Fernando Eloy VozesStomachus Nostrum [dropcap style=’circle’]P[/dropcap]arece-me pacífico afirmar que a situação dos refugiados que diariamente escapam do Norte de África em direcção à Europa é insustentável. Também me parece tranquilo dizer que a Europa, e o mundo em geral, não estão a fazer ou conceber nada verdadeiramente relevante para que a situação melhore. Parece-me ainda que a determinada altura até os mais liberais na Europa vão também começar a alinhar com os radicais que pretendem construir muros ou organizar deportações maciças como o idiota do Trump a quem podemos juntar Viktor Orbán e Netanyahu. Parece-me igualmente claro que as pessoas apenas fogem do Norte de África porque ou têm o país em guerra, ou são perseguidas ou vivem na mais abjecta das misérias sem oportunidades de trabalho. Normalmente as pessoas só abandonam os seus países em situações extremas ou por turismo, e as migrações à procura de melhores condições de vida são absolutamente vulgares, até naturais. Qual a solução então? Apesar de tudo, a experiência Europeia e o próprio bom senso, dizem-nos que integrar é melhor que ostracizar, miscigenar é melhor do que ‘racializar’. [quote_box_left]No fundo, em qualquer parte do mundo, em qualquer civilização ou cultura, queremos todos o mesmo: paz, comida, ar puro, tempo para estar com a família e os amigos e um futuro agradável para os nossos filhos[/quote_box_left] Volto um pouco atrás no tempo para recordar um conversa que tive em Hanoi há uns anos: num bar falava com um fulano que se apresentou como “meio vietnamita, meio francês” – Estava de volta ao Vietname depois de muitos anos em Marselha. Eventualmente, a conversa descambou para a comida e mais precisamente para o molho de tomate, vindo eu a descobrir que a filosofia do lado marselhês dele para o molho de tomate em muito pouco diferia da minha. Este detalhe fez-me pensar mais tarde na minha condição de imigrado e na minha própria identidade. À distância, especialmente vivendo numa civilização diferente da nossa como é a Chinesa, as diferenças que sentimos na Europa (até entre nós e os espanhóis) esbatem-se ao ponto de descobrirmos muito mais afinidades culturais com um sueco do que com um coreano. Então, depois de viver na China ficou muito mais fácil de me definir como um Europeu porque há, de facto, uma história conjunta e uma partilha cultural que se revela nos livros, na música, nos hábitos… Mas eu quis ser mais preciso na minha identificação cultural e foi aí que entrou o estômago e a conversa com o marselhês vietnamita porque quando mudamos de civilização, ou mesmo de cultura, os nosso hábitos alimentares são os mais difíceis de alterar, especialmente o pequeno almoço, segundo afirmam alguns especialistas, e isso pode fazer um mundo de diferença na nossa percepção de bem estar e na capacidade de integração. Por experiência própria, todos nós que vivemos longe da nossa cultura de origem sabemos o que isso é. Em Macau, para os portugueses, quase não se nota nos dias de hoje, mas se vivermos em Zhuhai, Pequim ou Tóquio a coisa fica diferente. Um dia visitei o Toni quando ele treinava na China e pensei que diabo havia de lhe levar de lembrança. Estando ele Shenyang resolvi-me por bacalhau e vinho. Foi uma festa para ele e para o Carlos Azenha, contou-me mais tarde. Assim, nesta procura da identidade quando o estômago entrou em cena rapidamente percebi que sou Europeu, sim, mas Europeu do Sul porque os meus hábitos alimentares definem-me mas do que uma língua, mais do que a cor da pele, mais do que quase tudo porque estão intimamente ligados com a minha experiência como ser vivo. Assim, a minha identidade define-se no Mediterrâneo e os hábitos alimentares foram o que me levaram lá. Senão, caro leitor, mesmo que como eu, se adapte bem a um regime alimentar diferente, quanto tempo consegue passar sem um bom tinto, umas azeitonas, queijo, pão, fumados, azeite, um sumo de laranja e, claro está tomate? Não muito sem sentir umas ânsias, não é? Mas a verdade é que não estamos sozinhos nisto. Acontece o mesmo aos espanhóis, aos franceses, aos gregos, aos croatas, aos turcos… Tenho andado a perguntar-lhes sim, sempre que encontro alguém dessas bandas. Esta semana conheci um libanês e quis saber como era para ele, e é a mesmíssima coisa – choramos todos pelo mesmo. Foi então que me surgiu a ideia para resolver o problema dos refugiados do norte de África: integrar. Não na comunidade Europeia mas num comunidade mediterrânica. Razão tinham os Césares quando estabeleceram o Mare Nostrum apesar dos pressupostos serem errados pois a questão era de poder imperialista e não de convivência cultural, mas ainda foram 600 anos… o problema foi precisamente o facto de os romanos não estarem interessados na diversidade dos povos mas sim na sua dissolução no império e isso não funciona, porque uma união forte só o é se respeitarmos e apreciarmos a diversidade como factor de desenvolvimento e renegarmos a uniformidade porque não nos abre caminhos novos. Chamemos então a esta ideia Stomachus Nostrum. Usemo-la como tema de trabalho, como leitmotiv se assim pretender, e imaginemos uma União Mediterrânica entre os países do Sul da Europa e os Países do Norte de África. Os países da Europa mantêm-se na UE mas, numa primeira fase, os países do Norte de África não. Será uma espécie de zona tampão, ou melhor, uma antecâmara de descompressão, uma fase preparatória, mais tarde permitiria a integração dos Países do norte de África na UE mas, no imediato, criava-se uma zona de livre circulação à volta do Mediterrâneo e, claro está, a UE e o resto do mundo desenvolvido e não apenas os países do sul da Europa teriam de colaborar no processo de desenvolvimento dos Países do Norte de África. Evidentemente, para que este processo seja possível, aqueles países terão de cessar no imediato todas as hostilidades, resolver questões fundamentais como a instituição de Estados laicos de Direito, liberdade religiosa, igualdade entre sexos, eleições livres… etc. porque nós mediterrânicos temos mais em comum do que a separar-nos e não é só a comida que nos une… É um processo difícil porque existem hábitos arreigado difíceis de mudar mas se as perspectivas de futuro forem boas tudo muda. No fundo, em qualquer parte do mundo, em qualquer civilização ou cultura, queremos todos o mesmo: paz, comida, ar puro, tempo para estar com a família e os amigos e um futuro agradável para os nossos filhos. É óbvio que não existem soluções perfeitas e esta terá os seus problemas mas parece-me ser o caminho, assim haja coragem politica para sensibilizar os povos e reunir os meios para o fazer. MUSICA DA SEMANA: Anouar Brahem – “Astrakan Café”
