Tiago Bonucci Pereira VozesA China e a Construção de Infraestruturas em África [dropcap]O[/dropcap]sector de infraestruturas representou desde sempre uma área importante na relação entre a China e África, importância essa que ganhou ainda maior proeminência ao longo das últimas duas décadas. Nos anos subsequentes à crise financeira de 2008, o papel da China como financiadora e construtora de infraestruturas em África apenas tornou-se mais preponderante. O crescimento da China neste sector deverá ser lido à luz de dois factores determinantes: em primeiro lugar, o excesso de capacidade doméstica aliado a um considerável volume de reservas cambiais convida à exportação desse excedente, o que está em linha com a política Chinesa “Going Out”; em segundo, o facto de países e instituições internacionais que tradicionalmente apoiam África terem desde há várias décadas (anos 80) optado por reduzir o apoio ao desenvolvimento de infraestruturas em África, política que se tornou ainda mais pronunciada em virtude da crise financeira de 2008. No que concerne o investimento Chinês neste sector, o financiamento é providenciado sobretudo através do Banco de Exportação-Importação Chinês (China Eximbank) e pelo Banco de Desenvolvimento da China (China Development Bank, CDB), policy banks da China e, como tal, instrumentos de implementação da estratégia Chinesa. E embora as condições contratuais associadas sejam comparativamente menos exigentes que as das Instituições Financeiras Internacionais, o financiamento é feito sob a condição de contratação de empresas Chinesas e aquisição de tecnologia, equipamentos e serviços Chineses. Em tudo semelhante ao praticado por outros países. Exemplos recentes de projectos financiados pela China em África (alguns deles associados à Iniciativa Faixa e Rota, BRI) incluem as ferrovias SGR (Standard Gauge Railway) no Quénia e na Nigéria, e a ferrovia transfronteiriça entre Addis Ababa na Etiópia e o Djibouti. Muitos destes projectos estão localizados em países sem grandes recursos naturais, não obstante estarem associados (mas nem sempre) à sua exploração, constituindo muitas vezes um factor de sustentabilidade do investimento. É certo, no entanto, que a viabilidade dos projectos é fundamental no processo de tomada de decisão de investimento, um aspecto que ganhou importância fruto de lições de investimentos Chineses em África no passado, mas também tendo em vista a projecção da uma imagem do financiamento Chinês como sendo feito de forma responsável, sem intenção de colocar países recipientes numa situação de endividamento insustentável. Acima de tudo, a China procura convergir interesses: o desenvolvimento desses países, conjugado com a abertura de mercados aos seus bens e serviços. A imagem do investimento Chinês em África como ambientalmente irresponsável é enviesada. Em primeiro lugar, a avaliação do impacto ambiental de um determinado projecto fica normalmente a cargo do país recipiente. Em segundo, e relativamente à actuação de empresas de construção Chinesas, um estudo recente da SAIS-CARI (Universidade John Hopkins) relativo à avaliação do desempenho de empresas de construção Chinesas em projectos do Banco Mundial em África indica a existência de problemas ambientais e sociais em apenas 2 projectos num total de 72. Finalmente, esta imagem ignora o facto de a China ser excedentária também na área das energias renováveis, tendo já desenvolvido múltiplos projectos neste sector: parques eólicos na Etiópia, projectos de geração de energia solar na África do Sul, e múltiplos projectos hidroeléctricos em todo o continente. A ferrovia SGR no Quénia é um caso ilustrativo da complexidade das variantes envolvidas. O caminho-de-ferro atravessa o Parque Nacional de Tsavo, com uma grande população de animais selvagens. Por forma a reduzir a influência do traçado nas rotas de migração de elefantes, girafas e outros animais, a construtora China Road and Bridge Corporation (CRBC) definiu corredores por onde os animais podem passar livremente. Apesar destes esforços, o projecto não deixou de ser merecedor de críticas. No entanto, e no que concerne medidas de protecção ambiental, as opções do trajecto, e as opções de projecto em geral, parecem ter sido definidas tendo em conta sobretudo a pressão do governo Queniano para que o projecto fosse completado no mais curto espaço de tempo possível, e de maneira a minimizar os custos com expropriações. Este último factor constituiu um permanente foco de tensão durante a execução do projecto, fruto de problemas financeiros (os custos com expropriações ficaram a cargo do governo Queniano, e ultrapassaram largamente os valores projectados antes da construção) e sócio-políticos (a diversidade étnica do país a par do aproveitamento político do projecto, gerou tensões com acusações de favorecimento de determinadas etnias e comunidades). Pela sua parte, a CRBC pôs em marcha uma estratégia CSR (Corporate Social Responsibility) com vista à mitigação de problemas de cariz social relacionados com o projecto. Esta estratégia inclui, por exemplo, a nomeação de agentes de ligação em todos os sectores da ferrovia, cuja função foi constituir uma ponte de comunicação entre a construtora e as comunidades locais através da qual as diferentes comunidades apresentavam queixas e pedidos à CRBC. Daqui resultou, em resposta a algumas das queixas e pretensões manifestadas, que a CRBC renovou escolas, centros de saúde, igrejas e mesquitas, além de ter construído pequenas estradas e pontes a pedido de comunidades locais. Importa também referir que as firmas Chinesas, em geral, contratam mais trabalhadores locais em África do que outras empresas estrangeiras. Para a ferrovia SGR no Quénia, a CRBC empregou 21858 trabalhadores, 2000 dos quais Chineses, e 19858 trabalhadores Quenianos. É verdade que até há uns anos a