Arnaldo Gonçalves VozesAté mais Adoramos a perfeição, porque não a podemos ter; repugna-la-íamos se a tivéssemos. O perfeito é o desumano porque o humano é imperfeito. Fernando Pessoa [dropcap style=’circle’]G[/dropcap]uardo para o mês de Janeiro o encerrar de um ciclo. O de anotador do quotidiano nas páginas do ‘Hoje Macau’. Um quotidiano por vezes frustrante, penoso, castrador de sonhos e utopias, mas também anunciador do dia novo e da esperança. Foram sete anos de escrita, muitas vezes intermitente, ao sabor da actualidade, a internacional que se me agiganta por mister académico e a nacional, do país distante, que deixei pela segunda vez já vão treze anos. Escrevi para mim, esperando que com as palavras que deixei espalhadas pela folha de Microsoft Word tocasse o dia-a-dia dos que tiveram a paciência de as ler, neste pequeno território do Mar do Sul da China. A escrita só faz sentido se convidar à reflexão, à opinião, à tomada de partido. A escrita que é conformista nada acrescenta, pactua, ajoelha, é redundante. O mister do intelectual – categoria em que porventura me visiono – é de incomodar e alertar. Não com o sentido de fazer processos de intenção ou de disparar recriminações, mas pôr os pontos nos iis. Por isso o intelectual convive mal com o poder. Seja ele qual for. Das duas uma ou ele é um escriba do poder, um porta-voz, um altifalante ou é uma voz crítica. Ser crítico não significa dizer mal, por sistema, apelando aos instintos maledicentes de quem nos lê ou ouve. Significa ver a floresta e não apenas as árvores, não tergiversar em questões de princípio ou de valores cardinais. Ter opinião, fundamentá-la, mas evitar ser um Cavalo de Tróia das oposições ou dos interesses corporativos organizados e instalados. Porque eles têm um objectivo interesseiro: serem um dia poder ou pelo menos condicionarem o poder instalado. Ao longo deste trajecto, perguntei-me por vezes se faz sentido ser cronista numa língua que apesar de oficial é estatisticamente minoritária. Li por aí que apenas 2.4% da população de Macau lê ou fala o português. É manifestamente pouco, o que me suscita a questão de qual é exactamente o auditório dos jornais e órgãos de comunicação social, em língua portuguesa. Confesso que não sei responder. Tive sempre a ideia, porventura romântica, que quando temos essa predisposição para a escrita faz sempre sentido porque acrescentamos algo à vida das pessoas, ao seu conhecimento, à percepção da realidade. É como a profissão de professor. Passam-nos pelas mãos dezenas de jovens com expectativas diferentes do que fazer da vida, com um conhecimento reduzido do que se passa no mundo e por vezes na comunidade que os circunda. Não é que seja falta de curiosidade mas uma maneira diferente de estruturarem o seu pensamento, de definirem as suas prioridades e projectos de vida. As novas gerações são muito diferentes, têm um imediatismo de objectivos, um sentido de competitividade que outras anteriores não tiveram, ou priorizaram. Costumo dizer que na nossa geração (nascida na década de 1950) sonhámos, imaginámos poder construir um mundo melhor e mais perfeito. Criámos uma contra-cultura na música, na escrita, na arte, no vestir, no sistema de crenças. Fomos, à nossa maneira, revolucionários e ateus quanto às verdades absolutas ouque nos quiseram transmitir. As novas gerações são diferentes. Têm de se fazer a um mundo onde rareiam as oportunidades, onde a competição nas universidades e nas empresas é feroz, onde já não existem empregos para toda a vida, onde a mobilidade é a regra. Hoje está-se aqui; amanhã acolá. Nada, ou pouco, prende ao cais de partida ou de arribação. Talvez apenas a saudade dos bons momentos passados com os amigos. Há que se fazer à vida sem olhar para trás. Pergunto-me também o que será Macau, dentro de décadas, à medida que nos afastamos da data da transição para a China. É difícil deixar de sentir alguma nostalgia por essa última década florescente do século que findou. Porque se imaginaram cenários de modernização e autonomia que não se concretizaram. Um pouco pelas circunstâncias, outro tanto porque a comunidade que é maioritária e que dirige Macau nunca o sentiu como fundamental. A ligação à Mãe-China foi sempre preponderante, definidora de uma maneira de estar e de uma convergência de destinos de que não imagino variação. E essa ancoragem é sempre lembrada, quando surgem dificuldades e hesitações. Confesso-me, a esse propósito, expectante e receoso. Expectante de que Macau consiga, por alguma forma, prolongar a situação de excepção que tem usufruído. Não falo na economia apenas. Falo na maneira de viver, nas condições de efectiva e valorizada liberdade. No pensamento, na escrita e na imprensa, na participação e organização cívica, na escolha de projectos de vida, na defesa do trabalho e de condições dignas de vida, na crítica aberta e não censurada. Seria lamentável que isso fosse perdido por mero cálculo e tacticismo imaginando-se que com o silenciamento das opiniões próprias se poderá servir “melhor” um qualquer senhor distante ou partido iluminado. O que é mais difícil é fazer cumprir o espaço de liberdade que se imaginou e que se alcançou com grande esforço e empenho. Existe sempre a sedução do poder querer domar a liberdade para não ser posto em causa por ela. Os homens são, nesse particular, seres imperfeitos, limitados. A magnanimidade não existe na sua esfera. Pelo menos nunca a encontrei. Guardo para o fim um agradecimento ao Carlos Morais José, proprietário do “Hoje Macau”, pelo convite que me dirigiu, há sete anos, para ser cronista no seu jornal e aos directores, editores e jornalistas com quem tive o prazer de conviver e trabalhar. Ser jornalista é das profissões mais honrosas que conheço e uma das mais difíceis. Está-se normalmente do outro lado dos interesses instalados. E isso gera desconfiança, senão animosidade. É tempo de interregno, de parar. São praticamente duas décadas de crónicas em jornais de Lisboa e de Macau, olhares que deixei pontuados aqui e acolá. Fecho com Fernando Pessoa. “Para ser grande, sê inteiro. Nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda brilha. Porque alta vive”. Até mais.
Arnaldo Gonçalves VozesFactos que marcaram 2015 [dropcap style=’circle’]1[/dropcap]. XI E O COMBATE ANTI-CORRUPÇÃO O ano de 2015 assinala o reforço da luta anti-corrupção, cruzando os escalões cimeiros do Partido Comunista Chinês, a estrutura da administração pública e os CEO das empresas globais chinesas. Os observadores questionam-se se esta é uma estratégia de eliminação faseada de inimigos internos. Ou se é uma repetição das campanhas de rectificação da década de 1950 para ‘limpar’ o partido e o Estado dos colectores de subornos, do promotores de empresas familiares e dos agentes de transferência de fortunas e capitais para paraísos fiscais e países europeus. En passant, Xi viu crescer o número de inimigos internos, por ora recolhidos e que escolherão o tempo apropriado para o ajuste de contas. A corrupção é crónica na China. Foi grande no regime imperial; é gigantesca no Estado socialista. Enquanto o sistema judicial não for verdadeiramente independente ela crescerá na exponencial. As campanhas políticas são tigres de papel. 2. CHARLIE HEBDO E A CIDADE DAS LUZES Paris tornou-se simbolicamente o alvo preferido dos terroristas islamistas. Num ano tiveram lugar dois atentados, de enorme violência, visando colher o maior número de vítimas, e estremecer as democracias europeias. Nova Iorque foi em 2001 o símbolo da senha niilista contra a civilização ocidental e a cultura de tolerância, inclusão, economia de mercado e consumo que a distinguem. Paris é, catorze anos depois, um novo alvo. Pelo que representa em termos de património do Renascimento e do Iluminismo, do laicismo, da arte, da música e da cultura em geral. As vítimas são danos colaterais. Os kamikazes, tochas humanas que se imolam à glória de um Deus sanguinário e uma vida para além da morte prenha de prazeres profanos. As razões religiosas (um mundo islamizado) um pretexto para uma operação calculada de cerco e ocupação militar. A Europa está em guerra. 3. UNIVERSIDADE DE SÃO JOSÉ Depois de ter sido lançado, nos anos finais do período de transição, como um desígnio estratégico educativo de Portugal, o Instituto Inter-Universitário de Macau transformou-se, em 2009, na Universidade de São José. Ruben Cabral redefiniu-o como um projecto de âmbito regional. A instituição perdeu velocidade, em razão de polémicas constantes que levaram à demissão do reitor. O novo reitor, Padre Peter Stilwell, inverteu a estratégia de expansão do projecto. Eliminou cursos, dispensou docentes, suprimiu unidades de investigação e elegeu um só objectivo: a edificação de um grande campus. Sem alunos do continente, dada a inexistência de relações oficial entre Pequim e a Santa Sé, a USJ tornou-se uma pequena universidade da RAEM , sem amplitude e com reduzido número de alunos oriundos da Região Ásia-Pacífico. Suprimida a cooperação com a Universidade Católica Portuguesa, reforçou-se a dependência da diocese e dos seus interesses. A USJ é um projecto universitário a termo certo. 4. PS E ANTÓNIO COSTA Depois de uma derrota significativa nas urnas, mas tirando partido da ausência de maioria absoluta, António Costa manobrou com tactismo. Negociou com comunistas e a esquerda radical um acordo de incidência parlamentar. A solução foi ratificada por Cavaco Silva, na ausência de alternativas. Atarantado com negociações constantes com os seus parceiros, Costa tem recorrido ao expediente de fazer aprovar no Parlamento as propostas mais radicais dos seus aliados marxistas. Apressou-se a empurrar para o fim do ano (2016) as medidas impostas pelo Tratado Orçamental. O ano de 2016 será farto em medidas populistas dirigidas ao crescimento dos salários e a estimular o consumo público e privado. Navegando à vista, Costa espreita o apoio tácito do novo Presidente para este conventículo oportunista. Os adversários não serão o PSD e o PP. Serão a Procuradora-Geral e o Presidente do Tribunal de Contas. Nos bastidores a nebulosa das empresas do PS e dos amigos espreitam o bolo dos contratos públicos. 5. TAM VAI MAN Uma querela particular sobre o acesso a campas, num cemitério público, tornou-se o processo judicial dos dois últimos anos. Arrastando no caudal o presidente e outros três responsáveis de uma unidade orgânica virada para acorrer às necessidades mais imediatas da população. Interpelada, nos tribunais, a imparcialidade e competência dos quadros visados, a magistratura judicial sufragaria, em primeira e segunda instância, a inocência dos mesmos e a insustentabilidade da acusação do Ministério Público. A Justiça fez-se. Evitou-se o sacrifício artificial de um dos melhores quadros bilingues que tive oportunidade de ter como aluno nos Programas de Estudo em Portugal, na década de 1990. Destaco aqui, como amigo, a sua coragem, determinação e amor à verdade ao longo do processo. Apenas lamento a exploração política que interesses bem identificados na Assembleia Legislativa (e fora dela) fizeram deste assunto. Quinze anos depois da transferência de administração de Macau há quem ainda não compreenda que nada se ganha com o denegrir da administração. 6. BARACK OBAMA Obama iniciou o seu mandato gerando enormes expectativas quanto à correcção dos erros da administração Bush, ao fim de intervenções militares no Iraque e no Afeganistão, ao encerramento de Guantanamo Bay e ao restabelecimento da credibilidade externa dos EUA. No plano interno, prometeu a recuperação económica, a criação de milhares de novos empregos, políticas sociais dirigidas aos mais pobres. Prestes a concluir o segundo mandato, o balanço é dividido. Se no plano interno, Obama conseguiu inverter a trajectória de declínio da economia, no plano externo o balanço é negativo. Quanto ao Iraque, coloca-se agora a necessidade de reforçar o contingente americano, no terreno. Guantanamo Bay continua por encerrar. Foi assinado um acordo com o Irão que não garante a anulação do programa de enriquecimento de urânio mas apenas o seu adiamento. Já noutro palco, permitiu a subida da competição militar chinesa no Pacífico Ocidental e o retorno da Rússia ao estatuto de grande potência, perdido em 1989. Ficará na história como o Presidente da retórica, da comunicabilidade mas de diminuta eficácia. 7. RAIMUNDO DO ROSÁRIO Aposta pessoal de Chui Sai On para uma pasta essencial do executivo de Macau, Raimundo do Rosário tem deixado notas positivas quando ao estilo, às prioridades e à forma de agarrar os problemas. No primeiro, uma forma muito directa de identificar dificuldades, possíveis soluções e mostrar as condicionantes. Nas segundas, um enfoque nas questões da habitabilidade, na carência de novos espaços urbanos que levam tempo a conquistar, de acordo com um planeamento lógico. Na terceira, a ideia clara que os problemas de Macau nas áreas de habitação, do trânsito, dos equipamentos sociais são técnicos. Devem ser geridos de acordo com critérios técnicos. É desejável a consulta à população. São louváveis os milhares de opiniões recolhidas nestas. Mas no domínio das políticas públicas não há soluções milagreiras. Há soluções executáveis. Macau tem um problema dramático, de fragilidade da sua estrutura económica. A curva de declínio das receitas do jogo acentua a incerteza do seu futuro. Têm de se dar passos certos; não mergulhar em aventureirismos irresponsáveis.