Fernando Eloy VozesRisco [dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á um velho ditado, que todos conhecemos mas nem todos praticamos. O nosso bom amigo, “Quem não arrisca não petisca.” – ele é válido para (quase) tudo. É provavelmente, das melhores expressões da nossa gente. Pela alta energia que emana, pelo impulso para o desconhecido, pela capacidade de acreditar, por ser o empurrão que falta em horas de indecisão. “Quem não arrisca não petisca” faz-nos acender uma pequena luz cá dentro que, com jeitinho, conseguimos transformar num clarão de lucidez e emoção. “Quem não arrisca não petisca” é o conselho que o amigo nos dá por nos crer ver singrar, por não nos quer ver infelizes. “Quem não arrisca não petisca,” é o que a mãe nos diz quando aprendemos a andar de bicicleta. “Quem não arrisca, não petisca está connosco quando precisamos de nos rir com a vida. “Quem não arrisca não petisca”, terá sido o que passou pela cabeça do Gama quando se fez ao mar, pela do Carlos Manuel quando acabou com a Alemanha à bomba, terá também passado pela cabeça do Bogart quando beijou Bacall pela primeira vez, e pela de muitos de nós que fizemos o mesmo, ou parecido, e vivemos um amor à conta disso. Terá surgido na cabeça de muitos que um dia decidiram arriscar para conquistarem o petisco. “Quem não arrisca não petisca”, ou seu equivalente em italiano, também terá passado pela cabeça de Romeu, que acabou como se sabe, até de Ícaro muito provavelmente. Mas essa é a essência do risco. Pode correr mal. Pode ser um amor impossível, um sonho difícil de atingir, mas também pode correr bem e se arriscarmos vamos sempre saber que tentámos. Podemos calcular o risco mas não podemos viver sem ele. Vêm-me estes riscos ao papel a propósito de uma história ouvida há dias e passada num outro dia num desses departamentos do governo. Ao que consta, terá saído uma ordem de serviço a pedir ao designer gráfico que não deixasse tanto espaço em branco nos posters pois isso poderia ser considerado desperdício de papel… não podia ser real! Mas foi. Lembra-me então a história quão penalizado pode ser arriscar em Macau. Neste caso, para não arriscar, o funcionário em jogada brilhante de antecipação prefere jogar pelo seguro e sugerir a poupança de papel no design gráfico nem que para isso tenha de espezinhar a criatividade no processo, mesmo qualquer tímida assomo futuro desse vício. Tendo esta história acontecido num departamento onde a criatividade deveria ser moeda corrente, tamanho descalabro cambial proporciona péssimos sinais. Sinais de um “burrocracia” instituída, sinais de que o risco continua a não ser praticado mas visto como demónio a evitar. Em Macau não se arrisca porque o erro é insuportável, vai-se a face e as roupinhas. Mas o erro não é insuportável, o erro tem de ser “descriminalizado”, pois sem erro não há criatividade. Especialmente, numa terra onde o governo surge como um dos principais agentes da economia e do desenvolvimento social e educativo locais, deve ser ele o primeiro a perder o medo de arriscar, de aceitar propostas inovadoras, de estimular as suas próprias chefias a perderem o medo de arriscar. O erro é inalienável da inovação. Jogar todos pelo seguro contraria a evolução e sem evolução não há petisco. Fogo Ainda alguém liga aos fogos em Portugal? Isto, é claro, se não morar na zona, por outra questão directamente relacionada, ou não tiver família ou amigos ligados a um dos 25.000 fogos florestais que Portugal regista em média por ano. Pergunto isto porque à semelhança de outros casos, a repetição excessiva promove a entrada do fenómeno nas nossas paisagens visual e auditiva default como mais um ruído entre muitos outros. A nossa atenção diminui porque é sempre o mesmo. Pessoalmente, desde que me lembro de ver notícias, e já vão uns bons anos, há sempre notícias de fogos florestais em Portugal. Aposto inclusive, que se a RTP fosse aos arquivos e colocasse imagens de 2002 para ilustrar as noticias de incêndios deste ano, apenas o locutor desactualizado nos faria alertar da troca pois o resto seria igual. Milhares de hectares ardidos, casas em perigo, fogo-posto, reacendimentos, bombeiros vitimados, florestas por limpar. Todos os anos, sem falha, repetem-se as entrevistas e as situações e nada muda. Ou melhor, algo muda e logo o que não devia: cada vez arde mais, isso sim, isso muda. Segundo a Pordata, os resultados são estes: nos últimos 10 anos arderam 1,6 milhões de hectares de floresta e mato; desde 1980 até hoje foram quase 4 milhões! Na década de 80 arderam 735,000 hectares, na de 90 foram pouco mais de 1 milhão, nos anos 2000, 1,5 milhões e, até 2013, mais meio milhão de hectares. Este ano já arderam 31.000… Ou seja, quanto mais tecnologia, acessos, suposto esclarecimento e métodos de combate existem mais mata arde. Traduzido para euros, o jornal i anunciava em 2013 “segundo dados do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), as perdas ambientais e materiais resultantes dos incêndios na floresta atingiram 2,224 milhões de euros entre 2002 e 2012.” E este montante correspondia (apenas) à destruição de 1,5 milhões de hectares de floresta. O que se poderia fazer em termos de inovação para pesquisa e prevenção, para descobrir formas inovadoras e prevenir e atacar incêndios florestais com, seja, 10% desse orçamento? A verdade é que nestes últimos 30 anos, as políticas de todos os governos, sem excepção, para a protecção da floresta portuguesa são um rotundo falhanço. Perante tanta inépcia, tanto discurso vão, pela simples incapacidade de se criar uma task force multidisciplinar que analise a fundo o fenómeno e proponha soluções inovadoras, só custa mesmo a acreditar ainda existir haver floresta para queimar em Portugal. MUSICA DA SEMANA Asian Dub Foundation – “In Another Life” (…) “Children with no eyes, push the …up the hills Not blinded by the light, but by another’s will Possession’s at the rage, breathe life into every day The world has a different way, at the bottom of the food chain And if you’re looking at your life from only way you are You only see the ground, will you ever see the stars” (…) Destaque O erro é inalienável da inovação. Jogar todos pelo seguro contraria a evolução e sem evolução não há petisco.
