André E. Teodósio: “O meu trabalho é a desmontagem de um dogma”

André E. Teodósio tem 43 anos. É encenador, músico, cantor, actor, escritor, apaixonado, excêntrico, activista e defensor das comunidades mais desprotegidas. É um dos directores do colectivo Praga e foi considerado em 2012 pelo jornal Expresso um dos portugueses mais influentes

 

A distinção do Expresso em 2012 é uma responsabilidade muito grande. Sente-se bem nesse lugar?

Isso surge de uma coisa muito específica, provavelmente de eu ter conseguido, muito cedo, acesso a determinados modos de produção que outra pessoa da minha idade anteriormente não tinha. E acho que tem a ver com a acessibilidade aos modos de produção … não sei se terá necessariamente a ver com a própria prática artística em si. Não faço a mínima ideia. Mas isso também não me motivou muito, porque as relações de escala laborais variaram muito mesmo quando fui nomeado. Creio que sempre lutei ou pautei a minha prática artística por uma saída do preponderante. Não sei se terá alguma influência mas sei que de alguma forma contribuí para a disponibilização de pessoas, de práticas, de modos de olhar o mundo e de formas laborais que eram bastante atípicas no seio institucional. E até mesmo enquanto prática colaborativa e solidária com várias pessoas, portanto isso se calhar poderá ter sido mais visível para as pessoas. Mas isso já existia com outros colectivos, tanto no Colectivo Praga – eu não estou lá desde a fundação – como no Cão Solteiro, na Sensurround, na Casa Conveniente como em muitas outras estruturas que desapareceram ou por asfixia ou simplesmente por mutação de projecto. Portanto, não sei em que sentido é uma grande influência porque eu é que me senti sempre influenciado por muitas coisas. Ao contrário de Harold Bloom não tenho nenhuma “angústia da influência”, pelo contrário acho que é mesmo a contaminação … bom, dizer esta palavra hoje em dia … mas é a contaminação que é importante, que é fundamental.

Mas é muitas vezes mal compreendido, ou mesmo mal-tratado. Já o ouvi dizer que isso acontece desde sempre na sua vida.

Há duas coisas, uma é a maneira como eu me apresento fisicamente, isso desde cedo foi bastante problemático porque não foi consentâneo com aquilo que era esperado de um rapaz, eu sempre vesti roupas da minha mãe. Mas quando não me apetece “levar com nada” mascaro-me de pessoa – entre aspas – normal. Na maior parte dos dias sou insultado. Conto esta história várias vezes, eu estava na rua com um amigo e disse-lhe que todos os dias era insultado e ele responde-me que isso era com certeza um exagero, nisto passa um carro e ouve-se “eh paneleiro”. Todos os dias é a mesma coisa, há um insulto. Porque a minha indumentária, os meus gestos, a minha apresentação física não se coaduna com uma ideia cristalizada daquilo que é um homem e então há esse lado, que é um lado diário, que infelizmente perdura ao longo de 43 anos. Ainda no outro dia a minha mãe me ligou e disse “espero que não tenhas saído de vestido” – depois do lançamento do livro da Joacine Katar Moreira eu estava de vestido – “porque estamos a atravessar momentos políticos em que isso já não é possível. As ruas estão vazias há uma direita em ascensão”. Com 43 anos ser a minha mãe a ligar-me, preocupada com uma coisa que nunca foi uma preocupação sua, é bastante significativo de uma consciência do espaço que eu quero ocupar e do espaço que a sociedade me está a dar ou não. Depois há um lado, eu não lhe chamo de irreverência mas sim de consciência crítica, em relação a tudo o que me é dito. Eu sou gémeos, tenho este traço de não estar contente comigo próprio, portanto eu também exijo à sociedade estar à altura do não comprometimento com uma ideia fixa daquilo que a sociedade quer para si própria. E tendo isso em conta coloco sempre a dúvida. Alguém me diz que “não se pode fazer assim”, ou que uma determinada coisa “é assim”, e eu automaticamente questiono e tento reflectir as razões que levam a criar determinados tipos de dogma. E depois não tenho pejo em dizer, porque a minha liberdade, a liberdade pela qual os nossos pais lutaram, é a liberdade democrática e de comunicação e não assente numa mediação por gestos vazios, uma espécie de terceira via que é bastante característica de pessoas que cultivaram uma esquerda profunda e que se desviaram para uma esquerda centro; a ideia de um aburguesamento dos ideais e da liberdade, uma higienização dos comportamentos, até críticos, dizia eu, não vou abdicar dessa liberdade conquistada pelos nossos pais e de alguma forma conquistada por mim diariamente através da violência a que estamos todos sujeitos, a que muitos de nós estamos sujeitos, por discordarmos, por nos vestirmos de maneira diferente ou por termos ademanes que não são esperados. Não vou abdicar dessa liberdade. Até ao momento em que tiver que abdicar dela. E depois logo decido se saio de novo, se vou para outro sítio, ou se estou pronto para dar o corpo às balas. Mas não aceito uma ordem de ninguém. E acho que isso é muito comum em muitas pessoas, na verdade eu só estou provavelmente num spot light qualquer, ou estive num spot light qualquer, que permitiu isso ser visível. Mas não acho que a luta seja feita sempre de uma forma visível, há muitas pessoas que estão a fazer a mesma luta que eu, mas uma luta invisível.

