uma viagem rápida pelas oficinas?

Uma das oficinas era feita com “Role Plays”. Muitos destes alunos pertencem a famílias que estavam a passar grandes problemas, por exemplo ao nível do arrendamento das casas em Lisboa e assim criamos algumas situações em que eles tinham que dramatizar como é para uma família negra, uma família asiática ou cigana conseguir arrendar uma casa numa capital como esta. E fomos discutindo estas situações que levavam as crianças a pensar sobre “como é que vive o outro”, será que a vida é fácil para o outro? Também é uma forma de educar para a empatia e percebermos “será que sou só eu que vivo estas condições?”. Outra era “como é que eles olhavam – por exemplo – para os mapas?”. Porque nos nossos mapas nas escolas a Europa vem sempre destacada, a Europa que é dos continentes mais pequenos vem destacada com uma importância tal que quase que nos induz que é o maior continente do mundo. E não é. Estamos às vezes tão euro centrados e tão confortáveis, que não conseguimos sair desse sítio.

Já que falou na habitação, há uma tendência das sociedades em geral, para criar zonas de habitação específicas para as pessoas negras. Os discursos populistas e nacionalistas usam como arma de arremesso seres humanos que gostam de apresentar como símbolos de fraqueza, doença ou perigo. Os alvos são na sua maioria essas pessoas que já sofrem de discriminação. Assustam-na estes movimentos de ódio?

Assusta muito, mas não me surpreende. (pausa) Quase que me custa dizer isto mas é um pouco a essência da natureza humana. (pausa) Eu sei que estou rodeada de pessoas – e quando falo da essência humana não quero ser ofensiva mas tenho que ser brutalmente directa – pessoas que convivem comigo, que falam comigo, que são capazes até de me elogiar diariamente, de me pedir ajuda mas que são pessoas cheias de preconceitos. Bom… como é que eu coloco isto… isto é um assunto muito delicado… a forma como este partido (Chega) que ninguém quer dizer o nome, habita neste terreno… é tocando nos mais vulneráveis, nas pessoas que estão mais expostas à fragilidade, e em todas elas tocando em termos de pele: nas pessoas brancas mais vulneráveis dizendo “olhem quem mora ao vosso lado e vos está a tirar regalias”… nós negros, ciganos, asiáticos, que moramos cá, que crescemos cá ou nascemos cá e não somos nunca reconhecidos como tal.

Pode-se falar de crueldade.

É mesmo a forma mais cruel de se aproveitar de uma situação… através de uma pessoa em dificuldade. Porque não tenhamos dúvidas, as pessoas que votam nesse partido – eu vou falando com muitas, mesmo muitas pessoas – são pessoas que passam por muitas dificuldades financeiras e económicas. E em termos de estudos, têm o nível sócio cultural que se considera “aceitável” na sociedade hoje em dia – seja lá o que isso for – e são pessoas que acham que é “o outro” que lhes está a roubar espaço, que lhes está a roubar rendimentos e é assim que estes partidos crescem, é assim que estes partidos ocupam espaço na sociedade.

Aproveitam-se sempre de situações de crise.

Porque as pessoas retraem-se, fecham-se sobre si próprias e tornam-se egoístas. (pausa) É humano, quase que me atrevo a dizer isso. E é por isso que a escola tem este papel tão importante para mim. Porque a escola também tem de servir para educar, para educar para a empatia, para mostrar que quando sofremos, às vezes, sofremos todos, não é só um determinado sector da sociedade ou uma determinada cor de pele ou uma determinada pessoa. Sofremos todos. Claro que quando um partido como este, que está na Assembleia da República e tem imensa visibilidade televisiva, diz que há pessoas que por terem determinada cor ou determinada etnia são mais prejudiciais à sociedade do que outras, há outras pessoas que tendencialmente vão achar que sim, que essa pessoa está a lutar pelo bem delas e isso… é quase… humano. E como é que se combate isso? É muito difícil, é muito duro.

Há um estudo da European Social Survey que diz que em Portugal quase 50% da população continua a achar que as pessoas podem ser inferiores em função da cor da sua pele ou pela sua pertença étnico-racial ou cultural. Será herança do nosso passado colonial?

É uma herança pois. E não nos podemos esquecer que nós estamos, enquanto país, com um atraso enorme a todos os níveis, porque vivemos tanto tempo fechados no medo… acho que a ditadura portuguesa fez um dos seus trabalhos mais profundos nas ditas colónias porque conseguiu até convencer uma grande parte das pessoas que viviam lá, que eram inferiores.