proporção de trabalhadores Chineses era maior, mas paulatinamente essa percentagem tem decrescido, a par com o aumento dos vencimentos na China e com a formação de quadros locais. Formação essa providenciada pelas próprias empresas Chinesas. Muito do aqui escrito contradiz o que é publicado nos meios de comunicação. No entanto, estudos realizados em instituições académicas e de investigação ocidentais descrevem esta realidade. A acção de firmas chinesas em África está em linha com o praticado por empresas Japonesas e ocidentais na China desde finais da década de 70. A ideia é apoiar o desenvolvimento dos países recipientes e ganhar mercado na região. A China tem investido em África tanto pela sua riqueza natural, como pela crença que o continente estará prestes a entrar num ciclo de grande desenvolvimento económico. Consequentemente, a sua influência económica e geopolítica é cada vez maior. Este facto parece ter motivado Donald Trump, este mês, a criar uma nova agência americana de ajuda externa – The United States International Development Finance Corporation – com um capital de 60 mil milhões de dólares para apoiar projectos na Ásia, África e nas Américas. Esta agência surge um mês depois de, durante o encontro FOCAC 2018 em Pequim, Xi Jinping ter anunciado que a China providenciaria financiamento na ordem de 60 mil milhões de dólares a África. Curiosamente, há um ano e meio Trump anunciava a intenção de cortar ajuda externa a África. Não restam dúvidas que as motivações para a criação desta agência não são altruístas.
Tiago Bonucci Pereira VozesCADFund [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]Fundo de Desenvolvimento China-África (CADFund) foi lançado em junho de 2007 como um instrumento do governo Chinês para a implementação prática dos seus planos e objectivos para o continente Africano. O CADFund foi estabelecido como parte de oito medidas anunciadas pelo então presidente chinês Hu Jintao, no Fórum Cooperação China-África (FOCAC) de 2006. Embora opere de acordo com princípios de mercado, o Fundo é uma ferramenta económica e diplomática do governo Chinês para incentivar os investimentos de empresas chinesas nos países africanos. O CADFund é uma subsidiária do China Development Bank (CDB). A missão do CADFund é facilitar a cooperação China-África e melhorar a capacitação das economias africanas por meio de investimentos directos e serviços de consultoria. Gao Jian, ex-vice-governador do CDB e director do fundo, afirmou na altura da sua criação que o CADFund destina-se a incentivar projectos conjuntos entre firmas chinesas estatais ou privadas, e empresas africanas (ou de outras nacionalidades) e que não visa a obtenção de lucros elevados, mas apenas não incorrer em perdas. O Fundo recebeu um total de 5 mil milhões de dólares, com um montante inicial de mil milhões de dólares pago em 2007, e outra injecção de capital de dois mil milhões de dólares anunciada durante uma conferência de empresários Chineses e Africanos em Julho de 2012. A capitalização de 5 mil milhões de dólares foi alcançada em 2015 e uma capitalização adicional de 5 mil milhões de dólares será alcançada este ano, provávelmente até ao FOCAC 2018, a ser realizado em Setembro deste ano em Pequim. Este aumento de capital foi anunciado pelo presidente chinês Xi Jingping em Dezembro de 2015 durante o encontro FOCAC de Joanesburgo, e foi justificado como uma medida para garantir a implementação bem sucedida dos 10 principais planos de cooperação China-África anunciados na mesma ocasião, e que promovem a cooperação em sectores bem definidos, como a indústria, agricultura, construção de infraestruturas, ambiente e comércio, entre outros. O CADFund é orientado para o lucro, não se tratando, de forma alguma, de ajuda externa. Os principais critérios de financiamento do CADFund baseiam-se numa avaliação do retorno do investimento: projectos qualificados para avaliação devem demonstrar perspectivas promissoras, com um potencial de crescimento rápido e estável, e a capacidade de gerar lucros. O período de participação do CADFund varia entre oito e quinze anos por investimento, findo os quais os investimentos devem ser lucrativos e, portanto, autossustentados. O CADFund é uma subsidiária do CDB, “stockholder” este que é o primeiro na linha de comando. O fundo é, no entanto, também uma ferramenta política e como tal reporta anualmente a um Conselho de Supervisão onde estão representados diferentes ministérios do governo Chinês. O Conselho de Administração é composto por membros do CDB e do CADFund. Actualmente, o fundo possui escritórios de representação em cinco países africanos: África do Sul, Etiópia, Zâmbia, Gana e Quénia. Esses escritórios servem como prestadores de serviços de consultoria para empresas Chinesas que desejam operar em países Africanos. De acordo com o organigrama publicado pelo CADFund, existem três departamentos de investimento: [i] Agricultura, Imobiliário e Indústria; [ii] Investimentos na Indústria de Mineração; [iii] Infraestruturas e Energia. Este esquema resulta de uma reestruturação levada a cabo em Abril de 2012, tendo os departamentos passado assim a ter uma base sectorial em vez de geográfica. A principal forma de participação do CADFund em projectos é através de investimentos de capital. Uma outra é funcionando como uma espécie de “fundo de fundos”, alocando uma parte do seu capital para outros fundos que investem em África. Será o caso do Fundo de Cooperação China-Países de Língua Portuguesa (CPDFund), fundo este que conta com a participação do CDB, Fundo de Desenvolvimento Industrial e Comercial de Macau, e CADFund, que é também responsável pela gestão do fundo. O CADFund investiu desde a sua criação em 88 projetos em 36 países africanos, num valor total de mais de 4 mil milhões de dólares. No entanto, os maiores financiadores para