Arnaldo Gonçalves VozesUma derrota, uma vitória [dropcap style=’circle’]1.[/dropcap] A derrota nas recentes eleições legislativas na Venezuela do governo chavista de Nicolàs Maduro e a conquista de uma maioria absoluta no Parlamento pelas forças de oposição ao regime, organizadas à volta do Movimento de Unidade Democrática(MUD) revela que não é inevitável uma alternância bipolar entre o esquerdismo guevarista e o conservadorismo musculado. Uma terceira via, liberal e moderna, faz o seu caminho com Júlio Borges e o MUD, Juan Manuel Santos na Colômbia, Maurício Macri na Argentina e Horácio Cortes no Paraguai. A iniciativa de ‘impeachement’ da presidente Dilma Rousseff do Brasil, já aceite pela Câmara de Deputados, conduzirá à criação de uma Comissão que avaliará as acusações que impendem sobre Dilma. Profundamente desacreditada perante o seu povo pelo desgoverno dos últimos anos, a antiga vice-presidente de Lula da Silva poderá, com alguma probabilidade, ver reduzido o tempo do seu segundo mandato. As forças da oposição creditam ter sido obtido por manipulação eleitoral, golpismo e alargada corrupção federal e a nível dos estados. A ser assim, o Brasil poderá ser o quarto país sul-americano a sair do bloco dos regimes de esquerda que aliam má-governação económica, corrupção generalizada, delapidação de recursos naturais e punição da classe média. O esquerdismo latino-americano agrupa para além da Venezuela e do Brasil o regime castrista de Cuba, o nativismo de Evo Morales na Bolívia, e os regimes autoritários de Rafael Correa no Equador e Daniel Ortega na Nicarágua. 2. Na Europa, a vitória de Marina Le Pen nas eleições regionais francesas do passado fim-de-semana marcou o fecho de um ciclo de exclusão da direita nacionalista francesa do círculo de poder. Denota a identificação do eleitorado com as propostas da líder da Frente Nacional, quando se aproximam eleições presidenciais. Eleições que Marina Le Pen é uma das favoritas com o presidente da UMP, Nicolas Sarkozy. Rapidamente envilecida pelos órgãos de informação de esquerda e pelas redes sociais, a líder da Frente Nacional expressa o sentir de uma maioria crescente de eleitores que estão profundamente descontentes com o incompetente governo de François Hollande, na gestão da economia, na participação na União Europeia, e na defesa da segurança colectiva perante a ameaça permanente do terrorismo islamita. Em menos de um ano, os franceses foram flagelados por vários atentados e deram-se conta que a ameaça (consumada) à sua segurança não é externa mas interna. Ela advém de células de jihadistas simpatizantes do chamado Estado Islâmico que têm estado dissimuladas nas comunidades muçulmanas de França. Não se trata, ao invés de uma opinião mil vezes multiplicada, de comunidades marginalizadas e socialmente desfavorecidas mas de elementos da classe média inteiramente integrados nas suas comunidades, dispondo de informação abundante e circulando abertamente, pelos favores de um sistema tolerante, entre Paris e os oásis terroristas no Médio Oriente. Núcleos reforçados por kamikazes que aportaram a França, no meio dos movimentos migratórios que passam pela Grécia e pelos países do Mediterrâneo, aproveitando uma política imprudente de ‘fronteiras abertas’. A vitória de Le Pen não é, contudo, um caso ‘clínico’ que agitou as boas consciências dos eleitores franceses mas que passará. É o regresso em força de um nacionalismo europeu, populista, que sabe ler muito bem as premências mais graves dos cidadãos e projectá-las no discurso político. Nacionalismo que ataca a erosão de identidade nacional e dos valores tradicionais que têm origem na língua, nos costumes, da ética social enraizada, na prática religiosa em favor de culturas alienígenas que optam pela não assimilação e resistem à lógica de integração e acomodação. O que coloca o velho problema dos limites da tolerância. O Estado de direito democrático não pode, sob pena de pôr em causa a sua própria sobrevivência, contemporizar com ataques sistemáticos à coesão social dos grupos, comunidades étnicas e concepções de vida e sociedade, que formam as comunidades políticas, na modernidade. 3. Trata-se se puxarmos a discussão a um nível filosófico do debate do paradoxo da tolerância tratada pelo filósofo austríaco Karl Popper em ‘A Sociedade Aberta e os seus Inimigos’. A tolerância ilimitada conduz ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada aos que não são tolerantes, se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante contra os assaltos daqueles que são intolerantes então os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles. Isso significa, sempre citando Popper, que não se deve impedir a expressão de filosofias intolerantes, desde que as possamos contrariar com argumentos racionais e tê-las sob vigilância da opinião pública, a sua supressão será pouco prudente. Mas devemos reivindicar, em nome da tolerância o direito de as suprimir se necessário com o uso da força. Pode bem suceder que não estejam abertas a argumentar connosco com base em argumentos racionais, mas denunciem todos os argumentos. Podem proibir os seus seguidores de ouvir o argumento racional, acusando-o de ser enganoso e ensiná-los a responder com os punhos e as armas. Devemos reivindicar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar os intolerantes. Devemos afirmar que qualquer movimento que pregue a intolerância coloca-se à margem da lei e considerar crime o incitamento à intolerância e a perseguição, da mesma maneira que o fazemos quanto ao homicídio, sequestro e a reabilitação do tráfico de escravos. O endeusamento pela esquerda do valor cardinal da igualdade tem favorecido expressões de extremismo niilista em nome do princípio da diferença, ao procurar fazer que se tenha o terrorismo como um facto socialmente aceitável. Que não é, já que visa a destruição da sociedade que toma como alvo. O terrorismo tem prosperado em França por uma lógica de tolerância invertida. É por essa razão que os franceses dão agora a confiança política a Marina Le Pen, já que perceberam que ela poderá forçar a adopção de politicas clarificadores que outros acham desajustadas em nome de uma inclusão sem nexo.
Arnaldo Gonçalves VozesA Europa em estado de sítio [dropcap style=’circle’]1[/dropcap]. Uma semana transcorrida sobre os atentados de Paris que vitimaram uma centena e meia de pessoas, outra cidade europeia Bruxelas mantém o seu sistema de alerta de iminente atentado terrorista no nível 4, o mais elevado do seu sistema de segurança. O governo belga decretou no passado fim-de-semana o encerramento do metro, o fecho das escolas e das universidades. Também o Conselho Europeu reduziu a sua actividade, ao mínimo. Segundo relatos da imprensa no centro de Bruxelas tiveram lugar várias operações de intercepção conduzindo à detenção de 18 indivíduos. Foi encontrado um importante arsenal de explosivos e armas de guerra. Relatam os serviços de informações que vários dos homens que participaram nos comandos que perpetraram os atentados de Paris fugiram para a Bélgica e estão a ser procurados pela polícia. Entre eles conta-se Salah Abdeslam, o eventual cérebro das operações em Paris. O momento é de incredulidade. Como é que acontecem tantos ataques terroristas em tão curto espaço de tempo? Como é que não são detectados movimentos dos operacionais que estão identificados como indivíduos perigosos pelos serviços de inteligência europeus? Porque se está a instalar um sentimento de fatalidade perante este séquito de acontecimentos? Sendo fácil culpar outros, a responsabilidade reside nos europeus. Estes tempos de excepção colocam desafios relevantes, muitos deles novos. Desde logo a capacidade dos governos europeus concertarem uma estratégia conjunta e realista que ‘contenha’ esta ameaça à segurança colectiva. Depois a fiabilidade do sistema de Schengen, de livre circulação de pessoas e bens sem fronteiras internas, numa Europa em verdadeiro estado de sítio. Também a falta de colaboração dos serviços de informação europeus ainda presos a uma postura de protecção dos segredos de Estado a qualquer o preço. Finalmente, o problema de projecção do poder militar da UE, sobre o chamado Estado Islâmico do Levante. Comecemos pelo princípio. 2. Não é de hoje a ameaça à segurança europeia. O ataque ao jornal Charlie Hebdo, em 7 de Janeiro, que vitimou doze pessoas pôs a nu a fragilidade do sistema de segurança francês bem como a incapacidade de uma coordenação a nível europeu de meios de ‘inteligência’, controlo de fronteiras e capacidade de vigilância. Nove meses depois, pode-se dizer que estamos exactamente na mesma. Segundo o Ministro do Interior francês, Bernard Cazeneuve, em declarações à imprensa, apenas no dia 13 um serviço de informações identificou a presença de Abdelhamid Abaaoud na Grécia. Nenhuma informação relativa às movimentações deste operacional proveio de qualquer dos países europeus acrescentou Cazeneuve. O tom azedo do governante francês revela o diálogo de surdos que esta questão tem encontrado nas capitais europeias com cada país a olhar para o lado, acreditando que o problema não lhe diz respeito. O que diz muito quanto à falta da chamada repetida até à exaustão pelos tratados e nos discursos da elite europeia. De certa maneira torna-se claro aos olhos das pessoas mais atentas que os atentados foram tomados como um acto fortuito, episódico, que suscita um conjunto de respostas pontuais que ficaria mal não serem tomadas. Não correspondem a uma mudança de posição, nem de atitude. A França bem apresentou aos seus parceiros no Conselho Europeu uma série de propostas, como a operacionalização do PNR (Passage Name Record), um ficheiro de dados pessoais dos passageiros dos voos que entram no espaço Schengen, que possibilitaria integrar num mesmo ficheiro a identificação do passageiros e outros dados como o pagamento em espécie do bilhete de avião, o transporte de malas com grande peso nos trajectos curtos ou viagens de ida-e-volta para países assinalados como do terrorismo como a Síria, o Iraque e o Iémen. Não houve qualquer resposta. A braços com uma situação de emergência nacional (prolongada por três meses), a França chegará provavelmente à conclusão que deverá agir sozinha, com os seus próprios meios para prevenir novos atentados. O que é improvável já que a capacidade de improviso das redes terroristas é grande e não se compadece com visões nacionais. 