Em Setembro de 2020, a sua criação Inverted Landscapes apresentada em Berlim, foi alvo (segundo palavras suas) de abuso de poder, xenofobia, queerfobia e racismo, ao serem expulsos da rua por um segurança da Axel Springer. É um forte ataque à liberdade individual e artística. O que é que aconteceu?

Tendo decidido deixar de usar o espaço do museu e ir para o espaço público confrontamo-nos sempre com vários problemas em relação ao nosso tipo de comportamento. Muitas pessoas acharam que era indigente apesar de ainda não haver a obrigatoriedade do uso da máscara e mantermos o distanciamento. Havia pessoas que passavam por nós diariamente na rua e nos chamavam inconscientes indigentes etc., por estarmos a ensaiar em jardins públicos. E diziam-no bem alto para serem escutados por uma audiência.

Mas essa situação não aconteceu em Berlim?

Foi cá em Portugal, no jardim da Estrela e no jardim do Campo dos Mártires da Pátria. Depois em Berlim aconteceu que um senhor, ao ver um homem negro e duas mulheres que não parecem as mulheres icónicas ou que não são consentâneas com uma ideia canónica, a ocupar um espaço público e a “fazer umas coisas esquisitas” expulsou-nos da rua. Expulsou-nos da rua sem qualquer tipo de pejo em dizer que a rua lhe pertencia. Que os monumentos lhe pertenciam, que o prédio lhe pertencia, não a ele mas à Companhia, e que ele estava a zelar por ela. O que gerou uma grande insegurança em relação àquilo que para nós era um território de liberdade. E veio provar de facto – e a performance é sobre isso, Inverted Landscapes – que nós não temos território em lado nenhum. Não há espaço para nós. Há uma historiografia, mas essa historiografia não tem espaço. Pode ter determinadas comunidades que o abraçam determinados “safe spaces” mas são sempre coisas enclausuradas, reservas onde nós nos podemos auto qualificar ou manifestar lá dentro mas que não são transversais à sociedade toda.

Quem são esses “nós” de que fala?

Pessoas que têm opressões variadas, pessoas precarizadas, marginalizadas etc.

As categorizadas “minorias”?!

Exacto. Depois o episódio final deu-se quando eu ia a entrar no avião com a Ana Tang e o Paulo Pascoal (actores da performance). A mim, enquanto pessoa aparentemente branca, não me foi colocado nenhum entrave para entrar no avião, mas a Ana Tang e o Paulo Pascoal foram subordinados numa espécie de avaliação da sua nacionalidade e da sua aptidão para entrar naquele voo (Berlim/Portugal) …eu não posso falar muito sobre isso porque na verdade o processo está em tribunal na Alemanha com o caso do Paulo. No caso da Ana, perguntaram-lhe se falava inglês – porque presumiram que ela era “não europeia” – e supõem uma capacidade comunicativa que não é a real. Em relação ao Paulo foi um entrave do princípio ao fim, foi chamado pela polícia, foi levado pela polícia …foi bastante grave.

Só porque é negro?

Porque é um negro angolano. E viajávamos os três em conjunto. Mas qualquer pessoa que não seja coincidente com os interesses da maioria tem sempre entraves de acessibilidade a recursos e meios.

Mas eles não queriam que o Paulo entrasse no voo? Qual a justificação dada? Porque é negro?