Fernando Eloy VozesPrivacidade ou transparência? [dropcap sttyle=’circle’]P[/dropcap]arece-me uma questão essencial nos dias que correm e um absurdo advogar as duas. A sensação que tenho é que a transparência vai acabar por ganhar. Transparência absoluta, isto é. De governos, de corporações e de indivíduos. Não me parecem conceitos compatíveis. Não me parece sequer que a privacidade seja viável no mundo que se vive e, especialmente, no que se avizinha. Provavelmente ainda podemos passar por um temível buraco negro onde nada é transparente antes de conseguirmos ver alguma luz, mas não me parece que o futuro seja esse. O grande paradoxo disto tudo é que são precisamente as mentes mais liberais que mais advogam… as duas. Para um conservador a questão pura e simplesmente não existe – privacidade e pronto, pública e privada. Mas para um pensador liberal a transparência de corporações e governos é um dado absolutamente fundamental tal como a preservação da nossa privacidade individual. A primeira por querermos governos e empresas mais justas e, acima de tudo, mais responsáveis. A preservação da privacidade de cada um precisamente para prevenir comportamentos abusivos de corporações e governos. Mas também para impedir perseguições políticas, religiosas ou outras, para prevenir a invasão da nossa esfera individual por “marketeiros” e, inclusivamente, por questões tão prosaicas como o acesso ao emprego numa altura em que é cada vez mais frequente um candidato, ou funcionário, ser sujeito a uma análise criteriosa do seu comportamento nas redes sociais e alvo de discriminação, ou despedimento, se elas não se ajustarem aos princípios do empregador. A privacidade do indivíduo é, portanto, um direito fundamental de uma sociedade que se pretenda moderna e tolerante. Parece-me claro. Ou não. A questão não é a do direito, perfeitamente compreensível, a questão é onde a privacidade individual leva e até que ponto ela é vantajosa para o bem comum e, consequentemente, para o bem de cada um de nós. Haverá com certeza muitos que concordarão que a possibilidade de termos uma persona para a família, outra para os colegas, mais uma para os amantes e ainda outra para os amigos de café faz parte das nossas liberdades inalienáveis e, naturalmente, essa possibilidade deve ser preservada a todo o custo. Mas faz mesmo sentido esta multiplicidade de comportamentos? Todos nós, ou a grande maioria, o pratica mas faz mesmo falta? Que temos nós a ganhar como indivíduos e, principalmente, que temos nós a ganhar como sociedade com esta multiplicidade de personas? Se para o indivíduo pode gerar a incapacidade de alguma vez fruir completamente a persona que realmente é, para os seus interlocutores cria realidades alternativas as quais duvido nos façam falta. No limite, temos aquele testemunho típico do vizinho: “Não, nunca dei por nada, era uma pessoa extremamente calma, muito cordata…” mas acabou de assassinar a família ou de colocar uma bomba no metropolitano. Eu sei, isto é o limite. Mas podemos ir para a versão leve do marido que se casou para fazer figura perante família e sociedade mas na realidade é gay e vive amarfanhado naquela realidade alternativa que até obriga a mulher a servir para fora. Um dia é apanhado com a boca na botija e… pronto, vida desgraçada. A dele, a da mulher e até da avó de Trás-os-Montes que já tinha desconfiado da coisa e até dava de barato mas não vai conseguir aguentar a vergonha lá na aldeia, agora que toda a gente sabe. Foi ele, podia ter sido ela. (Estes meus artigos seguem rigorosamente critérios de igualdade de oportunidades mas não necessariamente de quotas…) Voltando à vaca fria, se é que ela alguma vez aqueceu, nós próprios somos os primeiros a violar a nossa privacidade ao postarmos nos facebooks e twitters a nossa vida e mais um par de botas. No fundo, e aparentemente, a necessidade de não ser privado parece maior do que a do ser privado. Dirá agora o leitor que isso é uma necessidade de afirmação, de combate à solidão, até de exibicionismo não fazendo parte das características gerais da populaça. Pode até ser, mas é cada vez mais frequente e penso que terá de concordar comigo neste ponto, senão atente nisto: Em 2010, o homem-cadeira da Google, Eric Schmidt, dizia que desde o dealbar da civilização até 2003 tinham sido recolhidos 5 exabytes (Eb) de informação (sendo 1 Eb igual a 1 quintilião de bytes) e que naquela altura já eram recolhidos os mesmos 5 Eb mas a cada dois dias… Há quem diga que ele exagerou um pouco mas não por muito pois hoje, segundo dados da IBM publicados no ano passado, em 2012 o Google recebeu mais de 2 milhões de pesquisas por minuto valor que dobrou em 2014… Hoje, o Google recebe mais de 4 milhões de pesquisas por minuto provindas da população internáutica mundial estimada em cerca de 2.4 biliões de utilizadores. Mas estes números, naturalmente, tendem a aumentar com mais países cobertos pela internet e com a proliferação de acessos móveis, porque hoje apenas 40% da população mundial tem acesso à Internet… E a partilha de informação, porque é essa razão que me levou para estes meandros da “Byto-contabilidade”, num futuro não muito distante vai conhecer contornos completamente diferentes ao ponto do mesmo homem-cadeira dizer este ano na conferência de Davos que a Internet como a conhecemos vai desaparecer em breve, e justifica: “Há tantos IP’s, tantos dispositivos, sensores, coisas que nós vestimos, coisas com que interagimos que nem sentimos. Vai ser parte da nossa existência a todo o momento. Imagine que entra numa sala e a sala é dinâmica. E que com a sua permissão, e por aí fora, está a interagir com as coisas que se passam na sala.” Isto já nem sequer cheira a ficção cientifica. É uma questão de meses, nem de meia dúzia de anos. Em resumo, todos nós sabemos que esta dinâmica de partilha e troca de informação deixa pegadas digitais. Algures, alguém com o devido algoritmo conseguirá compilar sem grande esforço toda a nossa vida internáutica que é, cada vez mais, a vida toda. Sem grande esforço, o nosso retrato virtual pode ser pintado por um curioso na Índia ou por um policia em Chicago. Há umas semanas, um grupo de hackers afirmava que em breve vão conseguir publicar as preferências porno de cada um de nós, ou daqueles que o consomem, e que não me parece serem tão poucos assim a julgar pelos dados que o Pornhub vai frequentemente divulgando – Ui! A fronteira da sexualidade, esse grande tabu. Já nem esse escapa. A perda de privacidade é um processo em curso e, parece-me, inevitável. Por mais que possamos argumentar em favor dela nós somos os primeiros a dinamitá-la. Por isso as minhas questões: a privacidade é compatível com a transparência? Será que precisamos realmente de privacidade? Nesta fase sim, porque a informação pode ser usada contra nós, porque os governos não são suficientemente transparentes, nem de confiança, porque muitos empregadores são uns cretinos. Mas existe alguma razão de facto para as reuniões de um conselho ministros não serem públicas, por exemplo? Só as vigentes, ou seja, não pode ser apenas um governo a tornar-se transparente têm de ser vários. Todavia, caminhamos a passos largos para um mundo onde a transparência será cada vez maior e a privacidade vai provavelmente acabar no caixote das recordações. Estamos no limiar de uma nova era da história da humanidade. Em boa verdade, quando ninguém tiver nada a esconder que mais resta para esconder? Que chantagem será possível quando todos soubermos tudo de todos? O conhecimento dos hábitos sexuais do vizinho, ou o ordenado do colega passa a ser informação tão corriqueira que mais ninguém ligará. Talvez seja o caminho para uma vida mais plena, mais verdadeira, mais próxima do que somos de realmente e não consigo imaginar nada melhor do que isso. O único travão que nos atira para a necessidade da privacidade é o medo. Mas medo do quê? Por mim, concordo com o Astérix, só tenho medo que o céu me caia em cima da cabeça. MUSICA DA SEMANA Androcell – “Process of Unfolding” “We experience the feeling that this body right Here and now, is only a cross- section of a Process that has been going on for Four billion years on this section of space It’s not a story about processes out of control It’s a story, which gives honor To every part of the unfolding experience” (…)
