Conectividade e Alegria

Ana Cristina Alves – Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

Zhuangzi, filósofo taoista, que terá vivido entre o século IV e III a.C, possivelmente entre 369 e 268 a.C, deixou-nos na obra homónima 《莊(庄)子》, como era costume à época, os ensinamentos transmitidos possivelmente na primeira pessoa nos capítulos interiores (1-7), na segunda pessoa dos seus discípulos nos capítulos exteriores (8-21) e na terceira pessoa de outros intelectuais nos capítulos de miscelânea (22-33).

É uma filosofia extremamente motivante que assenta, do meu ponto de vista, em três princípios fundamentais: a aceitação da natureza espontânea (道Dào); o princípio da transformação (物化wùhuà ), que conduz ao postulado de uma uniformidade essencial; e do não-agir (無為/无为 wúwéi), que pressupõe a aceitação duma harmonia pré-estabelecida e do destino. Estamos perante a melhor ordem possível, pelo que o certo é não interferir com o que nos é dado, deixando-nos conduzir por um ritmo de vida necessariamente tensional, mas que cujos desafios devem ser encarados sem reações negativas, seguindo o modelo existencial do bambu, quando é confrontado com ventos de proporções gigantescas, como são os dos tufões na China.

Os capítulos 17 e 18, que agora aqui se trazem pertencem alegadamente aos seus discípulos mais próximos, que transmitem fielmente a filosofia do grande mestre taoista, sendo que o taoismo é a filosofia mais devotada a desenvolver um projeto pessoal, que funcionará, portanto, exemplarmente do ponto de vista existencial.

A concluir o capítulo XVII, o das Cheias de Outono (Qiū Shuǐ dìshíqī), assiste-se a um diálogo simbólico entre o filósofo Zhuangzi e o seu grande amigo Huizi (惠子), conhecido na tradição sinológica, da qual o padre Thomas Merton se faz um bom arauto em A Via de Zhuangzi (1999, 126-127), como “A Alegria dos Peixes”, cujo princípio diretriz é o da conectividade comunicante entre todos os seres vivos, o mesmo que norteia um outro episódio, relatado no final do capítulo II, o do filósofo sonhar ser uma borboleta (Zhuangzi, 1999,38-40) .

No capítulo XVII, Zhuangzi afiança ao incrédulo amigo Huizi perceber, ou melhor, intuir perfeitamente a alegria dos peixes, já que ao olhar para eles na ponte do Rio Hao reconhece os sinais que em si mesmo se manifestam quando se sente contente. O amigo Huizi, seguindo uma filosofia racionalizante e separatista, contrapõe que tal é impossível, sendo silenciado pelo pressuposto lógico da comunicação entre toda a natureza. Zhuangzi recorre ao argumento de que é possível estender o diálogo inteligente dos humanos a todos os seres vivos. O filósofo ao ganhar o debate alargou o domínio da linguagem, que passa a incluir a verbal, mas também a visual, muito mais próxima de uma comunicação silenciosa e intuitiva, muito valorizada pela escola taoista, sempre desconfiada de excessos palavrosos e discursivos. E garante, simultaneamente, o primado da conexão, ora visível ora invisível, entre toda a natureza, enraizada no Tao, sendo afinal essa conexão viabilizadora de um fluir de sentimentos entre todos os seres, que conduz à verdadeira alegria, contra o cosmos triste e solipsista defendido em algumas tradições filosóficas racionalistas, cujo primado assenta numa razão incapaz de estabelecer a conexão com o corpo, seja ele individual ou coletivo, como António Damásio teve oportunidade de denunciar em O Erro de Descartes (2011).

Na verdade, o que importa para que a alegria fique garantida, inclusive entre humanos, passa por um alargamento da esfera da sensibilidade, do sentimento de si, ainda pensando em Damásio, ao sentimento dos outros, do reconhecimento da satisfação advinda da profunda conexão entre toda a natureza.

Passe-se então à tradução do diálogo, do chinês tradicional para o contemporâneo e do contemporâneo para o português:

原文 Chinês clássico1

莊子與惠子遊於濠梁之上。莊子曰:“鯈魚2出遊從容,是魚之樂也。”

惠子曰:“子非魚,安知魚之樂?”

莊子曰:“子非我,安知我不知魚之樂?”

惠子曰:“我非子,固不知子矣;子固非魚也,子之不知魚之樂,全矣。”

莊子曰:“請循其本。子曰‘汝安知魚樂’雲者,既已知吾知之而問我,我知之濠上也。”

今译 Chinês contemporâneo

庄子和惠子在濠水桥上游玩。庄子说:“白鲦鱼从容不迫地游来游去,这是鱼的快乐啊!”

惠子说:“您不是鱼,怎么知道鱼是快乐的?”

庄子说:“您不是我,怎么知道我不晓得鱼的快乐?”

惠子说:“我不是您,固然不知道您;您本来也不知道鱼,那么您不知道鱼的快乐, 是完全可以肯定的了。“

庄子说:“请回到原来的话题吧。您说‘您怎么知道鱼的快乐’这句话,就是您已知道我晓得鱼的快乐而来问我的,——我是在濠水桥上知道的啊!”