investimento Chinês em África são, de longe, o China Eximbank e o CDB. Estes dois bancos representam 84% do total de empréstimos a governos e empresas estatais Africanos durante o período entre 2000 e 2014. A iniciativa “Faixa e Rota” (BRI) terá possivelmente consequências para o direccionamento de investimentos destes financiadores. Uma recente directiva do China Eximbank exige a prioratização de investimentos relacionados com o BRI. No contexto Africano, o BRI, e apesar da vontade expressa em extender a iniciativa ao resto do continente, tem estado centrado na vizinhança do Corno de África. Do exposto pode-se aferir que actualmente o investimento Chinês em África é feito fundamentalmente com base em princípios de mercado, visando o lucro. Qualquer projecto de investimento tem de oferecer garantias de sustentabilidade. A estratégia está centrada não em obter lucros elevados no imediato, mas na promoção da internacionalização de empresas chinesas.
Tiago Bonucci Pereira VozesA Rota da Seda e África [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]primeiro aspecto a considerar no que diz respeito à iniciativa “Faixa e Rota” (BRI) é que não é definida como uma política, mas como uma iniciativa. Não é um plano detalhado, mas, em contraste, escrito em termos um tanto flexíveis e sujeito a várias interpretações. Uma definição rigorosa do BRI é um exercício fútil, embora os seus objectivos sejam claros. A iniciativa é global, e, portanto, interessa procurar interpretar as oportunidades que podem surgir da sua implementação. Importa olhar para as implicações do BRI a nível interno. Os termos vagos em que está definida a iniciativa BRI, juntamente com os incentivos oferecidos às diferentes províncias da República Popular da China (RPC), convida os governos provinciais a procurarem projectos potenciais que se enquadrem na BRI. É um incentivo para as províncias chinesas investirem na diversificação da economia, maximizando as suas vantagens naturais e fomentando o desenvolvimento tecnológico e industrial que, tendo em conta o 13º Plano Quinquenal da RPC, deve centrar-se na prossecução do desenvolvimento económico e social, na maximização da qualidade e na promoção de políticas ambientalmente sustentáveis. Isto deve ser visto à luz do funcionamento do sistema político Chinês, fortemente baseado na meritocracia. Os governos provinciais têm uma margem de manobra relativamente ampla no que concerne a definição de políticas, sendo certo, no entanto, que estas têm de estar enquadradas nos objectivos estabelecidos pelo governo central. Governadores provinciais, naturalmente, procuram promoção política, para a qual têm de mostrar resultados práticos. A esperada desaceleração nos últimos anos do crescimento económico Chinês surge durante um processo de transformação economica, industrial e social. A deslocação de indústria Chinesa que se encontra saturada a nível interno para o Sudeste Asiático e para África, e a mudança para um modelo de exportação de produtos de valor acrescentado, são acompanhados pela tentativa de resolver o desequilíbrio interno entre zonas costeiras e o interior Chinês, e o acelerar do processo de internacionalização do seu tecido empresarial. As “duas frentes” do BRI são a “Nova Faixa Económica da Rota da Seda” (componente terrestre do BRI) e a “Nova Rota da Seda Marítima” (componente marítima). A rota marítima será preponderante para as regiões costeiras, mais desenvolvidas, e lar de centros logísticos multimodais e centros financeiros, enquanto a “faixa” estimulará o desenvolvimento do hinterland Chinês, convidando a alocação do excesso de capacidade industrial da RPC, e consequente fluxo ao longo da “faixa e rota”. Na frente internacional, a iniciativa consolida o que tem sido a política externa da China desde há vários anos, estabelecendo laços económicos em todo o mundo sob um rótulo de respeito e benefícios mútuos. A iniciativa BRI convida a participação dos diferentes governos estrangeiros e empresas privadas chinesas e estrangeiras, sob a premissa de amplos benefícios para todos os envolvidos. A participação do sector privado é um aspecto de primordial importância para o sucesso da iniciativa, o que acaba por ser uma das razões pelas quais suscita tantas dúvidas. Assumidamente, o governo Chinês toma a dianteira no que concerne o financiamento de vários projectos em curso. Mas não se trata de uma política de longo prazo, mas sim uma forma de salvaguardar, numa fase inicial, as empresas Chinesas envolvidas contra os riscos associados a grandes projectos em países em vias de desenvolvimento e/ou instáveis quer ao nível de segurança, quer ao nível das suas instituições. A expansão económica é um objectivo, ao mesmo tempo fortalecendo laços políticos e económicos – na verdade, expandindo a influência chinesa – e acompanhada pela internacionalização do Renminbi, uma política apoiada pelo estabelecimento de organizações multilaterais e mecanismos de financiamento, tais como o Banco Asiático de Investimento em Infraestruturas (AIIB), o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) e o Fundo da Rota da Seda. Os projectos de infraestruturas de transportes estão no centro da cooperação China-África, como ilustrado em Janeiro de 2015 com a assinatura de um memorando de entendimento entre a China e a União Africana para o estabelecimento de uma rede para conectar 54 países africanos através de projectos de infraestruturas de transportes. Tais projectos podem ser incluídos no BRI, estando especificamente relacionados com a sua componente marítima. Um exemplo é o caminho-de-ferro construido entre a cidade portuária de Mombasa e Nairobi no Quénia, que constitui a primeira fase do Standard Gauge Railway Project (SGR), cuja segunda fase está actualmente em curso e se extenderá para o Uganda, Rwanda, e República Democrática do