Sim, porque é negro e angolano e estamos a atravessar uma pandemia por isso não podia ir no voo.

Como assim?

Eu perguntava “mas se for um americano”? Responderam “um americano é um europeu”.

Um americano não é um europeu.

Exacto. Foi o que nós dissemos. Muito grave, foi muito grave. Foi mesmo muito grave. Nós tínhamos uma declaração da embaixada e o Paulo tinha um comprovativo de residência. Pedimos para fazer uma chamada para a pessoa da embaixada que nos contratou e que nos passou as declarações e eles não nos deixaram ligar. Estavam sempre a inventar mecanismos e razões para a não inclusão ou aceitação do Paulo no voo; para o expulsar.

Mas foi detido?

Ele foi detido, entre aspas. Não foi levado algemado mas foi detido pelo SEF. Foi levado para uma sala própria para ser inquirido.

Conseguiram trazê-lo?

Entrámos no último minuto antes de fechar a “gate”. Foi horrível. Foi mesmo horrível.

Disse numa entrevista recente que o próximo passo é a identity bender. “Hoje sou uma cadeira, amanhã sou uma flor. ” É sem dúvida um lugar de total liberdade – o oposto do que aconteceu em Berlim – e eu pergunto-lhe, para si há um Ser e um estamos a ser?

Sim, há duas coisas. Eu estou a falar de alguém que já teve capacidade de ter uma identidade firmada, o que não é tão comum assim socialmente. As pessoas negras, migrantes transgénero, a sua identidade ainda não está firmada não têm o seu espaço. E parece-me um pouco impossível poderem sair de uma coisa que ainda não conquistaram ou a que não tiveram direito. Acho que há duas coisas, uma é o meu estado a partir do estado onde eu tenho capacidade de escolha e outra é alguém que não tem capacidade de escolha. Quem não tem capacidade de escolha precisa de ter todos os meios para poder conquistar a sua identidade. Em relação a mim, acho que já tendo uma identidade firmada não porque a quis ter, mas porque me foi dada socialmente, processualmente, legalmente até, o meu trabalho é o mesmo de uma desmontagem de um dogma. Acho que as pessoas podem ser o que quiserem. Mas também podem encarar a sua vida como “estando a ser qualquer coisa” como estando a ser um protocolo de verdade, como estando a ser um protocolo legal, como estando a ser um protocolo médico, etc. Então o meu processo de criação o meu processo ontológico vá, é essa ideia de que “eu não tenho de ser” mas “eu posso estar a ser o que quiser”. E o “estar a ser” está em relação com o mundo. Eu sou o peso de uma cadeira. Os nossos corpos em termos quânticos são isso tudo – já existe – é uma retração, uma simplificação da linguagem para nos entendermos a nós próprios ou para nos espelharmos através de uma imagem. Mas na verdade nós já somos muita coisa, uma matéria descartável dessa força e dessa vitalidade que é a energia e que é a vida. Somos uma matéria descartável disso, nós existimos mas o que conta é o “o que é”, o que está a sair do nosso corpo, porque é aí que a nossa vitalidade, a nossa energia está a surgir, porque o nosso corpo vai lentamente sendo abandonado como uma metamorfose. A minha identidade está relacionada com as várias partes de uma totalidade na qual eu faço uma morfose consoante a minha condição. Quando o meu cão se senta ao meu colo eu sei que estou a ser alguém que tem uma relação com o cão, mas também estou a ser uma cadeira e tenho um propósito uma finalidade. E pronto tem a ver com isso, sair de um dogma daquilo que me é imposto que é “eu sou o André sou um homem branco blá blá blá” e poder sair desse simplismo que é a minha presença no mundo ou a nossa presença no mundo.

A arte é em si uma identity bender? Onde tudo é tudo e onde tudo é nada? O sítio para o pensamento?!

Sim, é uma ferramenta cognitiva é uma forma de entender o mundo mas que provém de um excesso de tempo e de um excesso de meios. Só quem de facto tem algum tempo livre e alguns meios consegue estar nesse processo em que sai da prisão de ter de estar no mundo de uma determinada forma; a prisão do corpo, a prisão da língua, a prisão da alimentação, a prisão da sociedade, a prisão legal…e acho que a arte é essa saída da prisão.

A libertação de tudo?