(Zhuangzi, 1999, 282-3)

Note-se que a Tradução que proponho para Português possui alguma adaptação à nossa língua, por exemplo, recorro a conjunções e locuções conjuntivas para unir orações e evito a repetição de certos verbos, com sentido não-filosófico, de modo a tornar a leitura mais fluída:

Zhuangzi e Huizi estavam a passear na ponte do Rio Hao, quando Zhuangzi disse: “Os peixes nadam calma e despreocupadamente de um lado para o outro, eis a sua alegria!”

Huizi respondeu: “Se não é peixe, como pode conhecer a alegria dos peixes?”

Zhuangzi replicou: “Você não é eu, como pode conhecer que eu não sei da alegria dos peixes?”

Huizi prosseguiu: “Eu não sou o meu amigo, razão pela qual não o conheço, e o senhor também não conhece os peixes, então é mais que certo que não conhece a alegria deles.”

Zhuangzi concluiu: “Vamos voltar à raiz da questão. Proferiu a seguinte oração: ‘como pode conhecer a alegria dos peixes’, então já percebeu que eu sabia da alegria deles, por isso me perguntou, quanto a mim, conheci-a na ponte do Rio Hao!”

Esta ligação espontânea e natural a tudo o que existe é fonte de grande alegria e felicidade, como nos é explicado no capítulo XVIII da obra, intitulado “Felicidade Perfeita”. Aqui se defende o princípio do não-agir (無為/无为 wúwéi), melhor dizendo, da concordância com a natureza, interior e exterior, sem procurar interferir com o mundo que nos rodeia, até porque se o objetivo for alcançar a felicidade, ela não é adquirível por nenhuma das nossas ações que tenham em vista valores materiais ou sociais, normalmente enaltecidos, como sejam a riqueza, as honras, a abundância e, até mesmo, a saúde ou a longevidade; chegámos a este mundo sem ser consultados e partiremos quando for a nossa hora, como bem ilustra o episódio da morte da mulher de Zhuangzi, relatado neste mesmo capítulo. Quando Huizi visita o amigo para lhe apresentar as suas condolências, encontra-o agachado a tamborilar numa bacia e a cantar, numa aceitação clara do destino: Sim, a mulher lhe tinha feito muito boa companhia ao longo de décadas, havia então que aceitar a lei da natureza e não revoltar-se contra a ordem pré-estabelecida, que nos diz haver saúde e doença, riqueza e pobreza, vida e morte num ciclo de eterna transformação. “A felicidade genuína é derivada da ausência de felicidade, assim como a fama perfeita deriva da ausência de fama.” (至樂無樂,至譽無譽 , na versão contemporânea em chinês simplificado, 最大的快乐在于‘无乐’,最高的荣誉在于‘无誉’ (Zhuangzi, 1999, 286).

Ao não-agir, ou melhor, ao não-interferir seguimos os modelos existenciais do Céu claro/clarividente e da Terra tranquila, alcançando assim uma felicidade perfeita e uma imensa alegria em viver:

原文 Chinês clássico

天下是非果未可定也。雖然,無為可以定是非。至樂活身,惟無為幾存。請嘗試言之。天無為以之清,地無為以之寧,故兩無為相合,萬物皆化生。芒乎芴乎,無從出乎?芴乎芒乎,而無有象乎!萬物職職,皆從無為殖。故曰天地無為也而無不為也

今译 Chinês contemporâneo

天下的是非确实还难以下定论。尽管如此,“无为”可以定是非。最大的快乐能存活身心,而只有清静无为才几乎可以存活身心。请让我说说试试看:天“无为”,因而清虚; 地“无为”,因而宁静,天与地这两个无为的合一,才孕育出万物的存在。恍恍惚惚,不知道它们从哪里生出来!恍恍惚惚找不出一点迹象来!万物繁多,都从无为的生态中产生。所以说:“天地无心作为,却没有一样东西不是从它们之中产生出来的。”

(Zhuangzi, 1999, 286)

Proposta de Tradução para Português

É muito difícil distinguir o certo do errado no nosso mundo, apesar disso o “não-agir” pode fazê-lo, sendo esta a maior felicidade. Permitam-me que o diga, o Céu é Clarividente, por causa do seu “não-agir”; a Terra é tranquila, por causa do seu “não-agir”. O não-agir conjugados do Céu e da Terra, conduz à gestação e existência de tudo o que vive, indistintamente, sem que se perceba donde surgiram! Indistintamente, sem vestígios, surgem as miríades de seres, todos criados a partir de um não-agir vital. Por isso se diz que: “o Céu e a Terra criam sem intenção, porém nada fica por gerar.”

E acrescenta-se em jeito conclusivo que este não-interferir do Céu da Terra com a ordem natural dos “dez mil seres” traz grande alegria e até mesmo suprema felicidade na sequência do que é defendido pelo fundador do Taoismo, no capítulo VII do Livro da Via e da Virtude 《道德经•七》3, na tradução de António Graça de Abreu (2013):

天長地久

天地所以能長且久者

以其不自生

故能長生

(… …)

Eternos, Céu e Terra.

Porquê eternos?

Não existem para si próprios,

por isso permanecem para sempre.