3. Quer-se queira quer não o problema dos atentados terroristas está intimamente ligado ao afluxo, nos últimos meses, de 800 000 refugiados às fronteiras do Sul da Europa. A esquerda não gosta que se associem os dois factos mas eles estão absolutamente correlacionados. Vários ‘kamikazes’ do ISIS foram identificados entre milhares de pessoas que acorreram aos portos da Grécia ou às suas fronteiras, vindos da Turquia. O sistema de registo e identificação provisória dos fluxos de migrantes é um verdadeiro ‘passador’. Indivíduos que chegam sem passaporte ou documento de identificação, alegando que o perderam numa travessia ou fuga apressada compõem uma história e um que facilmente os legitima como indivíduos não perigosos. Seria mais acertado ser-se realista e reconhecer como o afirmou o Primeiro-Ministro francês, em entrevista a um canal francês, que ‘se a Europa não assumir as suas responsabilidades é todo o sistema de Schengen que estará em causa’. Vários países instituíram, de uma forma ou de outra, controles de identidade à entrada nos seus portos e aeroportos. Contam-se entre eles a França, a Alemanha, os Países-Baixos, a Áustria, a Hungria, a República Checa, a Eslovénia, a Eslováquia, a Suécia e a Bélgica. Outros os seguirão. Naturalmente deveria ir-se mais longe suspendendo-se a aplicação do artigo 67.o do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia que prescreve que “a União assegura a ausência de controlos de pessoas nas fronteiras internas e desenvolve uma política comum em matéria de asilo, de imigração e de controlo das fronteiras externas que se baseia na solidariedade entre Estados-Membros e que é equitativa em relação aos nacionais de países terceiros. Para efeitos do presente título, os apátridas são equiparados aos nacionais de países terceiros”. Criado em 2008 para responder a uma situação optimista de uma Europa o seu sentido injuntivo contraria as exigências actuais de uma Europa sitiada por um inimigo externo com importantes cúmplices internos. Daí que haja quem pondere propor a criação de uma formada pelo Benelux, a Áustria e a Alemanha. A chanceler alemã, Ângela Merkel, nunca desmentiu esta eventualidade. A sua mera possibilidade é portanto um aviso sério de que se os 28 estados-membros não alcançarem uma solução conjunta aplicável a todo o espaço da União, os países mais integrados da UE poderão encontrar uma solução de recurso. Resta saber o que farão neste caso a França, a Itália ou a Espanha, países que estão na primeira linha dos ataques dos terroristas islâmicos. 4. Será no mínimo irresponsável pensar que a ameaça terrorista se esfuma no ar pelo arrependimento dos jihadistas do ISIS pelas vítimas sacrificadas ou perante o horror da opinião pública, como acreditar que os avisos de Barack Obama possam ter algum efeito útil. É bom que os europeus se convençam que com esta administração em Washington estão entregues ao seu próprio destino. Só uma intervenção militar terrestre em conjugação com raids aéreos pode desalojar os terroristas dos seus enclaves em territórios sírio e iraquiano. Uma intervenção em coligação que estivesse disposta em fazer quando se encontrar no terreno. É tempo de se ter uma abordagem realista e reconhecer que Bashar al-Assad não é o adversário principal do Ocidente, neste momento. Quer a Rússia quer o Irão podem desempenhar, igualmente, um papel proactivo na pacificação daquela zona do Médio Oriente. Porque não incorporar o Irão e a Rússia numa coligação que derrote militarmente o ISIS e ajude a criar um poder administrativo na zona oriental da Síria e na zona ocidental do Iraque no período imediatamente a seguir? A verdadeira profusão de grupos jihadistas, pró e anti-Bashar, revela que a estratégia de Obama de apoiar uns e combater outros deixou de fazer qualquer sentido dadas as ligações desses gangues a países árabes. Fazer a paz com Damasco e manter uma atitude utilitarista com Bagdad e Teerão pode constituir a única saída realista para a reposição da ordem no território controlado pelo ISIS.
Arnaldo Gonçalves VozesUm encontro inesperado [dropcap style=’circle’]L[/dropcap]yndon B. Johnson disse que a paz é uma jornada de um milhar de milhas e deve ser empreendida um passo de cada vez. Recordei-me, destas palavras, a propósito do encontro Xi Jinping-Ma Ying-Jeou no passado sábado, em Singapura. Tudo indicaria que não iria resultar mas foi dado um passo gigantesco. Foi o primeiro encontro entre os líderes da China Continental e de Taiwan em 66 anos. Desde que o líder do Kuomintang se retirou para Taiwan depois de ter sido derrotado na guerra civil chinesa. Na verdade, não surgiu do acaso. O Presidente de Taiwan já vinha insistindo na urgência do encontro entre as duas partes, desde a reunião da APEC no Paraguai, em 2013. Lien Chan, presidente honorário do Kuomintang e Eric Chu, o candidato do partido às eleições presidenciais de 16 de Janeiro do próximo ano, insistiram na sua oportunidade, em viagens que fizeram a Pequim em 2014 e em Maio de 2015. Qual o sentido do encontro quando Ma Ying-Jeou deixa a presidência no início do próximo ano? Duas leituras são possíveis. A mais imediata, é que existem receios que a provável vitória da candidata do Partido Democrático e Progressista, Tsai Ing-Wen, nas eleições presidenciais do próximo ano, lance Taiwan na rota de um maior distanciamento ou fricção com Pequim. É conhecida a reacção que a celebração do acordo de comércio e serviços entre Pequim e Taipé despertou entre sectores do eleitorado mais anti-Pequim. Ao materializar-se o encontro, seria de esperar uma inversão do sentido de voto dando novas hipóteses ao candidato Eric Chu. A segunda leitura é que tendo sido o Kuomintang a dirigir nestas seis décadas a resistência ao governo comunista de Pequim lhe caberia dar o passo mais significativo para que o status quo seja por alguma forma materializado, num acordo mais consistente e duradouro. Ma Ying-Jeou terá querido assim simbolizar que Taiwan não rejeita as suas responsabilidades históricas de apaziguamento entre os dois lados que têm a mesma origem étnica, falam a mesma língua e são vizinhos próximos. Mas não poderia ter ido mais longe. Porque isso teria sido retirar legitimidade política ao governo de Taipé. Na verdade, tendo a reunião ocorrido sem agenda prévia e sem declaração final conjunta, não foi claro se Ma Ying-Jeou e Xi Jinping se reuniram na qualidade de presidentes de dois partidos conectados pela história ou como presidentes de dois países. A República Popular da China é largamente reconhecida como governo legítimo da China por uma expressiva maioria de países, a República da China é apenas reconhecida por vinte países. Que interesse tinha o encontro para Xi Jinping? Era a oportunidade de lançar uma negociação mais aprofundada entre os dois lados do Estreito, no quadro do rejuvenescimento da pátria chinesa, objectivo programático definido, por Xi, como central no período que levará até 2020. Nesta data celebrar-se-á o centenário da fundação do Partido Comunista Chinês. Ao tomar entre mãos o mais difícil dos problemas, legado, pela história, Xi Jinping quis dizer que resolverá também esse problema com sentido de responsabilidade e consciência dos seus deveres, como líder da maior nação asiática. Subentendido está o não uso da força para resolver a questão do estatuto futuro da ilha rebelde. Qual o pano de fundo em que o encontro teve lugar? Desde logo, o abrandamento do crescimento da economia chinesa face a valores recordes de décadas anteriores, prevendo o 13.o Plano Quinquenal que o PIB crescerá na ordem dos 7%. Valor que a maioria dos observadores considera excessivamente ambicioso. Em segundo lugar, a situação complexa decorrente do ‘crash’ na Bolsa chinesa, em 12 de Junho passado, levando à volatilização dos ganhos em Bolsa dos investidores privados que imediatamente puseram as suas carteiras de acções em outras praças financeiras mais fiáveis. Em terceiro lugar, a luta anti-corrupção desencadeada pelo Presidente Xi Jinping que colhendo o aplauso da opinião pública interna, tem gerado resistências dentro do partido comunista. Alguns sectores olham para esta como um puro ajuste de contas com opositores internos do secretário-geral e menos um exercício de transparência e de afirmação da legalidade. Tendo um poder interno que nenhum presidente da China tem desde Deng Xiao Ping, Xi Jinping sabe que o terreno que pisa é movediço. À medida que o tempo passa o progresso social advindo do crescimento da economia pode ser minado por outras circunstâncias que têm a ver com a instabilidade social e política, o envelhecimento da população, a degradação do ambiente em razão da poluição, o desemprego das novas gerações que concluíram a universidade na perspectiva da absoluta empregabilidade, a falta de competitividade do sector público empresarial ou a indolência dos lideres partidários em razão do seu aburguesamento. Sendo Taiwan uma carta fora do baralho no tão iconizado , o encontro simboliza que Pequim guarda todo o poder de iniciativa e não foge à resolução de qualquer problema, por maior e mais difícil que ele se apresente. Quais as expectativas dos dois lados para as negociações que aparentemente sobem a um novo estádio? Do lado de Taiwan podem identificar-se quatro objectivos. Primeiro guardar a independência económica, política e de defesa conquistada nos últimos sessenta e seis anos. Segundo manter o seu sistema de defesa autónomo, sob o chapéu estratégico-militar dos Estados Unidos, no quadro do acordo de assistência mútua e de defesa. Terceiro preservar-se como democracia constitucional, assegurando a defesa plena das liberdades civis e políticas e a livre eleição dos representantes dos taiwaneses no Parlamento Yuan. Quarto melhorar a posição de Taiwan no ranking dos parceiros comerciais de Pequim, sendo a ilha o quinto parceiro comercial, a seguir aos Estados Unidos, Hong Kong, Japão e Coreia do Sul. Do lado de Pequim, quatro objectivos parecem elegíveis. Primeiro a reunificação de Taiwan com a RPC, no quadro da política ‘Um país, dois sistemas’. Segundo forçar a que Taiwan abandone o Tratado de Defesa e Assistência Mútua celebrado (e renovado) com os Estados Unidos. Terceiro levar a que Taiwan reconheça o governo de Pequim como o único governo da China e do povo chinês, abandonando a política de se reivindicar como governo legítimo do ente . Quarto dissuadir Washington de tomar uma posição assertiva na equação da questão de Taiwan, tratando-a como uma questão interna chinesa. O apontamento de Xi Jinping na sua declaração escrita de ‘duas partes unidas pelo sangue’ tem esse objectivo concreto. Olhando para as expectativas traçadas, dir-se-á que muita coisa separa os dois lados do Estreito: o princípio pelo lado de Pequim; o pela parte de Taiwan. Irá afirmar-se uma nova liderança taiwanesa a partir das eleições de Janeiro de 2016. Se as previsões se confirmarem duas mudanças decisivas ocorrerão: pela primeira vez é uma política já nascida em Taiwan – Tsai Ing-Wen – e com boas qualificações que governará os destinos da ilha. Tsai é licenciada pela Universidade de Taiwan e doutorada pela London School of Economics. Por outro lado, uma mulher à frente de uma das nações emergentes da Ásia. É o contraponto do que acontece no outro lado do estreito: nenhuma mulher integra o Comité Permanente do Politburo do Partido Comunista Chinês. Mao Ze-Dong terá dito que as mulheres “sustentam a metade do céu”. Em Taiwan esse desiderato, será, provavelmente realidade.