Congo. Nairobi é o vértice Africano da Nova Rota da Seda Marítima, embora não seja uma cidade portuária, o que em si é indicativo de que a sua inclusão no BRI só faz sentido acompanhado pelo investimento em infraestruturas num continente com sérias debilidades num sector que é fundamental para avalancar o seu desenvolvimento económico. A China encara África como um mercado com enorme potencial. É desde 2009 o seu maior parceiro comercial e empresas Chinesas dos mais variados sectores têm-se instalado um pouco por todo o continente. A capacitação infraestrutural dos países Africanos é por isso encarada de forma estratégica pela RPC, com vista tanto à melhoria das condições ao nível logístico, como também para fomentar o desenvolvimento dos próprios países. Como mercado com grande potencial de crescimento, interessa à China que as projecções se venham a concretizar por forma a garantir o retorno do investimento já efectuado tanto pelo sector público como privado. A China, fruto de décadas de diplomacia e investimento contínuo, e livre de estigmas coloniais, tem já uma presença firme e priveligiada em África. O desenvolvimento do continente só irá premiar todo o esse esforço.
Tiago Bonucci Pereira VozesO Espírito da Rota da Seda [dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]m artigos anteriores foram explorados temas importantes para perceber o enquadramento histórico das relações comerciais actuais da República Popular da China (RPC) com o resto do mundo: ajuda externa, que durante décadas definiu as relações económicas da RPC com o estrangeiro; investimento em África, continente com o qual a RPC mantém desde sempre uma relação especial; a “Go Out Policy” e o ímpeto para a internacionalização e busca de mercados no estrangeiro, conjugados com a transformação do tecido industrial chinês. A Iniciativa Faixa e Rota, que já assumiu vários nomes e siglas (OBOR, BRI, B&RI), pode, e deve, ser encarada como a evolução natural de políticas que a RPC tem implementado ao longo das últimas décadas. Comecemos pelo discurso. A iniciativa foi anunciada a 7 de Setembro de 2013 em Astana, Casaquistão, pelo Presidente Chinês Xi Jinping, num discurso intitulado “Promover a Amizade entre Povos e Criar um Futuro Melhor”. Nele, multiplicam-se as referências históricas aos vários eixos de trocas comerciais que conectaram durante séculos diferentes regiões da Eurásia,e aos quais se refere habitualmente como “A Rota da Seda”. O anúncio público do projecto tem forçosamente de ser analisado no plano político. Três pontos definem a sua base ideológica: (i) Ordem mundial multipolar; (ii) Globalização económica; (iii) Diversidade cultural. São ideias fundamentais do discurso político chinês. O “Plano de Acção para a Iniciativa Faixa e Rota” publicado em 2015 pelo Concelho de Estado da RPC salienta a necessidade de “(…) aprofundar a confiança política; promover intercâmbio cultural; encorajar diferentes civilizações a aprender umas com as outras e a prosperar em conjunto; e promover o entendimento mútuo, paz e amizade entre as pessoas de todos as nações”. Este apelo à multiculturalidade pode ser encarado como um aspecto complementar tanto da globalização económica como da promoção de uma ordem multipolar. Neste contexto, a evocação de um passado caracterizado por prosperidade global e de interacção entre povos contrasta com o mundo “ocidentalizado” (principalmente) pela difusão alargada da cultura popular americana. É este apelo a uma visão algo romantizada da Rota da Seda que marca o início do Plano de Acção, cristalizada no “Espírito da Rota da Seda – paz e cooperação, abertura e inclusão, aprendizagem mútua e benefício mútuo”. Este aspecto não deve ser negligenciado em qualquer análise do BRI. No discurso político chinês, a história tem um papel importante. Serve como elemento legitimador para novas iniciativas, associando visão política a elementos identitários da nação chinesa. Olhemos para a “Faixa”, a componente terrestre do BRI. A multiplicação de nomeações a Património da Humanidade associadas à Rota da Seda resulta de um esforço conjunto dos países do continente euroasiático. Estas nomeações servem um propósito político para os países participantes, com o reconhecimento internacional da história e cultura de diferentes civilizações. Mas a associação à Rota da Seda oferece também uma perspectiva histórica sobre a ideia de ligações comerciais e contactos civilizacionais transnacionais. Existe também uma dimensão securitária na avaliação das potencialidades do BRI para os vários países envolvidos. Comércio e intercâmbio cultural contribuem para a construção de relações de confiança e respeito mútuo. Para a China, a estabilidade das suas províncias ocidentais (Xinjiang, Tibete) é uma preocupação constante. A criação de dinâmicas transfronteiriças nestas regiões, com o seu consequente desenvolvimento económico, é encarado como um processo necessário, tanto para a China como para países vizinhos, para mitigar problemas recorrentes de instabilidade, como os associados ao fundamentalismo islâmico. Outro dos objectivos inerentes a este renovado ênfase no intercâmbio cultural relaciona-se com a desconfiança que a China tem enfrentado em alguns países. Do ponto de vista Chinês, trata-se sobretudo de um problema de percepção. Peter Frankopan, historiador britânico e autor do bestseller de 2015 “As Rotas da Seda” (que, inexplicávelmente, demorou cerca de três anos a merecer a sua primeira edição portuguesa) lamentava, em entrevista à organização Intelligence Squared, o carácter eurocêntrico do ensino de História no Reino Unido, daqui resultando uma visão distorcida que menospreza ou ignora civilizações cujo contributo para o desenvolvimento da humanidade é imensurável. Esta será uma conclusão que poderá ser considerada como válida para virtualmente qualquer país