(…)

(Abreu, 2013, 40-41)

Bibliografia

Abreu, António Graça de (trad.). 2013. Livro da Via e da Virtude. Tao Te Ching.道德经. Lisboa: Nova Vega.

Damásio, António. 2011. O Erro de Descartes. Emoção, Razão e Cérebro Humano. Lisboa:Temas e Debates.

Merton, Thomas. 1999. A Via de Chuang Tzu. Petrópolis: Editora Vozes.

Qin Xuqing (秦旭卿), Sun Yongchang (孙雍长) (Trad Chinês Contemporâneo),Wang Rongpei() (汪榕培Trad. Inglês). 1999. Zhuangzi 庄子. Vol I e II. Hunan, Beijing, Hunan People´s Publishing House, Foreign Languages Press.

Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo que as opiniões expressas no artigo são da inteira responsabilidade dos autores. https://www.cccm.gov.pt/

Os textos da presente edição mantêm a estrutura clássica, mas em chinês simplificado, no entanto, por uma questão de coerência temporal, os textos deste artigo terão chinês tradicional a acompanhar a estrutura clássica, enquanto que os de estrutura contemporânea serão apresentados em chinês simplificado, seguindo a edição sem quaisquer alterações.

Um tipo de peixe muito vulgar nas águas dos rios da China, cujo nome científico é Leuciscus macropus.

Os sinogramas do texto apresentado por Graça de Abreu foram convertidos para chinês tradicional, tal como sucedeu com a edição de Zhuangzi.

3 Mar 2025

Histórias da Música Chinesa

Ana Cristina Alves, Coordenadora do Serviço Educativo do CCCCM

Fevereiro de 2025

Diz a tradição chinesa que as obras clássicas da cultura não eram apenas quatro livros: os Analectos (《論語/1论语》Lúnyǔ), o Livro de Mâncio (《孟子》Mèngzǐ), o Grande Estudo (《大學/大学》Dàxué) e a Doutrina do Meio (《中庸》Zhōngyōng)] , e cinco clássicos: O Clássico das Mutações (《易經易经》Yì jīng), O Livro das Odes (《詩經诗经》Shījīng), A História (《史記/太史公記//史记/太史公记》Shǐjì/tàishǐ gōngjì), Os Ritos (《禮記礼记》Lǐjì), Os Anais da Primavera e do Outono (《春秋》Chūnqiū)), mas quatro livros e seis clássicos, porque havia mais um relativo à música (樂經/乐经) Yuè Jīng, que entretanto se perdeu.

No entanto, a “música” (樂/乐 yuè) é tão importante para os chineses que o seu sinograma se confunde na forma escrita com o de “alegria” (樂/乐 lè). Do ponto de vista etimológico, é o pictograma de um instrumento musical, cuja base representa a parte de madeira e o topo as cordas do mesmo. Este, pela satisfação que suscita quando é tocado, servirá por extensão de sentido para figurar o sinograma da alegria.

A música antes de pertencer à humanidade, depende das divindades da religião animista popular chinesa e de forças naturais como o vento ou seres biológicos como os pássaros, ou mitológicos como as fénices. Sabe-se que o Imperador Amarelo (黄帝Huángdì), governou numa antiguidade mítica a que remonta a civilização chinesa organizada. Mas este, segundo um dos grandes filósofos taoistas da antiguidade chinesa, Lie Yukou (列御寇Liè Yùkòu”) em obra homónima Liezi (列子“lièzǐ·) coloca o imperador a realizar viagens espirituais nas quais encontra divindades femininas dos tempos matriarcais, como Huaxu (華胥/华胥Huáxū),mãe do primeiro imperador chinês Fuxi(伏羲Fúxī) e, portanto, matriarca ancestral de todos os chineses ou, ainda, a Mãe e/ou Mulher Misteriosa do Nono Céu (九天聖(圣)母/九天玄女 Jiǔtiān shèngmǔ/jiǔtiān xuánnǚ),que lhe terão ensinado muito, inclusive no caso desta última a apreciar música, poesia, tendo sido também iniciado por ela, que possuía rosto humano e corpo de fénix, nas artes do amor.

Quanto à fénix é a ave que simboliza a vida eterna e a paz; ao renascer das próprias cinzas, transporta a esperança de seres inteiros, renovados e pacíficos, já que apenas surge no mundo em tempos de tranquilidade e harmonia. Mas também se encontra em estreita relação com a música, porque é um pássaro mitológico que canta, tal como o vento, cujo som é composto para os chineses pelo melodioso bater das asas das aves, quando se trata de brisa, ou pelo alvoroçado batimento das mesmas em tempestade.