Há muitos filhos que herdaram dos pais essa maneira de ver o outro?

Até hoje é uma mentalidade que ainda perdura. Desculpam-se com frases do tipo “ai agora por tudo e por nada é tudo racismo?! Tenho imensos amigos negros e gosto de música cigana. Claro que se tiver de viver com uma família negra ao lado prefiro não viver.” E apresentam uma lista de razões.

Tais como?

São muito barulhentos… e os cheiros… a comida… as pessoas dizem-te isso assim. Já me disseram várias vezes, frontalmente, essas coisas. Há pessoas que às vezes falam comigo como se não vissem a minha cor quando é aquilo que eu acho que de mais profundo tenho, e quando falo de cor é porque acho que a cor transporta muito daquilo que eu sou como pessoa. A minha pele fala por mim, sou muito transparente nisso. Mas às vezes há professoras minhas colegas que falam comigo como se eu não fosse negra e não tivesse nascido em Cabo Verde. Como se eu não tivesse crescido a viver também muitas dificuldades para poder continuar a estudar, conseguir entrar na faculdade e no mundo laboral. Dizem coisas como “oh pá os africanos têm isto e aquilo, gostam muito de dançar”, e eu pergunto “que africanos, mas estás a falar de que africanos (riso) mas quem são esses africanos de que falas?”

Para as pessoas em geral, alguém negro é imediatamente africano, não é europeu ou americano?

Sim. E as coisas que são ditas às vezes são muito agressivas. Faço questão de traduzir as diferentes formas de ser, numa mais valia para os meus alunos. Mas eles continuam a viver em sociedade e alguns têm famílias onde podem ouvir impropérios ou “já não suporto aquela preta” ou “aquele cigano não sei quê”. Isto só muda quando toda uma sociedade estiver aplicada de forma séria. Quando educarmos para o antirracismo. Quando esta questão for levada a sério e de forma transversal e para isso temos de implicar seriamente todos os professores, os pais e todos os adultos que estão com crianças, todos.

O próprio Estado.

O Próprio Estado que já devia ter começado – já vai muitíssimo atrasado. É preciso uma condução séria na forma como são abordadas estas questões com os alunos. Por exemplo, a questão do tratamento que é dado aos nomes dos alunos. Se nós recebemos um aluno africano ou asiático e estamos a falar para ele e para os pais e dizemos “ai eu não percebo nada do teu nome não sei como é que se pronuncia, é muito difícil”… não estou a dizer que isto é racismo, mas é uma forma de negar a diferença. É uma questão de respeito básico e nesse aspecto o colonialismo fez um excelente trabalho por nós. Conseguiu hierarquizar de forma muito vincada os povos.

Há estudos que provam por exemplo, que 80% dos alunos dos PALOP são orientados para os cursos profissionais, e dos 20% que fazem outro trajecto apenas 3% podem chegar ao ensino superior. São desigualdades estruturais no acesso à educação que, por sua vez, têm implicação no acesso ao emprego qualificado. Como professora e coordenadora do pré-escolar e 1º ciclo, que tem a dizer sobre isto?

As dificuldades ao longo do caminho são muitas, muitas e começam primeiro na escola. É preciso intervir muito cedo. Quando essa questão chega a um encaminhamento para as vias profissionais, nas bases já esteve tudo mal. Logo no primeiro ciclo nós começamos a assistir – por exemplo – a alunos que têm explicação de português, de matemática e a muitas famílias negras que não têm possibilidade de o fazer. Depois a competição é enorme logo desde pequeninos, o que é péssimo. O estímulo para a competição é péssimo, é mau em todos os sentidos. Deve haver um estímulo à aprendizagem, à troca de ideias, à entreajuda, à empatia e o resto vem por si. Se tivermos predispostos enquanto crianças a ajudar o outro, a acompanhar o outro na sala de aula a aprender com o outro estamos também a estimular o nosso colega.

Para que avancemos juntos.