Arnaldo Gonçalves VozesEleições Legislativas: o ‘caso’ Macau [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o longo processo de apuramento dos resultados eleitorais das recentes eleições legislativas impõe-se um comentário focado nos círculos da emigração e em Macau. Não que os resultados determinem uma mudança de orientação ideológica dos eleitores mas apresentam algumas distorções das regras eleitorais que importaria de futuro remediar e acautelar. Os dados são claros. A Coligação obteve 43,95% dos votos da emigração elegendo os deputados José Cesário, Carlos Gonçalves e Carlos Páscoa, o PS recolheu 20.01% e elegeu Paulo Pisco. Já quanto ao Círculo Fora da Europa, Pereira Coutinho venceu com 2532 votos, seguindo-se a Coligação PSD-PP com 214, o PS com 97, a CDU com 27, o Bloco de Esquerda com 30. Qual a leitura que estes resultados sugerem? Três apontamentos. Em primeiro lugar, como havia anunciado vendo frustrada a possibilidade de se candidatar por um dos dois partidos do arco da governabilidade, Pereira Coutinho fez-se apadrinhar por uma força política que o ‘levou à boleia’ potenciando as aptidões de mobilização do deputado macaense. O partido ‘Nós Cidadãos’ foi o que se prestou a esse papel e a votação em Coutinho representa parte significativa da votação num partido cujas escolhas ideológicas são obscuras e que recolheu apenas 0.8% dos votos expressos nas urnas(21 000). Ainda assim abaixo do PNR, partido da extrema-direita que chegou a ser falado como o ‘chapéu eleitoral’ de Coutinho e que recolheu 27 000 votos. Os resultados mostram que a sua táctica foi ganhadora e que ele é um ‘brand name’ em que certos grupos de eleitores votam independentemente da mensagem programática e dos objectivos das eleições. Em segundo lugar, os resultados revelam um enfraquecimento significativo da capacidade de mobilização das secções do PSD e do PS em Macau que não lograram convencer o seu eleitorado tradicional a deslocar-se às urnas de votos. Trata-se de uma derrota dos presidentes destas secções partidárias. Antevisível, segundo alguns, mas que mostra que o trabalho político no círculo da emigração fora da Europa foi nulo ou inexistente e que há muito por fazer para reconciliar a comunidade da diáspora com a vida política na metrópole e com o debate das alternativas que se colocam periodicamente aos eleitores. Nesse particular, o PSD – força tradicionalmente mais votada em Macau- fracassou e seria importante que se tirassem ilações políticas, tanto a nível local como a nível nacional dessa situação. O terceiro apontamento diz respeito à atipicidade da campanha eleitoral e à avaliação de práticas de mobilização dos eleitores que sendo porventura comuns no panorama da Região Administrativa Especial de Macau não o são no que concerne ao combate político e à livre expressão dos eleitores, nas urnas, no sistema democrático português. Refiro-me, precisamente, a indicações expressas de voto no candidato Coutinho por parte da presidente da Assembleia Geral da ATFPM, designadamente na sua página do Facebook, e à participação do aparelho sindical da ATFPM na mobilização de eleitores chineses com passaporte português, que ao que se percebe ‘colaborou’ no preenchimento, na recolha e no envio de votos por correspondência. Ponho esta afirmação entre comas, mas seria importante que as autoridades portuguesas procedessem a uma investigação discreta desta ocorrência que à primeira vista conforma uma distorção das regras eleitorais. Parece-me excessiva a acusação de fraude eleitoral mas há algo neste processo que urge rever para que não se volte a repetir. As eleições por correspondência tiveram o seu papel mas seria a altura de o repensar. O voto em eleições livres e democráticas é um direito e um dever e não pode ser condicionado e manipulado por terceiros. Permita-se-me três notas adicionais. Desde logo, a clarificação de uma questão de identidade nacional que anda sempre subjacente e que vários actores políticos evitam tratar, pelo seu incómodo. Parte significativa dos cidadãos recenseados no Consulado de Portugal em Macau é formado por chineses que no período conturbado do fim da Administração Melancia viram conferida a cidadania portuguesa, por receios quanto ao que aconteceria na transição de Macau para a China. Lograram obtê-la por démarche junto das autoridades de Lisboa por parte do então secretário para a educação e assuntos sociais, Jorge Coelho. São pessoas de dominante cultura e educação chinesas também titulares de passaporte chinês e a que as autoridades de Pequim não reconhecem a dupla nacionalidade mas apenas a chinesa. Para essas pessoas, a ligação a Portugal não é imputável a uma identidade de ‘portugueses’ – que não se sentem – como acontece com a globalidade dos portugueses emigrados e da diáspora, mas é apenas um ‘seguro para más horas’, caso venham a ocorrer, no futuro, perturbações políticas na República Popular da China que ponham em causa a segurança das suas pessoas e bens. Não falam português, não sabem o hino português, nem conhecerão, na maioria, qual é a capital de Portugal. É um caso único, fruto da história que Portugal deixou em Macau e que tem honrado. Como lhe cabe, aliás. O segundo apontamento adicional é que em matérias de identidade não se pode tergiversar. A nossa língua pátria é o português e é natural que em questões que têm a ver com a afirmação da nossa cidadania a língua de comunicação seja o português. Seria estranho que os nossos concidadãos da América Latina cumprissem as suas obrigações de cidadania em espanhol, os de França, Bélgica e Luxemburgo em francês, os da Alemanha, da Áustria e da Suíça em alemão, os descendentes de goeses em hindu e por aí fora. O principal elemento que veicula a pertença a uma determinada comunidade política, que se congrega em nação, é exactamente a língua. E isso é muito importante para um povo que celebra dentro em pouco 900 anos de história e de independência. Esta não é uma questão negociável e partidarizável. É assim. O terceiro apontamento tem a ver com as relações entre as autoridades da República e as comunidades de Macau. Acentuou-se, nos últimos quatro anos, uma relação preferencial do responsável pela secretaria das comunidades portuguesas, Dr. José Cesário, com os responsáveis da ATFPM. Em circunstâncias várias o responsável político português reconheceu mesmo aos Drs Pereira Coutinho e Rita Santos um papel crucial na representação de Macau nas relações com Portugal, colocando em segundo lugar os interesses da comunidade expatriada em Macau e na Ásia. Como se cabesse às autoridades portuguesas fazer uma hierarquização dos interesses e da representatividade das associações. Sendo a questão da liderança política da comunidade macaense uma questão não resolvida, quinze anos depois da transição, foi pouco prudente favorecer o protagonismo de alguns em desfavor de outros, introduzindo factores de distorção que explicam o decréscimo de votação na Coligação Portugal à Frente. 214 votos é manifestamente aquém do que o centro-direita pode conseguir e isso deve-se em parte à imagem negativa que se criou à volta do Dr. José Cesário pelas que circunstâncias acima que esteve a 400 de votos de perder a sua eleição. Responsabilidade adicional tem a secção do PSD em Macau que sempre favoreceu e impulsionou as agendas políticas de Pereira Coutinho e da ATFPM. Ao tempo em que escrevo não se conhece a solução governativa que colherá as preferências do Presidente da República mas estou em crer que Pedro Passos Coelho será chamado a constituir governo. Teremos dentro em pouco o início de uma nova campanha que levará à escolha do novo Presidente de todos os portugueses. O circulo fora da Europa dará o seu contributo a essa eleição, com tranquilidade como é tradicional nas nossas comunidades da emigração. Os portugueses em Macau não deixarão de responder à chamada. Somos dois milhões de emigrantes fora do rectângulo pátrio e temos um papel fulcral na escolha das opções do país.