Linglun (伶倫/伶伦Líng Lún) criou os doze tons na sequência de um pedido do Imperador Amarelo, que depois de devidamente educado e treinado o seu ouvido musical pela Mulher Misteriosa do Nono Céu, se aborrecia nas viagens de inspeção pela terra com a monotonia das melodias. Este grande músico apressou-se a cumprir ordens e entregou-se de alma e coração a escutar todos os sons da natureza para obter a inspiração requerida à missão. Mas foi na Montanha sagrada Kunlun (崑崙山/昆仑山 Kūnlún shān) que ele obteve a iluminação necessária para a criação dos doze tons por recurso a doze tubos de bambu. Como verificou ele tratar-se dos tons certos? “Carregando os doze tubos de bambu, Linglun chegou ao sopé da montanha Kunlun para ouvir o canto das fénix. Quando as aves cantavam, o macho dava seis gritos e a fêmea respondia-lhes com outros seis. Linglun comparou os doze gritos com os seus sons e constatou que havia uma correspondência perfeita entre eles.” (Wang e Alves, 2009, 48)

Tinha atingido o seu objetivo. Já os tons seguiam o modelo dos das fénices, quando apresentou a sua criação ao Imperador Amarelo, tendo sido justamente recompensado com o título de Deus da Música [音樂(乐)之神 Yīnyuè zhī Shén] e o mundo desde então encheu-se das mais belas melodias.

Passando agora para a filosofia, o cosmos encarado como um misterioso instrumento musical é uma das metáforas preferidas de um dos grandes filósofos taoistas, o Príncipe de Huainan, Liu An [劉(刘)安Liú’ān, 179?-122 a.C] que nos deixa uma obra dos primórdios da dinastia Han, intitulada Huainanzi (《淮南子》Huáinánzǐ). A obra é conhecida na tradição chinesa também com o título de (《淮南子鴻烈》Huáinánzǐ Hóngliè), cujo significado é “A Luz Irradiante do Mestre Huainan”, tendo sido o sexto capítulo traduzido pelo sinólogo canadiano Charles Le Blanc, sob o título Huainanzi 淮南子 Philosophical Synthesis in Early Han Thought, contendo o sugestivo subtítulo The Idea of Resonance (Kan-Ying 感應) with a Translation and Analysis of Chapter six.

Supor que todo o universo se encontra ligado, à maneira das cordas de um instrumento, a espalhar o som, a ecoar e ressoar quando se toca numa das cordas, terá a sua contrapartida ocidental no misticismo do filósofo pré-socrático Pitágoras e no seu pressuposto da “música das esferas”, ou seja, da melodia produzida pelos astros nas suas trajetórias celestiais.

Voltando ao Mestre de Huainan, é-se informado na secção II das IX do sexto capítulo, que “A Mútua resposta das coisas pertencendo à mesma categoria é profundamente misteriosa e extremamente subtil” (Blanc, 1985, 116), à qual corresponde o texto original se encontra no Apêndice 1 (Blanc, 1985, 221-215): “夫物類之相應玄妙深微知不能論” (6/ 3a.5)2 . Estas linhas podem ser explicadas por recurso a um outro postulado, “a mútua influência do Qì espiritual 3 (天神氣 Shén Qì)” “”(6/4a. 1 ), cuja ação visível se manifesta na semelhança das formas exteriores das coisas, mas também no jogo complementar das forças feminina e masculina que as torna criativas e transformantes, sendo que a ação superior, tal como acreditam os taoistas, é baseada na resposta mútua invisível e silenciosa (相應Xiāngyìng), ou seja, não discursiva, o que não obsta a que seja intuitiva e melodiosa.

A mútua ressonância é sustentada por um jogo complementar das energias Yin (陰/阴Yīn) e Yang (陽/阳Yáng) aos mais variados níveis, guiado pelo princípio da causalidade, que tanto age entre seres semelhantes, como nos diferentes, porque surge o Qì a viabilizar e unir o que é distinto, numa ressonância perfeita, de modo a figurar o cosmos como Taiji ou “Supremo Último” (太极/太極Tàijí) . Desta forma, se alcança a secção IV do capítulo VI, onde é exposta a ressonância musical (6/6b.9-11), que funciona metaforicamente para introduzir a ressonância universal, implicando uma “Grande imersão” na “Suprema Harmonia”, impossível de explicar (Blanc, 1985, 138). É-nos dito que um afinador de sè (瑟), um instrumento de cordas chinês com 25 cordas (recordando vagamente um alaúde árabe), ao tocar numa corda, obterá a resposta em mútua harmonia de uma mesma corda num outro instrumento. Porém “se alguém mudar a afinação de uma corda de modo a que não responda a qualquer das cinco notas, mas ao tocá-la obtenha uma ressonância com as 25 cordas, então há uma diferença no que respeita ao som, sucedendo que foi evocado aquele a governar todos os outros.” (Ibidem) “改調一弦其於無音無所比鼓之而二十五弦皆應此未始”(6/6a.11).

O sábio, santo ou supremo músico será aquele que consegue colocar-se em ligação intuitiva direta com o Tao (道 Dào), sem que ele próprio possa fornecer as razões para tal. Mergulha no mundo numenal, brinca e mistura essências, transforma-se no que quiser e vive em ressonância mútua, musical absoluta e total, com tudo o que existe, e não apenas de um modo relativo com o seu “semelhante”.