Exacto, para que avancemos juntos como pares, e a autoestima deles sobe. E muitos desses pais, dessas famílias negras não têm – como já disse – possibilidade de pagar explicações, não têm como acompanhar os filhos nos trabalhos de casa, acompanhá-los nos inúmeros desafios que às vezes surgem na escola para serem feitos em casa, porque não têm tempo. Porque se levantam às cinco da manhã para trabalhar, porque acumulam 3 e 4 empregos por dia. E essas crianças quando voltam à escola e vêem que alguns colegas tiveram tempo para descansar, que tiveram tempo para fazer os trabalhos, para ler um livro, que alguém leu um livro com eles… é óbvio que isso já está a indicar um caminho; por isso é que a intervenção no primeiro ciclo tem de ser muito importante a esse nível. Porque depois, vão-se somando dificuldades pelos ciclos fora, ao ponto em que o aluno chega ao 9º ano e já não se sente capaz.

Sempre teve turmas muito heterogéneas? Alguma história que se destaque?

Tive uma aluna, uma menina muito resistente; saiu do Congo com o pai e o irmão, conseguiram passaporte português através de uma ascendência dele e conseguiram chegar a Portugal. Notava-se nela uma maturidade muito diferente das outras crianças, tinha oito anos, mas uma maturidade muito diferente das crianças da idade dela. Tinha uma história de vida lhe deu uma necessidade… estas crianças olham para a escola como uma arma, ela sentia que a arma dela para sobreviver era o conhecimento. O conhecimento era a arma para poder argumentar com o mundo.

Para terminar, gostava que nos dissesse porque escolheu fazer esta entrevista no Teatro?

Na procura para dar voz a todos os alunos considero que a arte e a cultura são importantes para o brotar da imaginação, da consciência crítica e libertação de tudo o que temos cá dentro. Procuro levar sempre os meus alunos ao teatro, ao museu, a distintas oficinas e o Teatro da Voz tem sido um parceiro incrível e de construção e desconstrução de tudo o que pensamos saber.

ENTREVISTA Teresa Sobral
FOTOS Inês Oliveira

19 Dez 2020

Maria João Vaz, actriz e artista plástica: “Sinto-me mais feliz do que nunca”

Maria João Vaz, actriz e artista plástica, nasceu num corpo de homem com o qual nunca se identificou. Manteve o seu lado feminino em segredo durante a maior parte da sua vida, mas aos 56 anos de idade teve a coragem de se assumir finalmente como mulher

 

[dropcap]C[/dropcap]om que idade começou a sentir que era uma mulher num corpo de homem?

Olhando retrospectivamente para a minha vida, o primeiro sinal de alguma coisa fora do comum, foi aos 5 anos. Sei exactamente a idade porque frequentava a pré-primária. Eu gostava imenso de trocar de sapatos com as minhas colegas de aula… era uma sensação indescritível… um prazer enorme e desconhecido. Aquela escola era péssima, havia vários castigos, levar reguadas na mão, ficar virada para um canto, e havia um castigo para os meninos, em particular, quando se portavam mal: vestiam-lhes um bibe de menina cor de rosa que formava uma saia com um laço atrás e uma fita no cabelo, e faziam-nos subir para cima da mesa. Era suposto ser a suprema humilhação, mas para mim não era, para mim era muito prazeroso. Nos verões com um amigo, fazíamos espectáculos para os nossos pais e irmãos, vestidos com roupas da minha mãe, com brincos de mola, malinhas e maquilhagem…, nós gostávamos imenso. Depois, não me lembro – se calhar é um recalcamento qualquer…

Deixou de fazer isso?

Sim, a partir de uma certa altura deixei de fazer isso em público e passei a fazer em privado. Com roupas das empregadas lá de casa, com as roupas da minha mãe, sentia-me muito bem, mas não havia qualquer consequência. A questão é que naquele tempo – estamos a falar do início dos anos 70 – não havia informação nenhuma, não se ouvia falar de homossexualidade nem de outras sexualidades. O meu pai era uma pessoa um bocadinho machista e o meu irmão mais velho, que era o meu “role model”, era um cowboy, um conquistador, o rei dos skates, do surf e o meu protetor, mas apesar de eu o amar muito, ele tinha uma atitude agressiva para tudo o que era relativo a homossexualidade, que eu – apesar de não me identificar – sentia-me magoada. Para mim era claro que o que eu fazia secretamente não era normal e era condenável, e pronto…toda a vida mantive uma vida paralela em que me assumia como mulher em privado. Levava coisas para a casa de banho às escondidas da família, ou vestia-me dentro da cama – eu dormia com mais 2 irmãos no quarto – e vestia-me dentro da cama e assim ninguém sabia. Agora, eu conscientemente, não sabia o que aquilo significava. Achava que era uma pessoa estranha, uma pessoa esquisita e que mais ninguém era assim, por isso nunca me abri com ninguém e fui sempre uma pessoa muito frágil e sensível, nunca gostei de confrontos … como o dinossauro do Toystory (filme da disney) “i don’t like confrontations”. Quando fiz o meu “coming out” as pessoas disseram “nunca imaginámos, nunca houve qualquer indício”, isso significa que fiz um bom trabalho para me proteger e manter tudo secreto.