Arnaldo Gonçalves VozesDepois das Eleições Legislativas em Portugal [dropcap style=’circle’]1[/dropcap]Chamados às urnas os portugueses elegeram, a 4 de Outubro, os seus representantes no Parlamento com base nos quais se formará o governo que dirigirá os nossos destinos colectivos, nos próximos quatro anos. As propostas submetidas a escrutínio eram basicamente duas: o afastamento do governo de direita e o fim da política de austeridade em nome de um crescimento imediato sustentado na Fé; a prossecução de um novo mandato focado em potenciar os sacrifícios pedidos aos portugueses em razão dos compromissos com a Troika e a devolução gradual dos rendimentos que foi imperativo captar para o reequilíbrio orçamental e o pagamento do dinheiro pedido emprestado. A escolha dos portugueses foi clara. Ganhou a Coligação Portugal à Frente com 38,55% do total dos escrutínios, ficando o PS em segundo lugar com 32,88% dos votos, seguindo-se o Bloco de Esquerda e o PCP (sob a capa da CDU) com 10,22% e 8,27%, respectivamente. Face ao que haviam sido as balizas propostas para o julgamento dos eleitores – maioria significativa pedida pela Coligação, maioria absoluta e derrota da direita pedida pelo PS – a vontade dos eleitores expressa nas urnas foi transparente: a Coligação tem agora um novo mandato como força mais votada para constituir governo, o PS foi derrotado nos seus marcos eleitorais e tem um responsável que se chama António Costa. Diferentemente do que expressaram os resultados eleitorais, a esquerda radical procurou, nos momentos seguintes, extrair uma outra leitura: que a Coligação apesar de ter conquistado 104 deputados no Parlamento e o PS ter ficado apenas com 85, não teria legitimidade para governar mas sim a esquerda que passara a deter uma maioria negativa. Ou seja o que valera para os governos de Mário Soares, António Guterres e José Sócrates (que governaram em minoria) não valeria para o governo de Passos Coelho, porque as esquerdas odeiam Passos Coelho. Quer dizer, a Constituição valerá quando joga nos propósitos das esquerdas mas nada vale quando favorece o centro-direita. Catarina Martins – a teatral líder do Bloco de Esquerda e do espaço político BE-CDU – reivindicava-se dessa leitura messiânica às primeiras horas da noite eleitoral, levando o Partido Comunista a reboque. 2. Não se pode desconhecer, contudo, que o quadro global de governabilidade se modificou, significativamente, com a composição da Assembleia da República. Com uma minoria aritmética de votos no Parlamento, o centro-direita terá de encontrar um novo estilo de governabilidade, de aplicação do programa eleitoral que submeteu aos portugueses e que recolheu o aplauso de 38% dos eleitores votantes, isto é dois milhões e sessenta e sete mil eleitores. Terá que saber negociar com a esquerda moderada, criando sinergias e ultrapassando fossos que não são tão grandes quanto isso (como aqui escrevi em crónica anterior) em matéria de programa económico e alinhamento ao Tratado Orçamental, às directivas da zona Euro. Os sinais que António Costa deu, na noite eleitoral, são promissores e a menos que o PS obreirista lhe imponha uma linha de convergência com as esquerdas comunistas, a negociação é possível e será, apesar de difícil, concretizável. Teremos o programa de governo aprovado no Parlamento e muito provavelmente o Orçamento com a abstenção do PS. É esse o quadro que Passos Coelho irá colocar ao Presidente da República e não tenho dúvidas que Cavaco Silva irá criar condições para que o governo da Coligação, legitimada por uma vantagem de seis pontos percentuais sobre o segundo concorrente, o PS, possa governar em concertação permanente. Espera-se que com a moderação, visão estratégica e discernimento que revelou na condução da campanha eleitoral – e cujo veredicto é em larga medida um vitória pessoal – Passos Coelho constitua um governo expedito, pragmático, formado por políticos profissionais, melhor ajustado aos dossiers sociais e que conduza o país, sustentado em bases seguras, a um ciclo de crescimento e progresso. O recuo do apoio nos eleitorados urbanos de Lisboa, Porto e Coimbra, com perda de 7, 4 e 2 deputados para o conjunto da Coligação, deve merecer uma atenção particular das directorias dos dois partidos e o procurar de um novo contrato de governabilidade com estes eleitores, onde se alicerça a base eleitoral do Partido Social-Democrata e o seu futuro. 3. As eleições mostraram duas coisas complementares. A primeira que as sondagens revelaram, com relativa proximidade, a sensibilidade aprofundada do país ao contrário do que afirmavam as esquerdas. A segunda que a opinião veiculada pela comunicação social, pelas televisões e pelas comunidades sociais em nada expressaram o sentir mediano dos portugueses. Elas foram, sobretudo, instrumentos de propaganda – logo sectários e parciais – de profissionais de marketing político, contratados pelos partidos da esquerda ou profissionais que ecoam agendas político-partidárias em vez de cumprirem a sua missão de informar, com isenção e imparcialidade. E se esse foi um efeito perverso em outras eleições mostrou-se com maior gravidade, nestas. Como alguém escrevia, a maioria silenciosa dos eleitores votou e escolheu o novo governo de Portugal mas ela não teve eco na informação que nos foi prestada. O que as eleições provaram é que esse jogo do engano e da mentira não vinga e que os eleitores, no fim, sabem muito bem fazer um juízo convergente aos interesses dos país. 4. No momento que escrevo esta crónica não são conhecidos os resultados dos círculos eleitorais da Europa e de Fora da Europa. São 4 lugares de deputados que estão em causa e que a confirmar-se a tendência nacional darão 2 a 3 deputados à Coligação Portugal a Frente e 1 ao PS. Esse é o meu prognóstico. Se assim for, a distribuição de lugares no Parlamento passará para 107 deputados para a Coligação, 86 para o PS, mantendo-se a restante distribuição pelo Bloco de Esquerda, a CDU e mais um deputado pelo PAN. Não creio que os eleitores do circulo Fora da Europa tenham acolhido os manobrismos rasteiros de quem, não se conseguindo fazer eleger nos principais partidos, escolheu o expediente de se propor como candidato por um partido que ninguém conhece e que captou 0.3% dos votos expressos, para se alcandorar aos ombros de quem controla politicamente no microcosmos de Macau, a um lugar de representação nacional. Seria um absurdo, uma mistificação e a violação de 40 anos de história da democracia portuguesa. As reclamações que intenta apresentar terão o resultado que espera sempre os populistas e os demagogos: o fracasso e a gargalhada.
Arnaldo Gonçalves VozesO imbróglio de Calais [dropcap style=’circle’]S[/dropcap]egundo relata o diário ‘Le Figaro’ os ministros do Interior da França, Bernard Cazeneuve e da Inglaterra, Theresa May, deverão assinar esta semana um novo acordo de cooperação bilateral visando responder à crise humanitária no porto de Calais, decorrente do afluxo de centenas de migrantes africanos que procuram chegar à Grã-Bretanha. Nos termos do acordo, revelado nas suas linhas gerais, visa-se conjugar esforços na ‘luta contra as redes criminosas de passadores, traficantes de pessoas e emigração clandestina’. O acordo prevê o reforço do dispositivo humanitário existente no local (centro de acolhimento Jules-Ferry) em articulação com autarcas locais e associações humanitárias. O centro providencia socorro de primeira necessidade aos migrantes que intentam chegar a solo britânico por ferry ou através do túnel do Canal da Mancha. Neste momento, centenas de migrantes vivem no centro de acolhimento que lhes oferece duche e uma refeição diário apesar das difíceis condições de acolhimento. Um reforço do contingente policial e das vedações no cais de embarque foi já feito mas os peritos duvidam que as medidas tomadas resolvam o problema que apresenta uma dupla dimensão: humanitária e de segurança. A Europa não tem logrado encontrar uma resposta conjunta e sustentável para a onda de emigrantes no seu litoral os quais em Julho passado atingiam as 107 000 pessoas (o triplo de há um ano) segundo a agência europeia Frontex. Talvez em nenhum outro ponto se acentue o fracasso das políticas comuns como na política de justiça e assuntos internos. Aquilo que ficou chamado como o terceiro pilar da União Económica e Monetária do Tratado de Maastricht. Ela previa a concertação de esforços comuns no capítulo do terrorismo, da imigração clandestina, da política de asilo, do tráfico de drogas, da delinquência internacional, das alfândegas e da cooperação judicial. Vinte anos depois de ter sido equacionada os resultados são confrangedores. As razões para esta implosão são várias. Desde logo o irrealismo da política; segundo, a falta de liderança numa vertente essencial à segurança interna e externa da União Europeia; terceiro, a questão da identidade europeia. Irrealismo da política porque os conceptores do modelo de cooperação reforçada imaginaram que com a dotação dos Fundos Estruturais e a canalização de substanciais ajudas humanitárias aos países donde prov(inham)(êm) esses emigrantes o problema ficaria solucionado na origem. Como? Criando-se postos de trabalhos e programas de assistência aos grupos sociais que buscam emigrar a qualquer custo. No período de 2000 a 2005, cerca de 440 000 pessoas emigraram de África para solo europeu. Em 2007, a BBC noticiava que segundo dados fornecidos da Organização Internacional de Migrações cerca de 4.6 milhões de emigrantes africanos viviam na Europa. Segundo o Instituto para a Política de Migração, um think-tank baseado em Washington, esse número deveria ser, pelo contrário, de 7 a 8 milhões de pessoas. Em 2014, a operação de protecção das costas marítimas europeias chamada ‘Operação Triton procurou, sem sucesso, impedir a chegada de vagas de emigrantes à ilha de Lampedusa, ilha italiana situada entre a Europa e África. No ano transacto cerca de 170 000 pessoas aportaram a Itália por via marítima, sendo originárias da Líbia, da Síria, do Corno de África e da África Ocidental. O balanço da política europeia de emigração é calamitoso. Não só os postos de trabalho nos países africanos não foram criados como os fundos de assistência desapareceram nos interstícios das agências governamentais e das cliques que governam esses países africanos. Por outro lado as redes criminosas de passadores de migrantes cresceram, em exponencial, interligando-se a organizações criminosas que operam em solo europeu como a Comorra italiana, a Mafia Corsa, os gangs do Magrebe francês e os ‘French Black’, este último gang formado por imigrantes da África subsaariana e das Caraíbas que controlam o tráfico de haxixe e cocaína em Paris. A questão do controlo da emigração e do acolhimento de refugiados foi sempre uma questão da exclusiva soberania nacional. As autoridades nacionais nunca largaram mão do poder de abrirem ou restringirem o acesso aos estrangeiros, consoante as necessidades de mão-de-obra não especializada, das empresas. Países de forte emigração de África como a França, a Espanha ou a Itália, habitualmente favoráveis à emigração, viram-se a braços com crises humanitárias quando os novos emigrantes preferiram organizar-se em guettos do que integrarem-se nos bairros, ao lado das comunidades metropolitanas. E se atitudes de xenofobia ou racismo podem explicar, em parte, os fenómenos de marginalização, não pode ser menosprezada uma opção calculada pela marginalidade e pelos grupos criminosos que operam em grandes cidades europeias. Naturalmente há a questão humanitária e todos nós somos sensíveis às imagens que nos chegam pelas televisões, de barcos afundados com centenas de pessoas amontoadas, entre as quais mulheres e crianças, bem pelos que por fortuna conseguem sobreviver. Mas a Europa não tem capacidade para receber todos os que querem chegar às suas costas e viver nas suas sociedades. O problema é multifacetado. É um problema de segurança; é um problema de solidariedade para quem padece; mas é também um problema da Europa que queremos nos tornar. Multiracial, seguramente, mas em que todos tenham o seu papel e sintam que estão na pátria que ajudam todos dias a construir. Foi esse o segredo da integração de outras vagas de emigração em séculos passados. Precisamos por isso de gente com outro discernimento a solucionar estes problemas. A Comissão Barroso nunca teve gente, nesta área, com perfil adequado. Franco Fratinni e Jacques Barrot foram opções de circunstância, empurrados pela política interna dos seus países. As iniciativas do Presidente do actual Conselho Europeu, Donald Tusk, em matéria de uma Agenda Europeia de Migração, dão sinais interessantes para um maior entrosamento comum neste domínio.