Há uma história musicada para guqin (古琴gǔqín), um outro instrumento de cordas chinês, com sete cordas, contada pelo filósofo taoista Liezi no capítulo da obra homónima anteriormente mencionado, Imperador Amarelo, 11ª secção, (《列子·黄帝》第十一部分Lièzǐ·Huángdì” dì shíyī bùfèn), que ilustra bem esta ressonância universal, mais fácil de obter a quem tem uma mente espontânea, como sucede às crianças, sendo que como nos recorda o fundador o Taoismo Laozi (老子Lǎozǐ), o coração-mente (心 xīn ) perfeito é a de um recém-nascido. Na história de que a seguir apresento a minha tradução, o protagonista é um rapaz com os quais os pássaros brincam naturalmente, mas quando o pai deste lhe pede para capturar um deles, a fim de também ele se entreter, as aves distanciam-se, por isso a partitura para guqin se intitula “O distanciamento das Corujas de Água” 《鷗鷺忘機/鸥鹭忘机》Ōu lù wàng jī 4 https://www.youtube.com/watch?v=KGte7WzUt1Y

原文 Texto original (Chinês clássico)

海上之人有好漚鳥者,每旦之海上,從漚鳥遊,漚鳥之至者百住而不止。其父曰:「吾聞漚鳥皆從汝遊,汝取來,吾玩之。」明日之海上,漚鳥舞而不下也。故曰:至言去言,至為無為。齊智之所知,則淺矣。5

Chinês contemporâneo

海边有个喜欢鸥鸟的人,每天早上到海上去,跟鸥鸟玩耍,鸥鸟来玩的有成百只以上。他父亲说:“我听说鸥鸟都爱跟你游玩,你抓一只来,我玩玩。”第二天他来到海上,鸥鸟都在空中飞翔而不下来。所以说:“最好的语言是没有语言,最高的作为是没有作为。同别人比试智慧的想法,那是很浅陋的。

Havia perto do mar um rapaz que muito gostava de corujas de água. Todos os dias, costumava passear à beira-mar onde brincava com as aves, mais de cem. Certa vez, o pai comentou: “Ouvi dizer que as corujas de água costumam brincar contigo, agarra uma para mim, a fim de que eu também me possa entreter com elas. ” Na manhã seguinte, à beira-mar, as aves dançavam sobre a cabeça dele, mas não se aproximaram. Por esta razão se diz: “o melhor discurso é sem palavras, a melhor ação é não-agir. Se a sabedoria se pode comparar, então é superficial!”

Referências Bibliográficas

Alves, Ana Cristina. 2022. “Mãe Misteriosa do Nono Céu 九天玄母 jiǔtiān xuán mǔ” Visitações. Fafe: Labirinto.

Baidu. 2025.《列子·黄帝》(Imperador Amarelo, in Liezi) Disponível em: https://baike.baidu.com/item/%E5%88%97%E5%AD%90%C2%B7%E9%BB%84%E5%B8%9D/8828591#1-1, acedido a 31 de janeiro de 2025.

Bessada, Dennis. 2014. “A Gênese da Harmonia das Esferas do Antigo Pitagorismo”. Revista Música 14(1):85. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/312106396_A_Genese_da_Harmonia_das_Esferas_no_Antigo_Pitagorismo, acedido a 5 de fevereiro de 2025.

Blanc, Charles Le (Org. e Trad). 1985. Huainanzi 淮南子 Philosophical Synthesis in Early Han Thought. The Idea of Resonance (Kan-Ying 感應) with a Translation and Analysis of Chapter six. Hong Kong: Hong Kong University Press.

《鸥鹭忘机》(O Distanciamento das Corujas de Água). Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=KGte7WzUt1Y, acedido a 5 de fevereiro de 2025.

Wang Suoying, Ana Cristina Alves. 2009. “Linglun cria os doze tons伶伦作十二乐律Líng lún zuò shí’èr yuèlǜ” Mitos e Lendas da Terra do Dragão. Lisboa; Caminho.

Os títulos relativos obras clássicas e/ou sinogramas antigos são apresentados em chinês tradicional e contemporâneo para que se possa analisar a evolução da língua no seu percurso rumo à simplificação.

A numeração é diferente no texto traduzido por Charles Le Blanc e no original, razão pela qual surgem duas numerações neste artigo, sendo a do tradutor identificada com a citação que segue o sistema de referências bibliográficas autor-data e o texto original com a numeração do manuscrito chinês da edição de Liu Wen-tien.

Procedeu-se à padronização da fonética chinesa pelo sistema Pinyin (拼音 Pīnyīn), adotado na República Popular da China.

“O distanciamento das Corujas de Água” é uma música para guqin, composta pelo músico da dinastia Song Liu Zhifang (宋代刘志芳). A partitura, que se teve o privilégio de escutar no CCCM pela professora e música Du Wanzhen (杜婉贞) em finais de 2024, foi pela primeira vez publicada por Zhu Quan da dinastia Ming (明代朱权), na edição das “Partituras Secretas Mágicas” (《神奇秘谱》). Esta peça antiga, que chegou aos nossos dias, demonstra os esquemas e cálculos humanos não funcionarem com os pássaros, mas apenas a livre espontânea brincadeira.

O texto clássico foi convertido para chinês tradicional.

Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo que as opiniões expressas no artigo são da inteira responsabilidade dos autores. https://www.cccm.gov.pt/

12 Fev 2025

Histórias da Serpente

Ana Cristina Alves, Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM 2025

29 de janeiro de 2025

Para conhecer mais a fundo a natureza de serpente de Madeira Yin (乙巳蛇Yǐ Sì Shé ), será conveniente analisar as histórias relativas a este réptil do sexto ramo terrestre em estreita associação com o princípio feminino.