Namoradas?

A minha primeira namorada, é a mãe das minhas filhas. Mas apesar de ter sido namorado dela e de termos casado nunca deixei, por um momento, a minha prática de Cross-dressing e desejar não ter o que tinha entre as pernas, apesar de ter 3 filhas. Estive sempre muito presente na vida delas, os biberões, as fraldas, os banhos, o adormecer, o acordar, o vestir e despir, na grande maioria das vezes era eu que tratava disso. Gostava muito de ter sido mãe. Percebi cedo que havia uma grande incompatibilidade emocional com a minha parceira, mas tinha 3 filhas que dependiam emocionalmente de mim, e a coisa foi-se arrastando. Nunca imaginei ser uma pessoa que se divorciasse ou que alguma vez me fosse assumir como mulher transgénero.

Também não havia muita informação.

Pois. Com o aparecimento da internet comecei a ver coisas, a informar-me. Ainda casada, a disforia era tanta, que mesmo com pouca informação comecei a medicar-me, mas depois tive medo pela minha saúde e parei. Comprava todo o tipo de coisas na net que me tornassem mais feminina. Foi um processo muito lento. Às vezes, preparava-me, pegava no carro e ia meter gasolina ou comprar qualquer coisa, e falava com as pessoas que me recebiam e atendiam como mulher. Uma vez fui de carro até Madrid fazer um workshop com a directora de casting Sara Bilbatua. Completamente “en femme”, pus gasolina, fiz check in no hotel… eu sentia-me no paraíso. Só que depois havia sempre um complexo de culpa, uma negação. Sempre. Deitava tudo fora. Depois voltava a comprar. E voltava o complexo de culpa. Nunca percebi efectivamente o que tudo aquilo queria dizer, o que de facto significava. A frustração, o desespero colocavam-me num beco sem saída, tive inclusive uma série de ataques de pânico, tendo um deles acabado no hospital. Percebi que não podia continuar em casa, tinha de sair e mudar as coisas.

E saiu?

Saí.

E quando se assumiu como mulher Trans?

A minha epifania deu-se entre 2017 e 2018, consultei aliás psicólogas especializadas que confirmaram o que subitamente se tornou claro. O meu “coming out” para as filhas foi na Primavera de 2019 e para o resto da família no fim do Verão de 2019. Para o mundo, foi dia 3 de Agosto deste ano, depois de um ano de tratamento hormonal e de um confinamento que veio em boa hora para me dar tempo de adaptação e desenvolver a minha auto-confiança.

É muito recente.

Sim, e o confinamento deu-me imenso jeito porque o meu corpo foi-se modificando sem olhares indiscretos.

Como é que a sua família reagiu?

As minhas filhas reagiram bem… se é o que eu quero e me faz feliz. Elas apoiam-me e querem o melhor para mim, são as minhas melhores amigas.

Há uma grande falta de informação sobre as pessoas transgénero e é muito comum pensar-se – no seu caso – que são pessoas homossexuais que gostam de se vestir de mulher. A identidade de género é erradamente confundida com a orientação sexual.

Exactamente. A identidade de género é o sexo com que uma pessoa se identifica, no meu caso é o feminino. A orientação sexual diz respeito ao sexo que nos atrai emocionalmente e fisicamente. Se eu me sentir atraída por mulheres transgénero ou cisgénero, serei lésbica, se for por homens trans ou cis serei heterossexual, se gostar de homens e mulheres trans ou cis ou não binárias, ou intersexo, serei pan-sexual, há muitas definições.

Já encontrou alguma dificuldade no seu dia a dia como mulher?

Não. Até estou muito bem impressionada com as pessoas. Tive algum receio de me cruzar com os vizinhos e algumas pessoas do bairro mais radicais, o que me causava alguma apreensão, mas as minhas filhas respondiam a esse receio com “oh pai, isso pode acontecer nas primeiras semanas, mas depois vão habituar-se e já não vão ligar nenhuma”, e tinham razão. Já ouvi umas bocas, como qualquer mulher ouve, de grupos de homens que passam de carro, mas sem drama. Claro que a violência acontece, e em países como o Brasil e os Estados Unidos, dezenas de mulheres trans são assassinadas por ano, especialmente afro descendentes.