Arnaldo Gonçalves VozesGeometria Eleitoral [dropcap style=’circle’]1[/dropcap]. As nossas democracias liberais assentam em três ou quatro regras simples. A eleição através do voto directo ou universal dos representantes do povo, com assento numa assembleia parlamentar que é a expressão das alternativas políticas. Um mandato curto do governo liderado pelo partido vencedor na pugna eleitoral ou legitimado por um acordo de partidos que funciona, no parlamento, como bancada de apoio ao governo. Um árbitro, monarca ou presidente da república, que dá posse ao governo com base nos resultados eleitorais, fiscaliza a sua acção política, demite o primeiro-ministro em certas circunstâncias ou aceita a sua resignação. Um poder judicio-constitucional que fiscaliza as consequências jurídicas da actuação dos governantes, a constitucionalidade das leis – aferida à priori, ou a posteriori – a pedido do presidente da república ou por iniciativa de um partido ou grupo de partidos. O sistema funciona em regra, bem e permite ajustamentos ao mandato dos governantes. Dilatando o termo do governo a que a maioria dos eleitores dá nota positiva, dando a um novo partido a oportunidade de governar ou abreviando o mandato quando a coligação que sustenta o governo se dissolve, ou o chefe do partido maioritário se demite. Em regra, os eleitores não acolhem soluções de ruptura salvo quando a crise económica ou a perda de credibilidade dos políticos urge uma mudança radical de protagonistas. Na última década se olharmos para as eleições parlamentares, nas principais democracias do continente europeu, os eleitorados têm preferido soluções de estabilidade, forçando os partidos melhor posicionados a entenderem-se e a coalizarem-se à saída das eleições. Assim aconteceu nos seguintes países: Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Dinamarca, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Irlanda, Itália, Lituânia, Luxemburgo, Noruega, Polónia e Portugal. A única excepção é a Grã-Bretanha que viu renovar-se a confiança no partido conservador por razões parcialmente atribuíveis ao fracasso da liderança trabalhista. 2. Ao contrário do que gostariam os líderes do Partido Social-Democrata e do Partido Socialista o eleitorado português deverá preferir, nas eleições de 4 de Outubro, uma de duas soluções: a manutenção da maioria PSD-PP mas com margem menos expressiva; a vitória do PS, com maioria relativa. Em qualquer destas situações, o cenário resultante não é, de forma alguma, do agrado do Presidente Cavaco Silva, porque o forçará a um papel mediador que ele manifestamente não quer assumir. As razões, sucintamente, têm a ver com o seu perfil conservador, o seu trajecto em responsabilidades governativas, a história do seu relacionamento com Mário Soares e a avaliação política que faz de Passos Coelho e António Costa. Na percepção desta abulia presidencial para encontrar uma solução que não seja ditada pelos resultados eleitorais, os dois partidos-charneira do arco de governação arriscam pouco. Isso constata-se em dois elementos precisos: os programas eleitorais da Plataforma Mais Futuro para Portugal e do Partido Socialista; a formação das listas para deputados. Um olhar atento aos programas eleitorais de PSD-PP e PS revela que as duas forças políticas não estão assim tão distantes nas apostas e nos objectivos eleitorais como a verbosidade do discurso político deixa transparecer. Ao acirrarem divergências de ‘fundo’, os dois campos deixam margem de manobra para uma negociação pós-eleitoral que muitos crêem inevitável. Dê-se uma olhadela, por exemplo, às medidas que os dois contendores propõem para a reforma da segurança social, para o plafonamento das pensões, para a taxa social única, para a devolução da redução remuneratória dos salários dos funcionários públicos, para a redução da taxa do IRS e a reforma do IRC, para o Sistema Nacional de Saúde e para a política europeia. São sobretudo diferenças de estilo, discrepâncias de metodologia, disparidades na aferição dos impactos de medidas dirigidas a diminuir as restrições impostas pelo Programa de Assistência Económica e Financeira a Portugal. Do lado da Plataforma Mais Futuro, quer-se dar um sinal aos eleitores que é possível agora, relaxando as políticas de restrição orçamental e redução salarial e de benefícios sociais, recuperar a qualidade de vida dos portugueses perdida nos últimos quatro anos. Do lado do PS, vinca-se que o país está na mesma situação que em 2010, que o governo se tem mostrado incompetente para aliviar as políticas duras impostas pela Troika, que o programa da coligação é um emaranhado de medidas sem consequências de monta ou irrealistas. [quote_box_left]Um olhar atento aos programas eleitorais de PSD-PP e PS revela que as duas forças políticas não estão assim tão distantes nas apostas e nos objectivos eleitorais como a verbosidade do discurso político deixa transparecer[/quote_box_left] Também na formação das listas prevalece o mesmo calculismo. Da parte de Passos Coelho, fazer eleger para a Assembleia o bloco duro que o tem apoiado no governo e no Parlamento. Bloco formado por nomes como Moreira da Silva (Braga), Manuel Frexes (C. Branco), José Cesário (Fora da Europa), Teresa Morais (Leiria), Aguiar Branco (Porto), Teresa Leal Coelho (Santarém), Maria Luís Albuquerque (Setúbal), Carlos Amorim (V. Castelo) e Luis Ramos (Vila Real). Ao mesmo tempo, manter o isolamento da oposição interna liderada por Manuela Ferreira Leite e Pacheco Pereira (com António Capucho já fora do partido). Do lado de António Costa, construir um bloco homogéneo de apoio ao líder no parlamento formado por antigos socratistas: Carlos César (Açores), Capoulas Santos (Évora), Ferro Rodrigues (Lisboa), João Galamba (Lisboa), Isabel Santos (Porto), Vieira da Silva (Santarém) ou Eduardo Cabrita (Setúbal). Grupo a que se adicionou quadros que poderão ser designados pela ala ‘costista’ do PS: Pedro Nunes dos Santos (Aveiro), Helena Freitas (Coimbra), José Apolinário (Faro), Margarida Marques (Leiria), Alexandre Quintanilha (Porto) ou Ana Catarina Mendes (Setúbal). Um último objectivo passa por dividir a minoria ‘segurista’, repescando para a lista Manuel Vilaverde Cabral (Braga), Eurico Brilhante (C. Branco) e Alberto Martins (Porto). 3. Não é antecipável, assim, uma alternativa significativa ao quadro exposto. A menos que na campanha eleitoral surja algum episódio associado ao historial político e profissional dos dois líderes que provoque um motim nas escolhas dos eleitores. Passos Coelho parte para esta sua segunda campanha numa situação relativamente confortável. Em termos do desempenho do governo e do comportamento da economia os números são-lhe favoráveis. Segundo dados extraídos da Pordata, o PIB (a riqueza nacional) cresceu de forma sustentada entre 2010 e 2014 com uma variação de mais 3 por cento. O PIB per capita (a riqueza anual disponível para cada português) cresceu 1.24% no mesmo período, cifrando-se agora em 16 600 euros. O número de beneficiários do subsídio de desemprego caiu, entre 2011 e 2014, colocando-se em Dezembro passado em 304 000 pessoas. A dívida pública que cresceu 21% entre 2005 e 2009 e 24.3% entre 2009 e 2011 (anos de governos de Sócrates) cresceu 21% do PIB entre 2011 e 2014, o que é uma significativa recuperação quanto ao período imediatamente anterior. Menos simpáticos os dados das despesas do Estado, do consumo público e da carga fiscal. As primeiras não se reduziram tanto quanto Passos Coelho prometeu na sua campanha de 2011. Passaram de 48. 6 mil milhões de euros em 2011 para 48.4 mil milhões de euros em 2014. O consumo público passou de 19.4% do PIB em 2010 para 18.6% em 2014, o que representou uma queda de 4.12%. Finalmente, a leitura da carga fiscal em rácio do PIB revela um agravamento entre 2010 e 2014 (30.2% no primeiro ano e 34.4% no segundo) com um pequeno ganho entre Dezembro de 2013 e 2014. Nada mal para quem governou sob programa de assistência financeira do FMI e das instituições europeias. Também as sondagens têm confirmado o veredicto não totalmente desfavorável às pretensões de Passos Coelho e à estratégia que escolheu para passar uma mensagem central de prudência da acção do governo e da necessidade de um segundo mandato para ‘arrumar a casa’. Iremos saber adiante se essa estratégia foi avisada pela prudência ou fracassou por ausência de ambição. O que parece para já possível dizer é que existe um país retratado nas redes sociais e nos espaços de comentários nas televisões e nos jornais que pressagia o apocalipse. Existe um outro que se manifesta nas sondagens que prefere a estabilidade e a continuidade de políticas reformadoras ao aventureirismo das rupturas.
Arnaldo Gonçalves Vozes2015: Ano de todas as eleições [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]presente ano de 2015 é por razões do calendário político, o ano eleitoral na Europa. Já tiveram lugar eleições legislativas na Grécia, no Reino Unido, na Dinamarca, bem como eleições regionais em Itália. Estão agendadas eleições regionais na Catalunha em Setembro e legislativas em Portugal e na Polónia no mês de Outubro, concluindo-se o roteiro com as eleições gerais em Espanha em Dezembro. O pesado calendário eleitoral ocorre quando o velho continente se confronta com inúmeras transformações e desafios ditados quer por circunstâncias internas quer externas. Entre as primeiras o enorme descontentamento que grassa nos eleitores na forma como a Europa tem sido gerida e como têm sido desenhadas prioridades tanto a nível do espaço comunitário como a nível nacional. Também a relativa surdez dos partidos tradicionais, à esquerda e à direita, aos apelos de mudança e de suavização das políticas macroeconómicas na União impostas pelo Tratado de Estabilidade, Coordenação e Governança da União Económica e Monetária. Já no campo das segundas os receios trazidos pela ameaça do expansionismo russo às fronteiras orientais da Europa e o cerco do terrorismo de inspiração islamita. O ano de 2015 ficará, provavelmente, na história contemporânea europeia como o ano de todas as dúvidas, de todas as desilusões. O ano em que a percepção de um destino comum, de valores partilhados, de solidariedade europeia que pontua os tratados foi corroído pelos estritos cálculos do deve-haver ao sabor das tendências das praças financeiras e dos humores dos especuladores nas bolsas de valores. A política europeia tornou-se um jogo de cartas viciadas em que os políticos os governos nacionais se comprazeram a ter um papel meramente decorativo e a funcionar segundo os ditames de poderes ocultos que se mexem na sombra. Saberemos nos dias finais do ano se as eleições em Portugal, na Polónia e em Espanha confirmam o apoio contrariado dos eleitores aos partidos tradicionais já visível nas eleições que tiveram lugar. Não creio que assistiremos, até por acontecimentos recentes, à repetição da vitória de um qualquer outro Syrisa europeu. Foi um fenómeno limitado que terá o seu acaso tão depressa como teve o apogeu. Não significa isto que o paradigma bipartidário europeu criado na lógica do pós-Guerra, estruturado entre partidos à esquerda – socialistas e social-democratas e à direita -partidos conservadores, democrata-cristãos e populistas – esteja estabilizado. Sendo cada vez mais inverosímil a conquista, em eleições legislativas, de maiorias absolutas assistiremos a reagrupamentos, a cisões nos grandes partidos, à fusão de pequenos grupos e grupúsculos e à afirmação de plataformas radicais tanto à esquerda como à direita. Historiadores, sociólogos e cientistas políticos têm alertado para a repetição das condições económicas, políticas e sociais que conduziram à explosão dos movimentos autoritários no velho continente na década de 1930 e à emergência dos fascismos, dos nazismos e de outras expressões políticas de xenofobia, racismo e extremismo. Segundo dados do Eurostat, de Maio de 2015, existem vinte e três mil milhões de desempregados na União Europeia, dos quais dezassete mil milhões na zona Euro. As maiores taxas de desemprego são na Grécia (25.6%), em Espanha (22.5%), a menor na Alemanha (4.7%). Em Maio de 2015, quatro mil e setecentos milhões de jovens (com menos de 25 anos) faziam parte deste enorme exército de desempregados. Em termos