A ela surge intimamente associada a divindade matriarcal Nϋwa (女娲Nǚwā) nos seguintes mitos “Nϋwa cria os Seres Humanos” (女娲造人Nǚwā zào rén) e “Nϋwa remenda o Céu” (女娲补天Nǚwā bǔ tiān). Nos mitos a divindade surge sozinha, completa em si mesma, como uma força criativa, no primeiro mito, e como uma força regeneradora e construtiva, no segundo, ao remendar o céu.

Enquanto mãe da humanidade, Nϋwa lembrou-se de o ser na sequência de uma visita à terra, tendo primeiro criado os animais, mas como ainda sentisse uma profunda solidão, decidiu gerar ainda os seres humanos: pôde fazê-lo por conter uma poderosa energia anímica, manifestada na sua qualidade de ser celestial, cuja aparência física se distinguia, porque embora tivesse cabeça humana, possuía corpo de serpente. Gerou espontaneamente com a ajuda do barro, ou seja, da terra, elemento ao qual se encontra indissoluvelmente ligada, seja no mundo subterrâneo, em poços, seja na água, seja na sua ágil escalada pelas montanhas e árvores numa busca instintiva da ascensão celestial.

É ainda esta mesma figura com corpo de serpente que vai repor a ordem na terra, quando ela mergulha no caos, na sequência de forças titânicas digladiantes, pois nalgumas versões se afirma que Nϋwa remendou o Céu após o Deus da Água do Norte, Gonggong ter atirado a cabeça contra Buzhoushan (共工怒触不周山 Gònggōng nù chù Bùzhōushān), num ataque de fúria contra o Imperador Celestial do Norte, Zhuanxu (颛顼 Zhuānxū), na sequência da derrota infligida por este.

O modo como Nϋwa remendou o Céu, o cuidado que colocou em reerguer os seus pilares, firmando-os com o auxílio de pedras, cujas cores (verdes, amarelas, brancas, azuis escuras e vermelhas) indicam a presença dos cinco elementos, essenciais à vida, bem como a fundamentação dos mesmos erguidos sobre as patas de uma tartaruga negra, a fim de garantir a sua longevidade senão mesmo a eternidade; o precioso auxílio que concedeu à humanidade no combate às feras que na barafunda do desabamento pululavam, as obras de drenagem que então efetuou, transformaram esta divindade com corpo de serpente num dos fundamentos da cultura religiosa e civilização chinesas.

De notar é a poderosa ambivalência deste réptil, já que se Nϋwa ostentava corpo de serpente, Gonggong, o furibundo Deus da Água, é descrito com idêntico corpo de serpente, senão veja-se como surge retratado em “Gonggong atira a cabeça contra Buzhoushan: “Gonggong era descendente de Yandi. Tinha corpo de serpente, rosto e membros humanos, além de cabelos ruivos, que indicavam o seu carácter fogoso, enérgico e inflexível” (Wang, Alves, 2009: 54).

As serpentes possuem veneno, que tanto cura como mata, podendo transformar-se, pela sua imensa capacidade de mutação, em excelentes humanos como no caso da Serpente Branga (白娘子 Bái Niángzi ), até em Pequenos Dragões (小龙 Xiǎolóng),ao desenvolverem a faceta generosa e meditativa, quando se ligam e defendem valores superiores, como o amor, na famosa lenda que nos chegou, por exemplo, através de Zhao Qingge (赵清阁) em 《白蛇传》(Bái Shé Zhuàn) .

Porém, pela sua força, capacidade e inteligência podem entrar em conflito como na história da literatura popular “Discussão entre a Serpente e o Sol”, que talvez pudesse encontrar equivalente cultural na competição da fábula de Esopo “O vento e o Sol”. Em “A Serpente discute com o Sol” (蛇与太阳的争吵) há uma óbvia rivalidade entre o sol, representante do elemento masculino Yang, belo, brilhante, quente e poderoso e a serpente, que igualmente portentosa, se considera o máximo poder da terra.

Esta desafia o sol, começando um conflito entre o poder das forças misteriosas e ocultas lunares, representadas pela serpente, e o esplendoroso brilho irradiante da energia solar. Por fim a fábula termina não com a vitória do sol, à maneira de Esopo, mas com a necessidade do reconhecimento da complementaridade, pois sem a alternância da noite e do dia, do sol e da sombra, do calor e do frio o mundo, como os chineses o entendem (baseado nesta harmonia tensional) não seria nem estaria completo. Moral da história: se não houvesse sol, seria a morte da terra, pois mergulharia numa noite infinita, se não existissem serpentes, seria igualmente o fim do mundo, porque não haveria nem agilidade, nem capacidade de transformação, mergulhando “tudo aquilo que existe debaixo do Céu” (天下 tiānxià) numa imensa rigidez e monotonia.

A serpente, enquanto sexto ramo terrestre do zodíaco chinês (十二生肖蛇 shí´èr shēngxiào) simboliza ainda o animal engenhoso, que, devido à sua poderosa inteligência, é capaz de arquitetar e realizar um plano bem calculado. Tal é provado pela sua biografia ao entrar na corrida celestial promovida pelo Imperador de Jade (玉皇大帝Yù Huáng Dàdì).