Fernando Eloy VozesDinheiro, Dinheiro e apenas o Dinheiro. Eles, sempre eles e… os SS [dropcap style=’circle’]D[/dropcap]a crise grega à proibição do fumo em Macau, um denominador comum: o dinheiro. O vil papel, que de ouro já nada tem e muito menos de metal, nem de papel, pois é mais números, serve de justificação para tudo, até para nos proibir de fumar. Na Grécia depois de negociações mais difíceis que um divórcio litigioso daqueles bravos e depois de um referendo que serviu apenas para vender notícias, foi tudo reduzido ao que já se esperava à partida: ao poder do dinheiro, ou dos detentores dele, que assim ignoraram olimpicamente referendos ainda que atenienses e passaram por cima de toda a folha, que nem carro de assalto. Como dizia um deputado do Parlamento Europeu há uns dias, “vivemos os tempos do totalitarismo do capital”. Nem mais. Já nem sequer é capitalismo. Está muito para além disso. A culpa é de quem? De seres sombrios invisíveis acantonados em vilas remotas? Dos extraterrestres? De poderes ocultos emanados por sociedades ainda mais dissimuladas? Não, o problema é nosso. Da grande maioria de todos nós. Podemos barafustar contra a alienação motivada pelo lucro, contra os potentados económicos que nos disciplinam em favor dos seus desejos de controle global, contra os governos, esses corruptos danados que só estorvam, contra os carros e as indústrias que arruínam o nosso planeta… Podemos até protestar contra os que já morreram ou contra as dinastias passadas que nos deixaram nesta situação lastimável, mas esquecemo-nos de uma coisa fundamental: de olhar para o espelho. Nem os governos eram corruptos, nem as empresas perigosas máquinas imperialistas, nem os carros poluiriam tanto se nós, esses que protestam, não andássemos de carro por tudo e por nada, se nós não fossemos todos loucos por dinheiro, se nós não fossemos consumistas empedernidos e corruptos quando a ocasião propicia, se nós não poluíssemos os rios e as praias e as florestas que frequentamos com a famelga, se nós não fossemos uns anormais que passamos a vida a colocar a culpa “neles”. Eles! Esses sim, os verdadeiros bandidos que nos atormentam. Caso contrário, a nossa vida poderia ser um maná. É por isso que os Serviços de Saúde, ou SS, pela facilidade e pela sigla muito a propósito, podem ter a lata para dizer que “fumar não é uma necessidade de vida”. Eles podem dizer este tipo de coisas porque vêm escudados no dinheiro. No caso vertente na “astronómica” quantia de 6 milhões de patacas, já com as adendas e as migalhinhas possíveis e imaginárias adicionadas (mas não especificam quanto desse dinheiro vai para as Nicorets oferecidas pelos SS) e partindo do princípio que os SS sabem fazer contas, porque de saúde… Mas dando de barato que até sabem, que são mestres em contas públicas, gostava agora que continuassem na sala da contabilidade e aproveitassem para fazer as contas aos prejuízos causados PELO FUMO DOS CARROS! E, já que estão a com a mão na massa, aproveitem e telefonem às Obras Públicas e ao IACM e eles que vos enviem os números dos impactos da poluição dos veículos motorizados no património edificado e na fauna e flora locais. Deve dar um número giro. Bem melhor que os vossos miseráveis 6 milhões. Porque ao fumo do tabaco normalmente consigamos escapar, mas o dos carros é penetrante além de ser muito mais e mais nocivo, atinge todos sem excepção (não apenas os croupiers) pois nem em casa se está a salvo. Não interessa, isto não interessa?… Pois… A culpa é deles, eu sei. Os SS apenas podem vir para a praça pública defender a sua dama sem fumo porque surgem com o discurso politicamente correcto do dinheiro. Ao ouvirmos o tilintar mágico dos cifrões amochamos prontamente, damos umas palmadas nas costas aos SS e ainda agradecemos efusivamente aos benditos por nos pouparem o nosso rico dinheirinho, na esperança de que, talvez assim, consigam aforrar para construírem o tal do novo hospital e comprem as máquinas em falta no único hospital existente apesar de, no fundo, todos sentirmos que será mais fácil encontrarmos um melão fresquinho no meio do Saará. Este tipo de mentalidade dinheiro-motivada provoca uma insensibilidade brutal para as diferenças, obriga-nos como sociedade a tornar-nos maniqueístas (onde tudo é branco ou preto) nuns freaks que passam por cima de tudo e mais alguma coisa se o belo do dinheiro estiver em causa, em sociedades amorfas alinhadas por um mesmo diapasão seja ele qual for. Por isso surgem insensibilidades práticas como a proferida pelos tais dos SS de Macau quando afirmam, no auge da sua prelecção aos peixes, que “fumar não é uma necessidade vida”. Mas quem são estes SS para dizerem uma coisa destas? Estão assim tão apaixonados pela sigla ao ponto de se porem a fazer propaganda barata? Só quem nunca fumou pode dizer uma coisa dessas, ou então um ex-fumador, duas das espécies mais tenebrosas ao cimo do planeta: os abstinentes e os ex. Uns fundamentalistas porque nunca experimentaram e têm medo de o fazer pois podem gostar, os outros porque experimentaram tanto e exageraram mais ao ponto de terem medo de voltar pois não têm um pingo de confiança neles próprios – para simplificar, burros, fanáticos e esquizofrénicos. Pois, caros amigos dos SS: estão completamente enganados! Fumar é uma necessidade de vida para milhões de pessoas desde há milénios e até muito antes de se inventar a saúde! Caso contrário, comer fast food também não é uma necessidade de vida, beber chá ou um café muito menos e então ingerir álcool nem se fala! Ainda por cima martelado como ele é em Macau… e vendido ao pé de paragens de autocarros e tudo!… Ou estão também a pensar aumentar os impostos sobre este tipo de produtos? Ou proibir cadeias de fast food junto das escolas e hospitais para evitar a tentação? Ou aumentar os impostos ao café e ao chá de tal ordem nos obrigue a pensar várias vezes no assunto antes de enfiarmos a cafeína pela goela abaixo? E o açúcar?!… E as carnes que congelam e descongelam nos nossos supermercados?… Enfim, esta página tem o tamanho que tem. Que sabem vocês da vida SS? Ah.. e já que gostam tanto de citar a OMS não se esqueçam que Macau é o 3º território no mundo com a maior esperança de vida e desde há muitos anos. Sim, nos tempos em que se fumava e tudo. Mas vou até mais longe e pergunto-vos: que é a vida para vós? Qual o sentido? Picar o cartão de segunda à sexta e aturar a família ao fim de semana? Dormir cedo, acordar cedo e respirar o ar puro dos lótus em flor pelos boulevards de Macau? Levar uma vida direitinha e controladinha para morrermos todos direitinhos e controladinhos e, de preferência, de uma doença aceitável para os vossos serviços? Pois bem caros amigos, eu pouco sei da vida mas pelo que fui vendo, é muito mais que um cigarro como também é muito mais do que um café ou até do que uma volta ao mundo. A vida é muito mais do que conceitos estreitos de moralidade e de comportamento como pretendem fazer crer. A vida faz-se de grandes e pequenos prazeres, de amores e de desamores. Por isso, caros SS, afirmações dessas soam a paternalismo, a fundamentalismo e são em tudo contrárias daquilo que, de facto, a vida deve ser: uma celebração de infinitas possibilidades. Talvez devessem especializar-se na morte, pois parecem perceber mais desse assunto. Mas pronto, porque estou eu a encarniçar-me contra vocês? Eu sei… a culpa não é vossa. É deles. Pois… eu sei. Desculpem.