Sim, é dobrar a língua. É partir a língua que aprendeste…é partir a identidade que aprendeste, partir o teu nome, partir a nacionalidade… é partir. É sempre partir. É amplificar uma experiência a partir desses suportes… sim, é isso… ampliar a experiência.

A propósito de partir, agora noutro contexto, há um relatório anual da Comissão Europeia Contra o Racismo e a Intolerância (ECRI) do Conselho da Europa que alerta para o crescimento dos discursos de ódio, o aumento do racismo, da discriminação racial e da intolerância. Estão a surgir vários movimentos conservadores, ou ligados à extrema-direita contra a chamada “ideologia de género”; rejeitam a distinção de sexo e género, argumentando que qualquer género separado do sexo biológico não deve ser reconhecido. O que podemos fazer para combater estas ideias?

Não sei…é uma resposta que não tenho para dar. Não será uma acção colectiva como foram em anos anteriores … mas pequenas bolhas de mudança. Existem vários grupos activos na reivindicação de direitos e de mudanças e todos eles têm de ser escutados pelo poder e de alguma forma fortalecidos pela nossa presença e pela nossa audiência. Agora …não sei na esfera civil como é que isso politicamente é possível uma vez que a fragmentação que existe na ordem civil existe também no poder. E aí já estamos a falar no âmbito global e geral onde todas as mudanças e todas as reivindicações pequeninas podem acontecer, ou não, mas que não influenciam ou abanam o status quo desse poder. Não sei como é que se faz. Mas tenho tentado estar engajado politicamente e socialmente de diversas formas … mas não sei mesmo como é que isso tem alguma consequência geral a não ser uma consequência prática de os grupos onde os quais me incluo conseguirem conquistar algumas coisas. Pode haver uma mudança através de todas estas mudanças pequeninas mas ainda é muito difícil vê-las e acho que passam por estratégias maiores como repensar a participação social, repensar aquilo que são os meios de comunicação, repensar a responsabilidade na internet individual e também nacional, repensar a economia, repensar a distribuição, repensar a presença exterior de determinados países e a sua relação ou conivência com determinadas formas de agir … muitas coisas que é preciso ir fazendo e que eu acho que estes microcosmos podem ir desencadeando aos bocadinhos. Não acho que a arte tenha de pensar sobre estas coisas, mas acho que a arte que perpetua a lógica que até aqui chegou não é uma arte que sirva neste momento. Não é que seja negativa, mas não é operativa para aquilo que é necessário neste momento.

Para terminar, pedia-lhe que desenvolvesse esta ideia que li num post seu. “Um determinado tipo de mundo está a definhar, preso aos seus costumes e práticas de sustentação do seu status quo, mas nós continuamos a ser a seda vibratória impossível de ser detida. Porque até à morte e nela, “A body convulsion / is our dance version”.”

Isso fazia parte dos textos do Inverted Landscapes, e tem a ver com tudo isto na verdade. Nós não vamos parar, nós sabemos que estamos aqui numa fase transitória, e que somos simplesmente carne para esta vida ganhar mais força mais eco e, portanto, há uma coisa que é superior a nós. Não precisa do nosso corpo e da nossa voz, temos de ser obreiros dessa força e dessa voz e caminhar para a frente porque ela vibra em nós. Essa mudança vibra em nós, não precisa de nós para nada. Quando já não estivermos à altura daquilo que a vida nos exige, ela abandonar-nos-á mas o nosso sopro vai continuar e a nossa matéria vai continuar, e os ecos das mudanças que fizermos vão continuar para os outros; as conquistas sociais, as conquistas estéticas etc. Então é isso, esta força da vida que é uma seda vibratória. É uma coisa que se mexe sem nós, neste corpo que está aqui entre um espaço e um tempo que habita este planeta. E é isso, esta performance é isso. Não parar. Nós não vamos parar. Mesmo que venha um senhor dizer-nos que não podemos estar ali, que no teatro nos digam que o que fazemos é dança com texto, que os políticos nos digam que nós não podemos existir, mesmo que nos insultem todos os dias na rua, nós vamos avançar. Vamos avançar com as nossas saias, com as nossas cores, com os nossos corpos, com as nossas identidades por conquistar, outras já em completa transformação, vamos avançar. Vamos avançar e não vamos parar.

ENTREVISTA Teresa Sobral
FOTOS Inês Oliveira

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