ocidental. Esta ignorância relativamente a outros povos e culturas, esta visão incompleta da história, contribui para um clima de desconfiança sustentada em primeiro lugar no desconhecimento e no preconceito. O ênfase dado no discurso político chinês a uma ordem multipolar deve ser lido na lógica que decorre dos Cinco Princípios de Coexistência Pacífica (1954) – de respeito mútuo pela integridade territorial e soberania; de não-agressão mútua; de não-interferência mútua em assuntos internos; de igualdade e cooperação para benefício mútuo; de co-existência pacífica. Outra leitura, complementar à primeira, é que constitui um desafio directo à ordem mundial vigente, interpretada como ainda a resultante do fim da Guerra Fria e caracterizada como unipolar, com os Estados Unidos da América (EUA) como potência hegemónica. Trata-se de resto de um passo que os EUA já previam desde o tempo da administração Clinton, como afirma o académico neo-conservador Robert Kagan no seu livro “O Paraíso e o Poder” (2003), onde afirma que era já consensual entre os dois partidos americanos que o crescimento da China constituíria o grande desafio estratégico para os EUA durante as duas décadas seguintes. Não tenhamos dúvidas, no entanto, que nesta multipolaridade, a China pretende ocupar a posição que considera natural em face do seu legado histórico milenar, contributo civilizacional, e dimensões populacional (20% da população mundial) e económica (15% da economia global; contributo correspondente a cerca de 25 a 30% do crescimento económico global). Com o projecto BRI, a China assume um papel de liderança neste processo de mudança, re-definindo a sua posição à escala global. Nas palavras do já citado Peter Frankopan: “We are seeing the signs of the world’s centre of gravity shifting – back to where it lay for millennia”.
Tiago Bonucci Pereira VozesDa Política “Going Out” à Iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” [dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” (OBOR ou BRI) pode em certa medida ser encarada como a evolução natural da política “Going Out” promovida por Jiang Zemin em 1999, política essa centrada na internacionalização da economia chinesa, traduzida pela transição da República Popular da China (RPC) de país receptor para país promotor de investimento directo estrangeiro (IDE). A estratégia foi progressivamente consolidada em 2001 com a admissão da China na Organização Mundial do Comércio e o anúncio, em 2004, pela Comissão Nacional para Reformas e Desenvolvimento da RPC (NDRC) e pelo China Eximbank de medidas de apoio ao investimento em 4 sectores específicos: (i) recursos naturais e bens primários relativamente aos quais a China é deficitária; (ii) investimento em sectores exportadores ou que envolvam novas tecnologias e equipamentos; (iii) colaborações com entidades estrangeiras em projectos de investigação e desenvolvimento (I&D) e novas tecnologias, gestão e formação de quadros; (iv) fusões e aquisições com vista ao aumento progressivo da competitividade internacional de firmas nacionais e à expansão dos mercados de produção e vendas. O plano conjuga, portanto, a transformação progressiva do tecido económico e industrial Chinês para sectores de valor acrescentado com a internacionalização de empresas e sectores cujo mercado interno caminha para a saturação. Com efeito, a China apresenta actualmente excesso de capacidade em sectores críticos, como a construção e indústrias associadas, bem como no sector energético. Como tal, a sustentabilidade dessas empresas exige uma política expansionista em busca de mercados em território estrangeiro. Os dois sectores acima referidos são porventura os que têm maior visibilidade. A produção de energia a carvão constitui um exemplo de conjugação de várias políticas: Pequim, a partir de 2014, reintroduziu taxas sobre a importação de diversas qualidades de carvão e proibiu a compra de carvão de baixa qualidade. Medidas estas que surgem na sequência da implementação de políticas de combate à poluição, bem como de protecção dos produtores chineses. Por outro lado, e já antes do anúncio da iniciativa BRI, têm-se multiplicado a construção de centrais térmicas a carvão por empresas chinesas no estrangeiro. No que respeita ao IDE, foi feita uma descrição, num artigo anterior, do crescente investimento chinês em África, num padrão onde se constata a progressiva transferência de indústria transformadora para regiões com menores custos laborais, funcionando em simultâneo como uma forma de criação de emprego e de desenvolvimento económico e social. Padrão similar observa-se nos países do Sul da Ásia. Mas o cenário muda radicalmente quando olhamos para o continente europeu. A Europa é a principal destinatária do IDE chinês (29 por cento do total), estando a aposta centrada nos sectores de energia, finança, tecnologia e infraestruturas. O sector imobiliário perdeu importância nos últimos anos em virtude de um maior controlo administrativo chinês sobre certos tipos de transacções, como forma de travar a fuga de capital. No entanto, o incentivo à diversificação para firmas chinesas é inegável. As restrições sobre o investimento em imobiliário, de resto, resultaram num redireccionamento do investimento chinês para outros sectores, também em face da desaceleração do mercado doméstico. Conhecemos bem os exemplos portugueses, como o investimento da China Three Gorges na EDP e a aquisição pela Fosun da Caixa Seguros. Todavia, Portugal, com um total de investimentos entre 2000 e 2017 de 6 mil milhões de euros, é o sétimo destinatário europeu do IDE chinês. O pódio pertence ao Reino Unido (42 mil milhões de euros), Alemanha (20.6 mil milhões de euros) e Itália (13.7 mil milhões de euros). Exemplos recentes de investimentos são a aquisição pela Midea da empresa alemã de robótica KUKA e a compra por um