Há uma resistência nas pessoas em geral em aceitar e compreender a igualdade de género e ainda mais as escolhas de identidade de género.

Infelizmente isso é verdade que existe, no entanto felizmente ainda o não senti na pele. No microcosmos que é o meu prédio, onde vivem pessoas de origem social e profissional completamente diferentes, houve uma recepção calorosa e encorajadora. Talvez eu tenha uma vantagem porque as pessoas sempre me viram na televisão, nas séries ou nas telenovelas, habituaram-se a ver-me transformada, cabelos, bigodes, barbas se calhar acham que é mais uma personagem … não sei. Eu já lhes disse…”agora é assim, e chamo-me Maria João”. E recebo muita simpatia. Sempre nos demos bem e continua assim.

Como olha para o seu passado como homem?

Está morto, essa pessoa já não existe. Não gosto de contemplar a minha imagem, o meu invólucro antigo, causa-me desconforto e não me reconheço. É muito estranho porque olho para uma fotografia e parece uma pessoa muito mais velha do que eu…é passado sim, mas é uma pessoa mais velha. Porque eu sinto que fui transportada para 20 ou 30 anos para trás… há quem diga que as hormonas produzem uma segunda puberdade, talvez seja isso, sinto-me renascida.

Quais as diferenças entre antes e depois? Se é que há diferenças?

Houve uma transformação física e também psicológica, as hormonas têm certamente alguma coisa a ver, se eu era sensível, agora estou ainda mais. A percepção do mundo é diferente, o toque, os cheiros, o gosto pessoal das artes em geral sofreu também alterações, na música, no cinema, etc. Por outro lado sentindo-me liberta, muitas facetas que estavam encerradas em mim, podem agora expressar-se livremente, as outras pessoas notam-no mais do que eu, no fundo sou como sempre fui mas assumidamente, não há nada a esconder. Sinto-me feliz como nunca. Houve um momento marcante para mim, o momento em que me encontrei cara a cara com outra mulher trans, foi um dos dias mais felizes da minha vida, uma sensação indescritível de identificação e pertença, porque tudo o que tu dizes a outra pessoa e ela te diz a ti é instantaneamente compreendido como por mais ninguém. Há uma ligação fortíssima.

Assusta-a o crescimento dos discursos de ódio dos partidos populistas de extrema direita?

Em Portugal, no “país dos brandos costumes”…  as pessoas são pouco interventivas socialmente, mas são dissimuladas e violentas nas redes sociais. Há pouca iniciativa cívica de lutar pelos direitos humanos. E agora temos este novo deputado que apareceu (André Ventura) que diz à boca aberta o que muita gente diz à boca fechada. Foram fenómenos destes que levaram ao poder o Trump e o Bolsonaro, e a comunicação social tem alguma responsabilidade porque lhes dá cobertura, é vendável. Esse deputado aproveita a ignorância e o medo, e recorrendo a um discurso demagógico tenta ganhar dividendos dessa massa anónima e aparentemente descontente para levar a cabo a sua estratégia de perverter o sistema, afirmando coisas como “os imigrantes e os refugiados vêm tirar-nos o emprego”; “os gays e as lésbicas vão estragar as nossas famílias”.

A teoria do medo.

Sim, houve uma crise recente e as pessoas arranjam bodes expiatórios e esses partidos aproveitam-se do descontentamento da população e é nessas áreas problemáticas, entre aspas, que vão buscar os votos porque é a teoria do medo, exactamente. Manter o povo ignorante, manter as pessoas assustadas e depois aparecem como protectores. As pessoas dedicam cada vez menos tempo aos filhos, as crianças são educadas com Ipads e telemóveis …é a cultura do espectáculo, a teoria do medo e a teoria do desconhecido, porque a percentagem de pessoas no mundo e em particular em Portugal que conhece alguém transgénero é diminuta, porque nós somos poucas, somos menos de 1 por cento da população.

Acredita que chegará a altura em que ser mulher ou homem não passará pela genitália mas apenas pela sua identidade? Em que os direitos humanos são respeitados independentemente da opção de cada um?

Vamos acreditar nisso. Eu quero acreditar nisso.

ENTREVISTA Teresa Sobral
FOTOS Inês Oliveira

12 Nov 2020