Fernando Eloy VozesAgitpop? [dropcap style=’circle’]”[/dropcap]Devemos estar mais vigilantes… e colocar nas nossas mentes a necessidade de prontidão para combate.” Esta é uma das várias afirmações que o General Cai Yingting, Comandante da Área Militar de Nanquim do Exército Popular de Libertação (EPL) assina em conjunto com o seu comissário político Geral Zheng Weiping num artigo de 5,000 palavras do Diário de Povo, onde pedem ainda que “o Exército fortaleça a suas capacidades de guerra no mar e o estado geral de prontidão para combate”, alertando para o risco de “estados de guerra à porta de casa”. Segundo estes dois generais,”aconteceram mudanças profundas nas disputas territoriais nas periferias do país, além de clivagens étnicas e religiosas. As tensões e os pontos quentes estão também em crescimento e o risco de caos e Guerra à nossa porta aumentou.” Um texto, dizem os autores, “destinado a aumentar a consciência no EPL e no público para necessidade premente de um sistema de defesa aperfeiçoado e preparado para uma luta prolongada pela integridade territorial chinesa.” O artigo destes dois generais é referenciado no South China Morning Post onde o observador militar Liang Guoliang afirma considerar “um acto muito raro” ver um comandante e um comissário político repartirem um artigo sobre estratégia de guerra. Raro e, seguramente, preocupante. Não por serem dois, mas por um deles ser comissário político. Porque uma coisa é ter um militar a querer mais bombas, outra é ter o lado político a alinhar pelo mesmo discurso. E “uma luta prolongada pela integridade territorial chinesa”? Que quer isto dizer? A China tem medo de ser invadida por quem? Pelos japoneses a tentarem equilibrar as contas? Pelos Filipinos que mal conseguem suster-se? Ou será que apontam a ameaças mais distantes?… Ou mais próximas… Ou nada disso?… Naturalmente, não existirá nada pior para um militar do que uma carreira sem uma guerrinha que seja para ganhar umas medalhas a sério. Nada pior para um militar do que ter tantos brinquedos novos e só poder utilizá-los em exercícios. É como “coiso” e depois não conseguir “coiso”. Mas quando vemos o poder político envolvido ficamos preocupados. Pode não ser mais do que uma manifestação de força, ou uma manifestação de gases, no sentido arcaico de demonstração de poder dos Estados através do tamanho do seu exército. A cena fálica…. mas isto não afecta apenas chineses – faz parte da epidemia mundial de valores que consideramos como certos. Ao mesmo tempo, a China prepara-se para celebrar em grande o 70º aniversário do final da II Guerra Mundial com um formidável desfile militar marcado para Pequim no dia 3 de Setembro. Dizem que as tropas há três meses não param de exercitar-se. Quais os convites endereçados a chefes de estado estrangeiros permanece incerto mas já se lê aqui e ali que várias potências ocidentais poderão não estar presentes e, muito menos, o conservador primeiro ministro japonês que terá sido convidado. A ser assim, é pena. É pena que o mundo não consiga reunir-se para celebrar o fim de uma guerra, é pena que o fim de uma guerra seja celebrado com os preparativos para uma próxima, sabe-se lá onde ou porquê. Claro que do outro lado temos uma Europa autofágica, cada vez a funcionar menos em bloco, ainda ignorante do que a crise grega significará, de facto, para a Comunidade, ameaçada pelas migrações do norte de África, pela tentativa de dissensão da Inglaterra e pelo terrorismo, o que constituem motivos suficientemente encorajadores para um realinhamento de forças no xadrez internacional. Mas é apenas isso, China? Seja qual for a razão, este toque a reunir da China “arautado” por estes dois generais no período conturbado que se vive, apenas serve para adensar climas e a consciência dos cidadãos, por muito preocupados que os dois generais estejam com a segurança. Esta chamada às armas pode apenas criar engulhos na relação da China com o resto do mundo e surge no sentido inverso do que os povos por todo o mundo clamam, ou seja menos armas, menos tensão, menos demonstrações de força. Na minha modesta opinião de observador, a China tem algo a superar: A China tem de livrar-se do complexo de inferioridade. Em primeiro lugar porque não lhe dá saúde, depois porque às vezes transmuta-se em actos típicos de um complexo de superioridade com tons pouco garridos. A China tem de acreditar mais nela, e tem todas as razões para isso, no poder da sua cultura, da sua capacidade de relacionamento com outros povos, da sua sabedoria. Este complexo de superioridade manifesta-se, por exemplo, nesta necessidade de mostrar os brinquedos. Mas convenhamos: A China levou nas trombas do mundo. Repetidas vezes. De vários lados. Obrigaram-nos a drogarem-se, invadiram-nos, partiram-lhes a casa, até lhes mudaram a forma de vestir… Foram ao fundo, emergiram. Estão num caminho completamente novo. Enfim… A China é como aquele puto que todos tínhamos na escola, a mula de carga, o tolo sempre alvo de “mimos” e “piropos”. Só que o puto cresceu, o “geek” ficou rico e os “bullies” batem-lhe à porta, sorridentes – agora querem quotas de mercado. Eu também me armava em bom. Honestamente… dá vontade. Mas temos de desmultiplicar. Todos. Temos de parar de mostrar a pilinha uns aos outros ou não vamos a lado nenhum. Cuidar da Terra e da nossa vida requer união e concentração absolutas. Requer acordos internacionais vastos, boas relações. Se continuamos a perder tempo não vamos lá. O mundo pede uma China moderna e construtiva como tem vindo dando mostras que pode ser. Por isso, prefiro acreditar que estas ejaculações de militares frustrados, que não contribuem nada para o sossego das gentes, nem para qualquer formulação de harmonia ou progresso, sejam apenas ruído ou, pelo menos, agit-pop. MÚSICAS DA SEMANA Agitpop – “Stop Drop and Roll” Yoko Ono – “Give Peace A Chance (Remix) 2005” … Mas nada muda since 1969. Aprecie a semana, caro leitor. É o que nos resta.