nacionais o desemprego jovem cifrava-se em 49.7% na Grécia, 49.3% em Espanha e 41.5% em Itália. É um enorme exército de desempregados, muitos desesperados, à disposição dos movimentos extremistas e disponíveis para embarcarem no primeiro projecto utópico que lhes for vendido, de forma convincente. Temos já uma primeira amostra desta ameaça preocupante pelo que se retira de relatórios sobre o recrutamento de europeus pelas organizações terroristas do Médio Oriente. Segundo o mais recente relatório da Europol “TE-SAT 2014’, a Al Qaeda e o ISIS mantêm intacta a sua capacidade de recrutarem jihadistas na Europa, aumentando a ameaça posta à Europa. Em 2014, diz o mesmo relatório, os estados-membros identificaram um crescendo de viagens de mulheres e crianças para a Síria e para o Iraque, o que indiciar o surgimento de uma nova geração de jihadistas na Europa. Também o número de combatentes que regressou à União Europeia vindo dessas paragens, aumentou significativamente. Tais combatentes adquiriram ali experiência de combate e operacional que os tornam ícones para jovens desempregados e socialmente desenraizados. Mas não se limita a este tipo de movimentos a ameaça colocada à segurança europeia. Também em 2014 verificou-se um crescendo de prisões em Itália, Grécia e Espanha associadas a operações de grupos da extrema-esquerda e anarquistas. De acordo com o relatório citado, os grupos terroristas gregos mantêm ligações ao crime organizado para obtenção de armas e explosivos e estas conexões poderão reforçar a sua capacidade operacional em ambiente de instabilidade social ou pré-rebelião. O mesmo tipo de práticas (e associações) criminosas tem sido imputado à extrema-direita em França, na Polónia e em Itália visando a organização de atentados contra políticos, magistrados e polícias. A Europa está assente pelas condições referidas num enorme paiol de pólvora à espera de ser incendiado. Daí que importaria que os dirigentes europeus tivessem uma outra visão, uma outra abrangência, ditada não exclusivamente por razões economicistas mas sobretudo pela gestão política e de segurança de uma situação que pode descambar, a qualquer tempo. s
Arnaldo Gonçalves VozesA Grécia fora do euro [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]pesar da onda de solidariedade que a situação grega e o referendo de domingo passado suscitou por toda a Europa, pode dizer-se que se apresta a saída da Grécia do Euro e muito provavelmente o desmembramento da União Económica e Monetária(UEM). O clima negocial em Bruxelas e nas principais capitais europeias não é de modo a aceitar – uma negociação realista da última proposta europeia apresentada os gregos. A única resposta que se espera deles é a capitulação e a rendição, sem reservas, às propostas que os magiares da União Europeia afirmam ser a única forma de se estar no Euro e de se convergir com as economias ricas da Europa. Isto é uma política de absoluta austeridade, de contenção severa das despesas públicas, de emagrecimento do Estado Social, de desestruturação, a final, das políticas de coesão que haviam sido aprovadas pelo Acto Único Europeu de 1986. É fácil tentar imputar responsabilidades pela ruptura negocial entre Bruxelas e Atenas mas elas dificilmente são atribuíveis a uma só parte. Não há neste jogo santos e mártires mas apenas poderes (de distinta dimensão) que jogaram aquilo que têm à disposição para pressionar o adversário e prosseguir os seus interesses e prioridades. No caso dos administradores da UEM a convergência artificial das economias, o equilíbrio orçamental a qualquer preço, o garrote da despesa pública não referido ao desempenho do PIB. Foi este conjunto de prioridades que a Alemanha conseguiu instilar no Tratado de Estabilidade, Coordenação e Governança da UEM (2012) e que conduziu ao estado presente de estrangulamento da economia da União, expresso nos baixíssimos valores de evolução do PIB nesta década, na ordem média dos 0.36%. No caso da Grécia a ideia, porventura infantil, que as economias ricas da Europa estariam disponíveis para injectar significativos montantes de financiamento que permitissem ‘segurar’ o essencial do estado social, em nome de um abstracto e insubstantivo valor de solidariedade europeia. Tornou-se claro que a posição dos credores é apenas um ‘take it or leave it’ e que não existe – como nunca existiu – margem significativa para negociar as várias metas. É, porventura, dramático que um governo democraticamente eleito pelos seus cidadãos em Janeiro e cuja posição negocial foi referendada, maioritariamente nas urnas, no domingo, se veja derrotado por instâncias que não foram eleitas mas cooptadas pela burocracia tecnocrática que dirige os destinos da União Europeia. Mas a política internacional nunca foi justa e quase nunca correspondeu a exigências de ética e elevação moral. Apenas, porventura, à saída da Segunda Guerra Mundial sob a protecção generosa do exército norte-americano. Assistiremos, assim, nos próximos dias, à rejeição da posição grega, em nome da solidez e coerência da posição europeia. Dando acolhimento ao clamor dos eleitorados dos países do Norte da Europa que têm pressionado os governos para recusarem novos auxílios e deixarem os gregos à sua própria sorte. Na sequência da ruptura, a Comissão Europeia implementará medidas, já programadas, de desancoramento da Grécia à UEM e eventualmente um programa de assistência humanitária de urgência. Digo eventualmente, porque tenho dúvidas que os 15 países que estão em sintonia quanto à saída da Grécia da UEM ainda concedam essa ajuda de urgência. É, imaginam eles, a última estocada no moribundo que apressará a sua agonia. [quote_box_right]Os campeões da União Económica Monetária acreditam que cortando um dedo asseguram a sobrevivência do corpo mas esquecem-se da gangrena que tomou já conta dos outros membros[/quote_box_right] A saída da Grécia do Euro não é o fim mas é ao contrário a luz ao fundo do túnel. Permitirá ao governo grego, retomando a totalidade dos poderes soberanos sobre a gestão da economia, implementar as necessárias políticas económicas. Desde logo, a obtenção de socorro de emergência fora da União Europeia. A Grécia é o baluarte sul de defesa da Aliança Atlântica, uma peça essencial no seu dispositivo, num tempo de expansão do poder geoestratégico russo sobre os territórios vizinhos. É, também, um país vizinho da Turquia e essencial na contenção da ameaça islamita radical que está, pouco a pouco, a partir dos territórios que já dominam no Norte da Síria e do Iraque a sequestrar zonas do Médio Oriente que são vitais à defesa do Ocidente e ao aprovisionamento de matérias-primas. Não é preciso fazer um grande exercício de imaginação para se perceber que os Estados Unidos não deixarão cair a Grécia na zona de influência da Rússia e da China. As ilhas helénicas dominam estrategicamente as rotas de navegação do Norte do Mediterrâneo e dão acesso ao também estratégico Canal de Suez. Mas ainda que a ajuda de emergência não seja totalmente assumida por Washington irão aparecer outros poderes disponíveis para cooperar. Isso era claro em artigo publicado esta semana no New York Times. O segundo passo é a emissão da moeda nacional, o novo dracma, sob a tutela do Banco Central grego e a sua interligação à carteira de moedas internacionais. Retomando os poderes de gestão monetária que perdeu quando entrou na UEM, o governo grego estará agora livre para desvalorizar a nova moeda face ao Euro e ao dólar. O que irá estimular as exportações, o turismo (a principal indústria nacional) e a fixação de novos investimentos. Passará para a gestão nacional o controle da inflação, instrumento que tem sido mantido artificialmente baixo por condicionamento do Banco Central Europeu (entre 1% e 1.5%). A situação da Grécia é muito difícil. Como referia o Prof. Jeffrey Sachs, da Universidade de Columbia, a economia grega encolheu 25% desde 2009, o desemprego atinge os 27% em geral e 50% na juventude. É ingénuo pensar-se que um terceiro pacote de assistência financeira ( o mecanismo ESM) irá resolver, significativamente, a aflitiva situação grega. Será um paliativo num doente já moribundo, destinado a assegurar o reembolso dos empréstimos concedidos pelos bancos alemães, franceses e britânicos aos falidos bancos gregos. Apenas uma pequena parte – menos de um terço – será destinado a aplacar a situação aflitiva dos segmentos mais depauperados da população. Os campeões da União Económica Monetária acreditam que cortando um dedo asseguram a sobrevivência do corpo mas esquecem-se da gangrena que tomou já conta dos outros membros. As políticas em vigor no Tratado Orçamental estão desajustadas à situação presente da União. Foram criadas para responder a circunstâncias que já não existem. Se não forem revistas a União Económica morrerá e outros países sairão do Euro. É uma questão de tempo.
Arnaldo Gonçalves VozesGrécia: o fracasso europeu [dropcap style=’circle’]D[/dropcap]epois de semanas de intensas negociações o diálogo Grécia-Eurogrupo à volta da dívida grega fracassou. De várias proveniências choveram acusações de responsabilidade pelo insucesso. Formaram-se, entretanto, dois blocos distintos que cavaram trincheiras e preparam-se paras novas ondas de assalto como se a discussão à volta do incumprimento de uma dívida de um estado soberano fosse uma guerra, com munições, salvas de artilharia, ataques aéreos e congeminações com aliados de ocasião. Quer uns quer outros estão errados pois a crise grega não está delimitada. Sobre ela assenta a saúde do sistema financeiro europeu, a credibilidade da Europa como identidade, a sorte do Eurogrupo e a possibilidade, nas próximas décadas, de um alargamento a sudeste ao espaço da antiga Jugoslávia e à Turquia. É isto que os governos do centro-direita e os seus aliados socialistas não compreenderam. Vamos por partes. Comecemos pelo bloco anti-Syrisa que condena, em uníssono, a posição da Grécia e a decisão aprovada pelo parlamento de convocação do referendo para dia 5 de Julho. Cruzam-se no arsenal de críticas a Atenas argumentos económicos, políticos e tiros no escuro. Comecemos pelos primeiros. A dívida foi contraída por vários governos gregos e tem de ser liquidada, pois a Grécia assumiu por escrito a responsabilidade de a liquidar, em determinadas tranches e datas. O país depende do financiamento do sistema bancário e este alimenta-se do refinanciamento da banca internacional e em certas condições do Banco Central Europeu. A Grécia – se quiser sobreviver – tem de aceitar a oferta dos credores: o problema grego é económico e nada tem de político. Depois os argumentos políticos. A negociação do Syrisa foi irresponsável, Tsipras é um socialista radical que quer o fim do Eurogrupo e, a prazo, da União Europeia. O referendo grego é inútil. Finalmente, os argumentos de ‘wishful thinking’: a Grécia vai ser forçada a sair do Eurogrupo. A Grécia não tem mais trunfos, vai ajoelhar. Passemos ao bloco pró-Syrisa que apoia, com algumas nuances, a posição e estratégia de Tsipras. Os argumentos económicos, a começar: a proposta grega foi legítima e razoável; representa uma evolução séria desde o começo das negociações. Não é sustentável uma política de austeridade que penalize os estratos mais débeis da população como a evolução do caso grego demonstra. Depois os políticos: um país não pode ser obrigado a pagar uma dívida em condições que não pode suportar. A negociação foi conduzida de forma construtiva e Tsipras negociou com pragmatismo. A Europa é que perde com a saída da Grécia do Eurogrupo. Finalmente os argumentos de ‘wishful thinking’: a Grécia não está nas mãos dos credores e há fontes de financiamento alternativas (China, Rússia, no limite os Estados Unidos, parceiro na NATO). A Grécia pode encarar a saída do Eurogrupo sem problemas de maior desde que tenha a confiança do povo grego. O referendo de domingo irá reforçar a legitimidade do Syrisa. A política europeia, como a política internacional, não é um jogo de soma nula, em que uns ganham e outros perdem. É normalmente um jogo em que alguns perdem alguma coisa e outros ganham alguma coisa. Tem sido, assim, desde a criação das Comunidades Europeias, passando pela fundação da União, os sucessivos alargamentos e a Convenção