consórcio chinês de 49 por cento da operadora de centro de dados do Reino Unido Global Switch. A aposta chinesa em sectores de valor acrescentado poderá ser associada ao plano “Made in China 2025”, um masterplan anunciado em 2015 e que tem em vista a transformação da China nas próximas décadas numa superpotência industrial com base em tecnologias inovadoras. Contudo, esta aposta era já visível a partir de 2004. Os números assim o demonstram: investimento chinês no estrangeiro disparou a partir sensivelmente de 2005, tendo o IDE na década seguinte tido uma média anual de crescimento de 30 por cento. O investimento chinês em Investigação & Desenvolvimento aumentou exponencialmente a partir da mesma data, correspondendo actualmente a 20 por cento do investimento mundial nesta área. Circunstâncias mais recentes (desaceleração económica; desenvolvimento económico e social; saturação de certos sectores) poderão ter ditado uma aceleração mais acentuada. Mas é nítido que esta aposta estava já na mente dos governantes chineses. Constata-se agora um crescente nervosismo na classe política europeia com as aquisições chinesas em sectores chave da sua economia, argumentando falta de reciprocidade na medida em que muitos investimentos são em sectores nos quais as empresas estrangeiras continuam a encontrar barreiras no acesso ao mercado chinês. Acresce que problemas políticos no seio da União Europeia, como os diferendos com os países do leste, são encarados como sendo agravados por acções como a iniciativa “16+1” entre a China e países da Europa Central de Leste, iniciativa esta que tem em vista a realização de projectos no âmbito do BRI. Que a liderança europeia esteja preocupada com o crescimento chinês e o impacto económico e político na Europa é normal. Estranha-se, no entanto, é que esta preocupação surja de forma tardia. Por outro lado, as preocupações têm mais a haver com problemas europeus do que propriamente com a China. A reciprocidade é possível através de negociações. E as deficiências institucionais europeias são um problema exclusivamente europeu. Percebe-se que existe uma sequência lógica na evolução do investimento externo chinês, num processo contínuo de aprendizagem e delineado com rigor e pragmatismo. Perante isto, como podemos interpretar a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”? Será tentador encará-la de forma cínica como nada mais do que um processo de etiquetagem e exercício de retórica sobre um projecto já em marcha, mas essa interpretação não corresponderia à verdade. Este tópico, porém, merece um artigo em separado.
Tiago Bonucci Pereira VozesInvestimento Chinês em África [dropcap style≠‘circle’]N[/dropcap]este texto traça-se um panorama geral das relações comerciais entre a China e África, bem como da natureza dos investimentos chineses. O assunto é complexo, mas pretende-se aqui identificar as principais variáveis, aspectos problemáticos, “mitos” propagados, bem como perspectivas futuras. As exportações chinesas para África têm se mantido relativamente estáveis nos últimos anos. No entanto, entre 2014 e 2015, as exportações de África para a China caíram 66 por cento em valor, fundamentalmente devido à queda do preço do petróleo, a principal importação chinesa. Recursos naturais constituem o grande bolo das importações chinesas, pelo que as flutuações do mercado encontram correspondência imediata nos valores de exportação para a China que, de 2014 para 2015, regrediram para valores de 2007, tendo-se mantido estáveis de 2015 para 2016. Em termos de investimento directo estrangeiro (IDE), entre 2003 e 2016 regista-se um aumento contínuo de fluxo agregado de IDE da China em África, de 500 milhões de dólares americanos (USD) em 2003, para 39.9 mil milhões de USD em 2016. Neste capítulo, embora os Estados Unidos da América (EUA) continue a liderar as estatísticas, os anteriores valores representam, em termos relativos, respectivamente 2 por cento e 70 por cento do stock de IDE dos EUA em África, o que reflecte também a estagnação de investimento americano no continente no período pós crise económico-financeira do final da década passada. A queda de valor de bens primários nos últimos anos resultou num novo padrão no direccionamento do IDE chinês em África. Países ricos em recursos naturais como Angola e a Nigéria viram acentuadas quedas no IDE chinês, enquanto que países como o Quénia, Etiópia e Tanzânia sairam beneficiados. O IDE chinês incide principalmente nos sectores mineiro, construção e indústria transformadora, sector este que ganhou proeminência nos últimos anos com a tranferência de operações de empresas chinesas para África, fruto do aumento dos custos laborais na China. No que concerne empréstimos da China a governos e empresas estatais de países africanos, é de referir que valores por vezes divulgados na imprensa são manifestamente exagerados. A publicação The Economist Corporate Network, por exemplo, reportava em 2015 que os bancos estatais chineses (China Eximbank, China Development Bank, CDB) tinham-se comprometido com financiamentos num total de cerca de 1 bilião de USD durante a década seguinte, valor exagerado em pelo menos uma ordem de grandeza. Um olhar crítico sobre reportagens como a citada permite desvendar a origem destes exageros. Para que empresas chinesas, e governos africanos, possam requisitar financiamento a bancos chineses, precisam de ter à partida um contrato assinado. Por vezes são anunciados projectos na sequência da assinatura de memorandos de entendimento, que raramente têm resultados prácticos. O padrão identificado anteriormente para o comércio e investimento directo estrangeiro é observado também na análise de financiamento chinês para África: crescimento acentuado até 2013, seguido de ligeiro decréscimo. Entre 2000 e 2015 a China providenciou um total de 95 mil milhões