Fernando Eloy Manchete VozesA cidade feliz “É conhecida como a Las Vegas da Ásia mas, para os visitantes não-jogadores, Macau é tudo menos isso. Apesar de fazer mais dinheiro do que a cidade-pecado do Nevada, Macau não tem nem a vibração electrizante das festas da Meca do jogo do deserto nem o glamour dos tempos passados que os Casinos à beira mar, estilo Mónaco, exibiam.” Tiffany Ap CNN. 26 Jun 2015 [dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]uando Deng Xiao Ping elaborou o princípio de “Um país, dois sistemas,” provavelmente uma das criações políticas mais brilhantes do séc. XX, estaria, com certeza, longe de imaginar que Macau conseguiria ir mais à frente e inventar um terceiro sistema: um sistema caracterizado pela ignorância, pela falta de visão e pela cupidez. Um sistema cujo único objectivo, contrariamente ao de progresso preconizado pelo velho estadista, tem sido o da destruição sistemática de uma cidade, de uma forma de vida ou, como Esopo escrevia, desenhado para matar a galinha dos ovos de ouro. Um sistema responsável pela dissolução de uma cidade histórica num pastiche cada vez mais incaracterístico e, de arrasto, por comprometer seriamente o seu próprio futuro como entidade cultural e pela ruína da qualidade de vida dos seus cidadãos, porque o dinheiro, como é de ver, não é sinonimo de qualidade. Antes Macau queixava-se que ninguém queria saber da terra e que a imprensa internacional não se interessava por nada que aqui se passasse. Mas o terceiro sistema conseguiu resolver o problema. A questão agora é que quando Macau é referenciado na imprensa internacional muitas das vezes não é pelas melhores razões: ou é pela falha no sistema de protecção às crianças, pela incrível incapacidade de regular a violência doméstica, pela incapacidade de gerir e conservar património cultural ou mesmo para ser ridicularizado pelas suas opções estratégicas de turismo como acontece neste artigo da CNN sob o título “Macau 2.0: Gambling mecca’s shiny, crazy, new attractions”e do qual extraí o texto de abertura. Um artigo que termina de forma algo irónica com uma citação do Secretário Alexis Tam que terá dito: “Vamos transformar Macau numa cidade feliz.” Caro secretário, custa-me dizer isto porque estava quase convencido que finalmente tínhamos um governante capaz de arrumar a casa, mas a única felicidade que essa declaração me provoca é uma vontade enorme de rir. Mas um rir triste, um rir de quem não quer chorar pois Macau era uma cidade feliz antes do terceiro sistema ter sido implementado. Macau tinha espírito, as pessoas gostavam de cá viver, de cá voltar e existia sempre na ideia do mundo a imagem de uma cidade sem igual, meio mediterrânica, meio chinesa. Agora é um estaleiro permanente sem um qualquer sentido que se vislumbre. A cidade feliz que agora se anuncia não é uma cidade, é um parque de diversões, caro secretário. [quote_box_left]”A vaca sagrada. Ou o governo faz ou ninguém faz. Em qualquer outro país, especialmente naqueles mais virados para o turismo, organizações privadas podem utilizar o espaço público (mediante regras, naturalmente) para organizar eventos e intervenções como, por exemplo ainda agora o escorrega de água em Vila Nova de Gaia, concertos.. o que for. Em Macau não. Em Macau não vale a pena ter ideias. Em Macau não vale a pena propor. Em Macau é governo, governo, governo e nada mais do que governo. Cansa.”[/quote_box_left] Conforme é enunciado no artigo da CNN não há qualquer interesse específico em visitar Macau nos dias que corre. Hotéis faiscantes, Torres Eiffeis de pacotilha e quejandos há (ou pode haver) em qualquer lado. O que não há é uma terra como Macau já foi. Macau vai perdendo a sua autenticidade a um ritmo diário. Ao ritmo de mais uma construção sem sentido, ao ritmo do abandono da cidade pelos próprios locais pois é cada vez mais frequente ouvir os naturais da terra, chineses ou macaenses, ou outros, dizerem que já não aguentam mais, que mais vale irem passar o resto dos seus dias para Phuket, regressarem a Portugal ou irem para qualquer outro lado. E isso não faz uma cidade feliz. Isso não faz sequer uma cidade. E se não se pretender debandar para muito longe, Zhuhai é cada vez mais uma opção. Uma cidade bem planeada, com obras de vulto assinadas por arquitectos de renome internacional e que aos poucos vai envergonhando a outrora orgulhosa cidade de Macau. Senão analisemos sucintamente a “cidade feliz” em meia dúzia de áreas vitais: Património Cultural e afins Como dizia o arquitecto Vizeu Pinheiro há dias, “qualquer dia só restam as igrejas” ou parafraseando o também arquitecto André Ritchie vivemos de fachada. O largo do Leal Senado parece uma feira cheia de reclamos, em qualquer lugar do mundo (até na China) um lugar classificado não se compadece com isso. Que faz Macau? Empurra com a barriga. Depois entramos no património. Que há lá dentro? Nada. A Casa do Mandarim ou a mansão Lou Lim Ioc, por exemplo, são apenas conchas vazias. Todavia, se tivermos a ousadia de propor filmar lá dentro ou organizar um evento não nos autorizam a tocar em nenhuma das relíquias (leia-se flores de plástico e prateleiras de alumínio). Em Portugal, que neste caso podia muito bem servir de exemplo, no auge do movimento rave, as maiores, com milhares de pessoas a dançarem, foram organizadas dentro de castelos (património mundial) como o Castelo de Santa Maria da Feira ou o de Montemor-o-Velho por entidades privadas. Em Macau, perdoem-me a expressão, nem um peido se pode dar junto do património. As Casas do Lilau são outro exemplo de inépcia. É só fachada. Mesmo. Saúde É preciso dizer alguma coisa sobre isto? Trânsito Quando é que há tomates, repito, tomates para se fechar a Almeida Ribeiro ao trânsito, a Rua da Felicidade ou a rua do Campo? Macau é assim tão grande que não se possa andar a pé? Alguém já reparou como a presença massiva dos carros e seus ares condicionados contribuem, em muito, para o aumento de temperatura da cidade, já para não falar da poluição? Porque não se criam circuitos pedonais? E se a preocupação é mesmo a saúde a julgar pela draconiana lei do fumo, porque ninguém se preocupa em tirar carros da rua?! Porque é que os ciclomotores de 50cc (altamente poluentes) ainda são permitidos?! Porque não se abrem as ruas à bicicletas? Porque não existem autocarros amigos do ambiente? Porquê, porquê?