sobre o Futuro da Europa. Por uma razão intuitiva, embora esquecida muitas vezes: a União Europeia é uma construção de interesses contraditórios mas não é uma inevitabilidade, uma realidade sine qua non. Quer dizer, no momento em que os países que formaram a União não a quiserem, os estados-membros regressam ao estado anterior à confederação. Com custos significativos mas não constituindo uma impossibilidade. Apenas não aconteceu até agora. [quote_box_left]A Europa não precisa de arautos da desgraça. Precisa de líderes realistas que ajudem a construir uma solução plausível que compatibilize as obrigações financeiras tomadas pelas Estados e a salvaguarda da sua dignidade e condições de sobrevivência[/quote_box_left] A dívida grega é de 315 mil milhões de euros, o que corresponde a 176% do PIB, o que quer dizer que a dívida é uma vez e meia o que o país produz num ano e esse valor tende a agravar-se com os encargos da dívida (4.3% do PIB). A situação é insustentável no médio prazo – nenhum país conseguiu estar muito tempo numa situação de endividamento crónico, porque o funcionamento da economia exige financiamento e este advém dos bancos, refinanciados pelo sistema bancário internacional. Ninguém empresta dinheiro se não tiver uma probabilidade razoável de o reaver, num curto espaço de tempo. A Grécia não é contudo o único país devedor da coalizão Comissão Europeia-FMI- Banco Central Europeu. Portugal tem uma dívida de 215 mil milhões de euros, o que equivale a 131.4% do PIB. A Itália tem uma dívida correspondente a 132%. Também a França com 93.6% e a Alemanha com 74% dos respectivos PIB têm dívidas nacionais significativas. Dia 30 de Junho venceu-se o programa de assistência de emergência já que a Grécia deveria ter entregue 1600 milhões de euros ao FMI, entrando, assim, em ‘default’, isto é, em mora de cumprimento. Nessa data venceu-se, também, o resgate da União Europeia quanto ao empréstimo concedido. A única possibilidade de ser desbloqueada uma nova injecção de 7200 milhões de euros, indispensável à economia grega, era ter sido aceite a proposta final do Eurogrupo que exige compromissos no corte das pensões, o congelamento do salário mínimo, a subida do IVA, a eliminação da sobretaxa sobre as empresas (e grandes fortunas) proposta pelo governo grego, o corte das despesas militares. Com a suspensão das negociações com o Eurogrupo e os países (credores individuais) a situação ficou num ‘stand still’, num impasse. Na verdade, o sistema financeiro não tem mecanismo para executar um país por dívidas acumuladas – não existe a hipoteca de países. Mas tem uma arma letal importante: o torniquete do financiamento. Naturalmente, num dado tempo os países nessa situação podem emitir moeda para financiar a sua economia. Mas no sistema monetário europeu esse poder está atribuído, em exclusividade ao Banco Central Europeu, que já disse que não coopera. O que coloca a Grécia numa encruzilha de três caminhos. Primeiro caminho: regressar à mesa de negociações se o povo grego por exemplo disser ‘não’ à posição do governo do Syrisa de recusar o acordo proposto pelo Eurogrupo. Segundo caminho: obter financiamento de urgência por parte de terceiros, se o referendo lhe for favorável. É o caso da China que já se ofereceu para ajudar o país mas não disse ‘quanto’ e em que condições. Ocupando já uma posição proeminente no porto do Pireu por via da COSCO, a empresa estatal, a China pode subir a parada, disponibilizando o referido valor de 7200 milhões de euros em troca do reforço da posição accionista no porto. O porto dar-lhe-ia o acesso ao norte do Mediterrâneo e ao estratégico canal do Suez; a partir daí ‘atacaria’ o mercado europeu. Terceiro caminho: sair do Eurogrupo, voltar a cunhar dracmas e condicionar todas as decisões europeias que a nível do Conselho Europeu exijam a unanimidade dos 28 estados-membros (e que são o essencial de política externa e da governabilidade económica da União). Esta é uma verdadeira bomba atómica, pois paralisaria o funcionamento da União Europeia e empurraria a Grécia para fora da NATO. Mas essa saída nunca será permitida pelos Estados Unidos para quem a Grécia é indispensável na insegura fronteira do sudeste da Aliança Atlântica perante a ameaça da Rússia e a irresolução estratégica da Turquia. Ficam assim as duas primeiras opções. Quer dizer de repente uma questão económica transformou-se num resfriado estratégico para o Ocidente e a aliança Estados Unidos-Europa. As próximas semanas serão decisivas para a Grécia mas também para a União Económica e Monetária. A Europa não precisa de arautos da desgraça. Precisa de líderes realistas que ajudem a construir uma solução plausível que compatibilize as obrigações financeiras tomadas pelas Estados e a salvaguarda da sua dignidade e condições de sobrevivência. Talvez seja esse o papel reservado à Alemanha.
Arnaldo Gonçalves VozesZhou Yongkang e Xi Jinping [dropcap style=’circle’]A[/dropcap] condenação de Zhou Yongkang, o poderoso membro do Comité Permanente do Politburo do Partido Comunista Chinês e antigo chefe dos serviços de segurança da China à pena de prisão perpétua por crimes de aceitação de subornos, abuso de poder e revelação de segredos de Estado despertou enorme atenção da imprensa internacional e propicia importantes leituras. O perfil do arguido, os termos invulgares da condenação e a sua ligação à campanha anti-corrupção promovida pelo presidente Xi Jinping revelam que o tema ‘corrupção’ se tornou uma prioridade essencial da liderança chinesa para as próximas décadas. Revelam, ao mesmo tempo, as dificuldades de compatibilizar o desígnio da construção de um estado de direito com a preservação do domínio do Partido Comunista no Estado. Coloca dúvidas incontornáveis quanto aos limites da campanha em curso. Zhou é o mais proeminente membro do Politburo a ser alguma vez condenado por crimes desta gravidade, em seis décadas de vida do PCC. O seu julgamento segue-se ao processo mediático de Bo Xilai e à condenação por crimes de idêntica natureza de ministros, generais do Exército, CEO de empresas estatais, responsáveis provinciais da RPC e dezenas de milhares de dirigentes comunistas. Secretário da Comissão de Assuntos Jurídicos e Políticos do Politburo entre 2007 e 2012, Ministro da Segurança Pública desde 2002, Zhou foi um homem de confiança de Hu Jintao, presidindo ao vastíssimo sistema de segurança interna e de justiça da China. A sua condenação, a projecção pública interna que foi dada `a sentença, mostra que o regime quis fazer do caso ‘Zhou Yongkang’ um exemplo de que não recuará no propósito de punir ‘tigres e moscas’ (como Xi Jinping gosta de referir) por actos de indisciplina que atentem contra os interesses do Estado, a probidade no desempenho de funções públicas e a imagem interna e externa da China. Mas coloca, ao mesmo tempo, importantes incertezas. Desde logo a questão do poder e de quem o detém. Visa a condenação de Bo Xilai e agora de Zhou Yongkang a limpeza do aparelho do Estado e do partido de dirigentes corruptos e subornáveis? Ou é apenas um pretexto para o reforço do poder pessoal de Xi Jinping, em termos que não se viam desde o período de liderança de Deng Xiaoping e para o apartamento do princípio da responsabilidade colectiva na direcção política do partido e do Estado? Se assim é, o que distingue, afinal, Xi Jinping de Mao Zedong? Depois a questão do alcance da campanha anti-corrupção. Segundo a acusação, Zhou Yongkang terá recebido subornos de Jiang Jiemin, presidente da China National Petroleum Corporation no valor de 118 000 US (cerca de um milhão de patacas). Jornais de referência afirmaram que Zhou e o círculo familiar detêm uma fortuna avaliada em 160 milhões de dólares (1.2 biliões de patacas) não contando com contas bancárias, propriedades e aplicações financeiras. Longe de ser um caso isolado, as mesmas fontes afirmam que outros dirigentes seniores do PCC – desde logo o ex-Primeiro-Ministro Wen Jiabao, o ex-presidente da Comissão Politica e Consultiva do Povo Chinês, Jia Qinglin e a família próxima de Xi Jinping – detêm patrimónios de montante várias vezes superior ao apontado a Zhou. A pergunta que se coloca é como pode a campanha anti-corrupção ‘caçar outros tigres’ sem atingir o núcleo essencial do poder na China e das famílias que manifestamente o co-partilham? Ou é a campanha selectiva e dirigida apenas contra inimigos internos? A delicadeza da questão, o facto de Zhou Yongkang deter, seguramente, informações relevantes que não interessa que sejam tornadas públicas, levou a que fosse feita uma excepção à regra anunciada em Março, pelo Tribunal Superior da China, de que os julgamentos de quadros seniores do partido serão abertos ao público. O julgamento foi feito à porta fechada e apenas a confissão de Zhou quanto aos crimes de que era acusado foi gravada e retransmitida pela televisão chinesa. Segundo alguns observadores, o segredo que rodeou o julgamento pode ser sinal que Zhou não terá cooperado com as autoridades tanto quanto se esperaria e que a sentença terá sido combinada ainda antes de o julgamento começar. Com arguidos desta proeminência, a decisão nunca é deixada à polícia, à procuradoria e aos magistrados. É tomada pela liderança política em consulta com os ex-lideres, num processo de consensualização da decisão que singulariza o sistema político chinês. Qual a extensão da corrupção na China e em que medida pode pôr em causa a sobrevivência do regime chinês? É difícil responder à questão. Desde logo, porque não há dados fiáveis quanto à grandeza do problema. O país tem surgido nos rankings de Transparency International’s Corruption Perceptions Index (que organiza os países de 0 a 100, dos mais corruptos aos mais transparentes) no meio da tabela. Em 2014 foi-lhe atribuída a pontuação de 36, o que coloca a China em 100 lugar, num conjunto de 174 países, a par da Indonésia e do Vietname. Quanto à realidade concreta do problema e às possíveis soluções as opiniões dividem-se. Fareed Zakaria, jornalista e especialista em relações internacionais, tem defendido que a corrupção na China é diferente da que se verifica em países em vias de desenvolvimento como a Índia e a Indonésia (é aqui crónica, alargada, massiva). A corrupção na China, diz Fareed, envolve gente bem posicionada que recebe tratamento preferencial em empréstimos do Estado, investimentos e contratos públicos. Minxin Pei, especialista em questões chinesas e director do Centro de Estudos Estratégicos do Claremont McKenna College, tem uma posição contrária e diz que a corrupção na China é um problema histórico e endémico, transversal à sociedade e que põe em perigo o futuro da China’. Minxin adianta ainda que, por razões internas, a actual liderança chinesa será incapaz de levar a campanha anti-corrupção muito mais longe do que o fez até agora. Tenho uma posição mais próxima de Roderik MacFarquhar, professor de relações internacionais na Universidade de Harvard. É demasiado cedo para perceber até onde quererá Xi Jinping levar a campanha em curso. Por um lado, porque o julgamento de Zhou Yongkang foi recente e não é ainda perceptível qual o seu impacto na opinião pública interna. Barómetro a que a actual liderança dá muita atenção. O carisma e a confiança do cidadão comum na liderança de Xi Jinping parece não ter sido atingida. Ele incorpora o ideal popular do político íntegro que combate o nepotismo e o favorecimento ilegítimo onde quer que ele se esconda. Mas, por outro lado, o presidente da China não pode alargar excessivamente a ‘caça aos tigres’ sem pôr em risco a legitimidade do partido, a natureza monopolista do seu poder e a própria coesão da liderança. Mao – figura que manifestamente o inspira – soube, quase sempre, parar as ‘campanhas de rectificação de massas’ quando elas corriam o risco de destruir o partido. A Revolução Cultural revelou os limites da sua obsessão em aniquilar os inimigos internos. Xi Jinping é um líder forte como há muito tempo não se via na China. Mas o sistema de cooptação de líderes em que assenta a máquina do PCC tem as suas próprias limitações. Xi Jinping nunca governará contra os interesses do partido e da sua elite dirigente. Xi não é Gorbatchov, como muitas vezes tem referido. A perestroika não faz parte do seu vocabulário.