de USD em empréstimos e linhas de crédito para governos e empresas estatais africanas. O maior beneficiário destes empréstimos foi Angola (20 por cento), seguido da Etiópia (14 por cento) e o Quénia e o Sudão (7 por cento). Os empréstimos são dirigidos maioritáriamente (63 por cento) para os sectores de transportes (construção e manutenção de estradas; caminhos-de-ferro), energia (projectos hidroeléctricos; linhas de transmissão de energia; gasodutos; centrais eléctricas a carvão e gás) e telecomunicações. O sector mineiro absorve 10 por cento dos empréstimos, sendo que estes consistem maioritariamente (mais de 80 por cento) em linhas de crédito para a empresa estatal angolana Sonangol. Apenas um terço dos empréstimos são garantidos com bens primários, prática usual para investimentos em países considerados de alto risco, mas que possuem bens que investidores consideram que ajudam a cobrir os riscos associados a investimentos nesses países, nomeadamente o risco de incumprimento. Trata-se de resto de uma prática da qual a própria China usufruiu no início do seu processo de reforma e abertura. Estima-se que linhas de crédito (garantidas com petróleo) providenciadas pelo China Eximbank ao governo angolano tenham financiado a construção de 127 obras públicas. É esta, portanto, a principal razão para a utilização deste modelo de financiamento, e não tanto a tentativa de garantir acesso a recursos naturais. O exemplo de Angola é ilustrativo: a China importa cerca de metade do petróleo produzido por Angola, mas companhias petrolíferas chinesas apenas possuem cerca de 10 por cento da produção de petróleo angolano, mercado que é dominado por empresas ocidentais como a ExxonMobil e a Total. Os termos contratuais associados aos empréstimos dos bancos estatais chineses impõem sempre a preferência pela utilização de bens e serviços da China. A controvérsia associada a esta relação entre financiamento chinês e fornecedores chineses tem origem sobretudo na ideia errada que financiamento chinês em países em vias de desenvolvimento corresponde a ajuda ao desenvolvimento, quando a função de todos os bancos exportação-importação, como o China Eximbank ou o US Eximbank, é precisamente o de providenciar acesso ao crédito para compradores de bens do país. Ou seja, muito do que é dito sobre a abordagem chinesa em matéria de investimentos em África não corresponde à verdade. A abordagem é fundada em princípios comerciais, e busca a expansão comercial chinesa, estando integrada no Going Out Policy. Recursos naturais constituem um aspecto fundamental nesta relação entre a China e África (tal como na relação entre África e os EUA e a União Europeia), constituindo a larga maioria das importações chinesas. Todavia, é importante lembrar que a própria China foi até 1993 um exportador líquido de petróleo, e que na fase inicial do seu processo de reforma celebrou vários acordos de compensação comercial em termos semelhantes aos que propõe a países africanos. A volatilidade do mercado de bens primários pôs a nu fragilidades associadas à dependência excessiva de alguns países em recursos naturais, incluindo dificuldades ao nível de pagamento de dívidas. A situação actual deve, portanto, funcionar como um incentivo para diversificar a economia e promover a boa governança (países como o Quénia e a Etiópia têm feito progressos significativos neste capítulo). No fim de contas, é a melhor forma de conquistar a confiança de investidores. A China é, hoje em dia, um player incontornável em África. Mas existem aqui também desafios importantes para o lado chinês. Como referia em 2007 o antigo Presidente Moçambicano Joaquim Chissano numa conferência em Oxford dedicada ao tema de perspectivas futuras para ajudas ao desenvolvimento “devemos procurar formas de aliar ajuda à atracção de recursos para o sector privado, por forma a apoiar a emergência de uma classe empresarial robusta com uma participação forte nas economias nacionais”. Ajuda externa representa uma fracção minoritária do financiamento chinês, mas a lógica é aplicável ao discurso de “benefício mútuo”. O sucesso em África serviria como exemplo noutras faixas e noutras rotas.
Tiago Bonucci Pereira VozesAjuda Externa Chinesa – (Breve) História e Desmistificação [dropcap style=’circle’] F[/dropcap] oi este mês aprovada a criação da Agência para a Cooperação e Desenvolvimento Internacional pelo Congresso Nacional Popular da República Popular da China (RPC). Esta agência governamental, directamente sob a égide do Conselho de Estado, passará a concentrar funções previamente sob a responsabilidade do Ministério do Comércio e do Ministério de Negócios Estrangeiros – um passo óbvio, tendo em conta o aumento progressivo da ajuda externa chinesa. Nesta circunstância, e tendo como pano de fundo a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” e as relações comerciais entre a China e os Países de Língua Oficial Portuguesa, interessa aqui fazer uma síntese histórica da ajuda externa chinesa, contextualizando-a na realidade actual. A ajuda externa chinesa conheceu diferentes etapas ao longo da sua história. Neste texto consideram-se três. Uma primeira fase, com início em meados da década de 50 e que se extendeu até ao final da década de 70, uma segunda que durou até 1995, e a fase actual. Estas etapas não foram propriamente homogéneas, mas caracterizaram-se por um processo gradual de evolução com diferentes filosofias subjacentes às mesmas. Até finais da década de 70, a ajuda externa chinesa caracterizou-se por ter uma forte conotação ideológica, sendo no entanto também necessário encará-la à luz do contexto político da altura, nomeadamente a “batalha” diplomática entre a RPC e Taiwan, a Guerra Fria, e a ruptura Sino-Soviética. Num mundo bipolar, e em virtude do clima de hostilidade entre a RPC e os dois antagonistas (no caso dos