… Diversificação económica Desenhada para os mesmos fazerem mais do mesmo. Indústrias culturais Gadgets, lembranças e sucedâneos e nenhuma visão politica sobre o assunto. Concursos de filmes disparatados lançados pelo IC e pouco mais. Arquitectura Para além das obras públicas, Macau podia preocupar-se com a arquitectura dos prédios de habitação que vão surgindo. Mas não, apenas saem caixotes atrás de caixotes ao nível do pior que se faz na China. Já alguém se deu ao trabalho de olhar para as novas urbanizações em Zhuhai? Não deixam de ser prédios com muitos andares mas nas zonas nobres, como Gongbei, não são propriamente caixotes… Ordenamento urbano Tapumes de zinco ferrugentos e mal amanhados, autocarros amontoados em zonas nobres (quando podia, por exemplo ter sido planeado um espaço na Ilha da Montanha). Obras por todo o lado… Já alguém reparou como se delimitam as zonas de obras em HK? Porque é que Macau continua a ser terceiro mundista até nisto? Porque não se aproveitam os painéis para propor aos artistas da cidade que os decorem? Porque não se arranja uma solução para os pinos de trânsito na Av. da Amizade? Porque é que é tudo sempre uma grande salganhada? Dá algum prazer andar pela cidade?… Fumo e drogas leves Faz algum sentido o finca-pé do governo? Faz algum sentido chamar a Macau a cidade do lazer e uma pessoa ser multada à chegada ao aeroporto (por causa da pala)? Faz algum sentido vir a uma terra para descontrair e não poder fumar numa discoteca ou num bar? Falam do Japão?… Alguém tem a lata de falar no Japão quando por lá quase todos os restaurantes têm zonas de fumo, quando se pode fumar nos bares e discotecas, quando todas as estações de comboios e outros locais públicos têm salas de fumo? Casinos onde se joga e não se pode fumar sem ter de se parar de jogar? Mas isto cabe na cabeça de alguém? Não cabe porque não pode caber. É mais um tiro no pé a grande especialidade do governo de Macau. Fala-se até que vão aumentar os impostos (outra vez) sobre o tabaco. Para quê?! Acham mesmo que as pessoas vão deixar de fumar? Ou vão começar a contrabandear tabaco e a comprá-lo em Zhuhai? Se se preocupam tanto com a saúde, sabendo como o tabaco é feito na China, isso não preocupa? Aumentar taxas é sempre a solução mais fácil, é sempre a solução utilizada quando não se sabe o que fazer. Em relação às drogas leves, quando o mundo inteiro despenaliza Macau agrava as sentenças? Nem no mundo das leis segue o seu legado? Que diabo… Espaço Público A vaca sagrada. Ou o governo faz ou ninguém faz. Em qualquer outro país, especialmente naqueles mais virados para o turismo, organizações privadas podem utilizar o espaço público (mediante regras, naturalmente) para organizar eventos e intervenções como, por exemplo ainda agora o escorrega de água em Vila Nova de Gaia, concertos.. o que for. Em Macau não. Em Macau não vale a pena ter ideias. Em Macau não vale a pena propor. Em Macau é governo, governo, governo e nada mais do que governo. Cansa. Organização Administrativa Toda a gente sabe que um dos problemas graves de funcionamento do governo é a rivalidade entre departamentos. Falta de comunicação, bloqueios, “o meu departamento é melhor que o teu” o que piora quando se tratam de departamentos de secretários deferentes. Pergunta: de que está o governo às espera para construir um espaço onde consiga albergar o governo todo? Porque diabo ainda temos serviços aqui e servicinhos ali? Não seria melhor? Não facilitaria a comunicação? Não aproximaria os sectores? Não libertaria imóveis, que poderiam ser úteis para outras coisas? Não contribuiria para aliviar a pressão no imobiliário? Com todas estas tromboses, como é possível Macau imaginar sequer poder atrair turistas que não os campónios da China? Porque os turistas de elite (o jargão do momento) nem da China nem de lado nenhuma para aqui vêm. Alguém com o mínimo de gosto quererá vir passar o seu precioso tempo de férias a um lugar que não é nem carne nem peixe e em permanente estado de sítio? Não será melhor ir para Singapura, por exemplo? O terceiro sistema, este sistema macaíno da imbecilidade por mais que batam no peito e façam, juras de amor à pátria, em tudo contraria o velho Deng ao mandar para fora da China os visitantes que aqui poderiam deixar as suas divisas e mesmo ao dinamitar a política de hoje do governo Chinês que pretende Macau como a plataforma de contacto para os países de língua portuguesa. Ao matarem o espírito da cidade também isso matam. Com todo o dinheiro que Macau fez nestes últimos anos tinha a obrigação de ter sido capaz de criar uma cidade sem paralelo, uma verdadeira cidade feliz. Mas não. Agora os poderes entreolham-se e pensam como sair do buraco que cavaram. Não ajudam nem a pátria nem os que cá estão. Fiquei cansado. Não me apetece dizer mais nada. São muitas as perguntas sem resposta. A estupidez cansa. MÚSICA DA SEMANA “Requiem for a Dream” de Clint Mansell interpretado pelo Kronos Quartet. Tenha uma boa semana caro leitor. Se for possível.