A serpente e o dragão costumavam ser bons companheiros e partilhar os mesmos espaços aquáticos, quando se soube da intenção do imperador de organizar uma competição a fim de que doze animais pudessem comandar as estrelas e os destinos dos humanos. Dada a poderosa inteligência do réptil, este percebeu que não tinha hipótese nem rapidez para superar o dragão, mas como sabia fazer bons cálculos e melhores planos, trepou discretamente para as costas do cavalo, sem que este notasse que estava a transportar um rival, perto da meta saltou de modo a posicionar-se à frente do equídeo, e assim foi, mantendo-se ambos bons amigos até aos nossos dias, já que o cavalo, sempre generoso, nunca lhe cobrou a boleia. Para os chineses, a serpente simboliza “um potente e vitorioso engenho” (以巧胜力 yǐ qiǎo shènglì).

Uma outra história chama a atenção para a importância do perdão no processo ascético da serpente rumo à transformação em Pequeno Dragão: “A Serpente e o Agricultor”(蛇与农夫 Shé yǔ nóngfū). Num inverno rigoroso, certo agricultor foi dar com uma serpente enregelada. Apiedando-se dela, levou-o para casa, colocando-a num lugar aquecido. Quando esta recuperou as forças, em lugar de agradecer pelo facto de ter sido salva, atacou o pobre homem desprevenido, com o objetivo de o ferir. Este, evitando a tempo ser mordido e reprimindo a fúria, chamou o réptil à razão com toda a calma, perguntando-lhe se era assim que ele tratava um amigo que lhe tinha salvado a vida. A serpente, tocada pela comprovada bondade do agricultor, nunca mais o atacou. Moral da história que os chineses contam às suas crianças: a bondade compensa, podendo salvar não apenas corpos como almas.

A serpente simboliza a divindade “guardiã dos tesouros da terra” em 蛇守护宝藏 (Shé shŏuhù bǎozàng), encontrando-se na entrada de grutas a velar pelas infinitas riquezas. As guardiãs são gigantescas, dotadas de uma força prodigiosa, mas também de uma sabedoria profunda e misteriosa. Quem tente penetrar numa dessas grutas, não o conseguirá por mais força que tenha. Apenas alguém muito especial, de espírito heroico e munido de sabedoria virtuosa passará a prova, sendo-lhe proporcionado o acesso aos tesouros da terra, não para usufruto próprio, mas para benefício da comunidade e/ou humanidade.

Termino com a minha tradução de uma outra história popular, intitulada “Serpente Branca, Serpente Negra”( 白蛇与黑蛇 Bái Shé Yǔ Hēi Shé), que apresenta e resume e necessidade de os dois princípios, o Yin e o Yang, operarem sempre em equilíbrio, sendo a serpente negra, representante Yin da força misteriosa e lunar e a branca, simbolizando a irradiante força energia Yang, seu contraponto.

很久以前,在一座隐秘的山中,有两条神蛇——白蛇与黑蛇。白蛇象征纯洁与善良,生活在阳光明媚的山顶,守护着清澈的溪流与花草;黑蛇则代表力量与神秘,栖息在幽暗的山谷,掌控着风暴与黑夜。

一天,一场大旱袭击了山谷,水源枯竭。白蛇认为,只有靠善行和祈愿才能带来水,而黑蛇则主张用力量召唤风暴来解决问题。两蛇因此争执不休,各自施展法力,山中风暴与烈阳交替,导致自然失衡,生灵涂炭。在看到生灵的痛苦后,白蛇与黑蛇意识到,单靠善良或力量都无法真正拯救山林。它们最终联手,白蛇用其善念唤来生命的春雨,黑蛇用其力量引导水流重回山谷,山林恢复生机,两蛇也化作山中的守护灵。 (https://www.lingoace.com/zh/blog/story-for-the-year-of-snake/)

Certa vez, abateu-se uma grande seca sobre o vale, esgotando todas as fontes e reservas de água que aí existiam. A Serpente Branca acreditava bastar o poder da sua boa ação e orações para que a água regressasse, enquanto que a Serpente Negra defendia que só pela invocação da força das tempestades se resolveria a questão. As duas serpentes discutiam sem parar, cada qual exibindo e exercendo as suas capacidades, ora com violentas tempestades, ora com sois escaldantes. Tal situação conduzia à perda do equilíbrio na natureza e ao miserável sofrimento dos seres vivos. Quando ambas viram o que eles estavam a padecer, perceberam que se apenas dependessem da força benfazeja do sol ou da das borrascas, não teriam como salvar aquela região montanhosa. Por fim, conjugaram esforços. A Serpente Branca invocou a energia vital da chuva primaveril e a Serpente Negra empregou a sua força para deixar fluir as águas pelos vales e montanhas de modo a recuperar a vida. E foi assim que as duas serpentes se transformaram nos espíritos guardiões da montanha.

Referências Bibliográficas

LingoAce新媒体团队.2024. 蛇年文化故事:给孩子讲述的10个有趣传说.Disponível em:

https://www.lingoace.com/zh/blog/story-for-the-year-of-snake/ , acedido a 17 de janeiro de 2025.