Estados Unidos da América até ao início da década de 70, e com a ex-URSS a partir de finais da década de 50), a afirmação internacional da RPC impunha a definição de uma área de influência alargada, assente na visão do Partido Comunista Chinês (PCC) como uma referência alternativa à ortodoxia soviética. Esse esforço culminou, em 1971,na Resolução nº 2758 da Assembleia Geral das Nações Unidas, com o reconhecimento da RPC, apoiada por vários países recipientes de ajuda externa Chinesa. “Esforço” é a palavra apropriada para descrever esta acção da RPC, na medida em que a ajuda externa que a China providenciava tinha uma dimensão desproporcional à situação económica que vivia. Em 1980 a RPC figurava entre os 20 países mais pobres do mundo, enquanto que entre 1971 e 1975 a ajuda externa chinesa correspondeu a 5.88% do seu PIB. Até então, a ajuda externa era concedida sem especiais condições com vários projectos a serem financiados sem uma avaliação criteriosa. Por outro lado, as infraestruturas que eram construídas através desses projectos caíam posteriormente em desuso devido à falta ou deficiente manutenção, e, em geral, por uma má gestão das mesmas. Se a princípio a ideia era a de que a RPC apoiava esses países com fundos e meios técnicos para entregar os projectos quando finalizados, a realidade exigiu que os técnicos chineses voltassem aos países recipientes para recuperar e gerir as infraestruturas. Foi uma situação considerada insustentável pela liderança de Deng Xiaoping e que exigia mudanças profundas. A segunda fase da história da ajuda externa Chinesa tem, assim, início em finais da década de 70, numa altura em que a RPC iniciava o seu processo de abertura e de modernização, processo com o qual o modelo anterior de ajuda externa era incompatível. Esta etapa caracteriza-se, pois, por um processo evolutivo em que a RPC procurou recuperar anteriores investimentos e alterar o modelo de ajuda externa, tendo como referência a sua própria experiência. A China era, afinal de contas, também um país recipiente de ajuda externa, e a partir de 1978, com o início do seu processo de abertura e de modernização, atraiu investimentos de países desenvolvidos. O primeiro a entrar no mercado chinês foi o Japão. Na sequência da primeira crise do petróleo, em 1973 o Japão começou a importar petróleo da China. Em 1978, os dois países assinam um contrato de longa duração em que o Japão financiava 10000 milhões de dólares em tecnologia e materiais que a China compensava com pagamentos diferidos exportando petróleo e carvão. O Ocidente seguiu o mesmo caminho, com base em acordos de compensação comercial (que permitiam a importação de equipamentos e máquinas com pagamentos diferidos com bens produzidos) e acordos de financiamento com vista a abrir as portas do mercado chinês para empresas desses países. Importante é sublinhar que a China encarou estes métodos como positivos, na medida em que permitiram a modernização do seu tecido produtivo num cenário de escassez de divisas, transferência tecnológica, e formação de quadros. Os países que investiam na China não o faziam com sentimento puramente altruísta, mas em benefício próprio (egoismo altruísta). Isto, conjugado com a experiência anterior chinesa e os muitos problemas identificados, permite enquadrar melhor o modelo actual de ajuda externa chinesa. Na década de 90 a RPC implementou reformas que tiveram um profundo impacto no seu programa de ajuda externa, com destaque para a separação de empresas de comércio e corporações de cooperação económica de ministérios aos quais estavam previamente afectas, e a criação, em 1994, de três bancos: China Development Bank, China Export Import Bank (Eximbank), e o China Agricultural Development Bank. O corolário destas reformas ocorreu em 1995 com o lançamento de um novo sistema de empréstimos preferenciais financiados pelo Eximbank. No mesmo ano, Zhang Chixin, director-adjunto do Departamento de Ajuda Externa do Ministério do Comércio, lança a ideia base da nova estratégia: combinar ajuda a África, cooperação mútua, e comércio. A ajuda externa seria utilizada para investimentos em joint-ventures, estabelecimento, por empresas Chinesas, de fábricas em solo africano e exploração de recursos naturais. O discurso “win-win” reflecte claramente que a filosofia que está na base da ajuda externa Chinesa actual impõe benefícios mútuos e sustentabilidade. E premeia, para mais, a boa governança de países recipientes. Entre 2000 e 2015 os países africanos que receberam mais empréstimos do Eximbank foram a Etiópia e Angola, seguidos do Quénia, um país sem grandes recursos energéticos fósseis ou minerais, mas que figura entre os melhores classificados de África em matéria de governança. O que se deduz é que, ao contrário do que muitas vezes é dito e escrito no Ocidente, a ajuda externa chinesa não se centra apenas em países ricos em recursos naturais, nem é feita ignorando as necessidades dos países recipientes. É indiscutível que recursos naturais são um factor importante na canalização de investimento Chinês, mas a verdade é que a estratégia Chinesa tem um âmbito mais alargado. O desenvolvimento dos países recipientes é encarado como um objectivo com o qual a China também irá beneficiar, tanto de um ponto de vista moral como material. A China procura ganhar mercado, e os projectos que acompanham a ajuda externa permitem o estabelecimento de empresas chinesas nesses países. A prosperidade dos mesmos representa também a prosperidade dessas empresas. Percebe-se aqui o eco do discurso inaugural de Harry Truman em 1949: “Todos os países, incluindo o nosso, irão beneficiar de um programa construtivo para o melhor uso dos recursos humanos e naturais do mundo. A experiência demonstra que o nosso comércio com outros países expande-se com o progresso industrial e económico dos mesmos”.