Fernando Eloy VozesUma paz nada celestial “Pela primeira vez a China acreditou que podia mudar o curso do Yangtzé. Mudar o velho rio que se agarra a uma lua velha. Mudar regras arcaicas que não são melhor nem pior mas exactamente o mesmo. A mesma crueldade, a mesma dureza inquestionável contra as suas gentes e a raça humana.” em “The Night That Hides Things From Us” um conto de Julie O’Yang* [dropcap type=”circle”]T[/dropcap]odos fazemos asneiras, umas mais graves outras menos. Mas nem todos nós somos capazes de pedir desculpa. Por orgulho ou por medo. Ou ambos. Medo de parecermos fracos, medo de darmos munições ao outro lado, medo de mancharmos a reputação, medo do embaraço, medo de sermos mal interpretados… Medo, medo, medo!… Mas quando passamos do nível pessoal para o dos Estados esses medos ganham ainda mais peso. O que, apesar de normal, ou corriqueiro, deve ser entendido como um supremo ridículo. O dia 4 de Junho de 1989 é uma das piores recordações destes meus quase 50 anos. Muita coisa me impressionou na vida, várias mortes chorei, diversos acontecimentos me chocaram mas o que se passou em Tiananmen naquele fatídico dia de Verão está lá bem em cima no rol dos horrores. Talvez porque fosse novo, talvez porque fosse jornalista e portanto muito mais próximo da notícia, talvez… Certamente porque foi um evento infernal para o qual nenhuma palavra parecia servir para descrever o terror que nos assaltava. Lembro-me de estarmos na redacção transidos com as imagens que nos chegavam no feed internacional. Aquela imagem do Jeff Weidener, agora icónica, do até hoje incógnito indivíduo que resolveu enfrentar os tanques com dois sacos de compras na mão – a irredutibilidade chinesa perante a magnitude avassaladora do inevitável, a coragem quase irracional de um simples indivíduo que na sua alma sonhava deter sozinho um dos piores episódios da história humana, manteve-nos num suspense brutal, com uma vontade enorme de estar lá para o ajudar. A “Cortina de Ferro” tinha praticamente acabado de cair na altura e, como sempre que algo dessa magnitude acontece, viviam-se momentos de optimismo no mundo. Por isso também nós, naquela redacção, partilhávamos da ingenuidade do homem da camisa branca, acreditando piamente que Praga não iria ser revisitada naquele dia. Mas foi… O impossível tornou-se possível à frente dos nossos olhos. O horror instalou-se. Até hoje. Ler histórias que incluam os acontecimentos de Tiananmen ainda agora me causam dor. A dor do “podia ter sido diferente”, a dor de amores despedaçados, de jovens com as suas vidas terminadas daquela forma abrupta e brutal. A dor das rajadas de metralhadora sobre putos que sonhavam. “Vivia-se um clima de festa”, recordou mais tarde Cui Jian, “Quando subi ao palco senti que tinha chegado a uma grande festa”, disse. Na redacção havia quem chorasse, o ambiente geral era de incredulidade e revolta e esses sentimentos estão tão presentes hoje como há 26 anos atrás. Não consigo evitar um arrepio ao revisitá-los na memória. Foi mau demais e não está resolvido. Ainda a semana passada o Hoje Macau noticiava que o último preso do conflito, Miao Deshu, só talvez seja libertado no próximo ano. Foi preso com 25 anos, alegadamente por ter arremessado um contentor contra um tanque. David contra Golias. Sabemos que a China de hoje não é a China de 1989. Sabemos também que a China de hoje pretende afirmar-se no plano internacional como um país moderno, justo e equilibrado. De um ponto de vista clássico, pedir desculpa pelo sucedido surgirá aos olhos do poder chinês como uma fraqueza insuportável, como o entreabrir de uma porta que tanto temem, ou seja, a do regresso dos protestos de há 26 anos especialmente agora com o que vai observando em Hong Kong e com o que sabe passar-se em casa. Mas o método da avestruz não resolve nada, a desculpa, essa sim, liberta. A capacidade de pedir desculpa é fundamental se pretendermos manter relações saudáveis. Neste caso com o seu próprio povo e com o resto do mundo. Numa relação entre um estado e a sua população, tal como ao nível pessoal, a noção de que o outro lado não está disposto a assumir as suas próprias culpas gera apenas desconfianças e más-vontades. Podemos sempre dizer que o governo chinês quis manter a ordem pública, mas a desproporcionalidade dos meios empregues e a forma como o foram matando milhares de jovens que apenas ousaram sonhar com um mundo novo, como um dia Mao Zedong ou Sun Yat Sen também o fizeram, foi tão díspar que esse argumento não pega. Nem aqui… nem na China. É impossível construir uma relação sã de amizade com esqueletos no armário – caso contrário, porque insiste tanto a China nas desculpas (justificadas) do Japão pelos crimes da Segunda Guerra Mundial? Apenas para enfraquecer o Estado nipónico ridicularizando-o ou para cimentar um clima de paz e boas relações? Eu prefiro acreditar na segunda possibilidade. Por isso, a ideia que fica desta crispação do Governo chinês em relação a Tiananmen é a de que espera que o milagre do tempo faça desaparecer a memória. Mas isso seria uma ingenuidade e um Estado não se compadece com ingenuidades porque, mais tarde ou mais cedo, os esqueletos saltam do armário e, quando assim é, e a China já o viu por demasiadas vezes, eles vêm vingativos. Mais vale desmantelá-los e enterrá-los enquanto é tempo. Tínhamos todos a ganhar, na China e no resto do mundo porque uma das melhores formas de liderar é pelo exemplo e se o governo chinês conseguir de uma vez por todas encarar de frente a triste história de Tiananmen, o exemplo que dará ao país e ao mundo terá, certamente, um eco positivo muito superior ao silêncio ensurdecedor do momento que apenas serve para dar vida a esses tenebrosos esqueletos que se vão acotovelando no armário com os da Revolução Cultural. A China de hoje pede aos seus cidadãos que sonhem, mas nenhum sonho será suficientemente grandioso enquanto este pesadelo não estiver resolvido e o mundo precisa de uma China que sonhe e seja capaz de iluminar um futuro melhor para todos.
Fernando Eloy VozesMudança de paradigma [dropcap type=”2″]É[/dropcap]vulgo dizer-se que uma imagem vale por mil palavras, mas é vulgar porque assim é como julgo ser o caso desta. Por isso mesmo, hoje poupo palavras e coloco o foco neste instantâneo captado no passado domingo de manhã a caminho de Zhuhai. Mas como qualquer pessoa que não passe a vida enclausurado no ar condicionado dos gabinetes ou dos automóveis vegetando em realidades alternativas, podia ter sido em outro dia qualquer… Para quem há pouco tempo cá está ela pouco dirá, mas para quem cá nasceu ou pelo menos aqui vive há meia dúzia de anos, sabe perfeitamente que uma foto destas há não muito tempo atrás teria de ser captada no sentido Zhuhai – Macau. Mas o paradigma mudou: a realidade de hoje é que, apesar dos sustos constantes com a segurança alimentar e produtos de consumo na China, muitos cidadãos de Macau não vêem outra alternativa senão atravessarem diariamente a fronteira com os cestos vazios. São cada vez mais e cada vez mais apressados, mesmo quando a Pataca já não vale mais do que o Reiminbi como em dias que já lá vão. A propósito, lembro-me de Shakespeare quando um dia escreveu que “Algo está podre no reino da Dinamarca” ou então estou completamente enganado, esta imagem é uma ficção e a realidade é que vivemos numa cidade virada para os seus habitantes e com eles preocupada. Se assim for, lamento a interpretação deturpada. Música da Semana Naturalmente, “Os Vampiros” de Zeca Afonso. Tenha uma boa semana caro leitor. (…) “São os mordomos do universo todo Senhores à força mandadores sem lei Enchem as tulhas bebem vinho novo Dançam a ronda no pinhal do rei Eles comem tudo eles comem tudo Eles comem tudo e não deixam nada” (…)