“O Vento e o Sol” Antologia Porventura, com World press. Disonível em: https://antologiaporventura.wordpress.com/2013/09/02/o-vento-e-o-sol-fabula-de-esopo/, 9 de fevereiro de 2013, acedido a 30 de janeiro de 2025.

Wang Suoying, Ana Cristina Alves. 2009. “A História da Serpente Branca”, in Mitos e Lendas da Terra do Dragão, Lisboa: Caminho.

Zhao Qingge (赵清阁) .1998. The Legend of White Snake. Beijing (北京): New World Press (新世界出版社).

4 Fev 2025

Serpente, o animal astral chinês de 2025

Ana Cristina Alves,
Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM
10.1.2025

 

O Ano de 2025 será comandado pela Serpente de Madeira Yin (乙巳蛇Yǐ sì shé), quer dizer, do sexto ramo terrestre, do elemento Madeira ligado ao princípio feminino, portanto à força lunar, misteriosa e intuitiva. Começa, em termos oficiais do calendário lunissolar, a 29 de janeiro de 2025 e termina a 16 de fevereiro de 2026, mas para a geomancia ou fengshui (风水 fēngshuǐ) o ano só inaugura a 3 de fevereiro na primeira primavera, lichun (立春lìchūn). Este ano, do ponto de vista das bênçãos telúricas, será particularmente agraciado porque terá duas primaveras, contando com uma segunda lichun a 4 de fevereiro de 2026.

E como para os Descendentes do Dragão “as coisas boas vêm aos pares” (好事成双 hǎo shì chéng shuāng), promete boa agricultura e fertilidade, sendo igualmente propício à meditação e ao contacto com a natureza, mas também aos contactos sociais, porque a Serpente de Madeira, dado o seu elemento, é a mais comunicativa, criativa, amigável e favorável aos relacionamentos entre estes répteis. Além disso, este tipo de Madeira define-se por ser trabalhador, honesto e popular, nem sempre é logo reconhecido, pelo que traz como aliada a virtude da perseverança, que lhe dá o reconhecimento dos seus esforços ao longo do tempo.

Ela é “a serpente que sai do buraco” (Kwok, 1997, 67). Pertence-lhe o período horário entre as 9h e as 11h da manhã. Embora o seu elemento fixo seja o fogo, como por exemplo, a madeira o é do tigre, e a sua cor constante seja, de acordo com o elemento, o vermelho, em 2025 predominará o verde, associado à Madeira.

A serpente é o símbolo sexual mais forte e, por isso, nas filosofias yóguicas indianas da linha tântrica, que se estendem por toda a Ásia e, em particular pelo sudeste asiático, ela é kundalini, como bem chamou a atenção C.G. Jung em The Psychology of Kundalini Yoga. Notes to a Seminar Given in 1932.

Como se relacionam os chineses com a força vital da serpente? De início eram bastante espontâneos, tinham uma filosofia animista que evoluiu para o taoismo popular, mas é preciso não esquecer que também desde muito cedo, a partir de Confúcio e do estabelecimento do Confucionismo, e de uma maneira sistemática desde os tempos Han, tem havido nesta cultura uma grande determinação para se controlarem as energias naturais. Esta tendência redobrou com a aceitação da filosofia budista, inicialmente muito distante das vivências naturais e tântricas.

Durante os tempos da última dinastia Qing, as vivências religiosas ligadas ao Budismo intensificaram-se e, como tal, o conflito entre as forças naturais e espirituais tornou-se manifesto, abrindo uma guerra semelhante à que assistimos no Cristianismo, com Eva e Adão a serem expulsos do Paraíso por causa de uma supostamente famigerada serpente.

A guerra aberta entre as forças naturais e da religião formal ficaria registada ainda na literatura chinesa, numa das histórias de amor mais pungentes, intitulada A Serpente Branca (《白蛇传》Bái Shé Zhuàn), também conhecida pelo nome dos seus protagonistas Xu Xian (许仙Xǔ Xiān) e Bai Niangzi(白娘子Bái Niángzi), que atingiu o apogeu da poularidade durante a dinastia Qing.

Nela os amantes são irremediavelmente perseguidos por um bonzo budista, que lhes destrói a felicidade ao insistir para que Xu Xian (许仙) se afaste da Bai Niangzi (白娘子), já que ela era uma serpente encantada.

Omitido pelo bonzo ficaria o esforço de meditação que levou a serpente a transfigurar-se em forma humana.
O que o bonzo budista não via, como ainda muitos religiosos cristãos não conseguem perceber, é que na face exterior do que parece ser transgressão se esconde uma força natural e espontânea estreitamente ligada à mente de quem lida com ela. Para uma mente pura, a força natural nada tem de impuro, para uma mente turva, a força é, na versão ocidental, pecado, e na oriental poder negativo e demoníaco.

A força da serpente é completa em si própria. Nada há a acrescentar-lhe. A atestar a sua perfeita completude, há uma história proverbial muito contada, Desenhar Pés à Serpente (畫/画蛇添足Huà Shé Tiān Zú) , frequentemente encurtada na expressão Os Pés da Serpente (Shé Zú蛇足).

古时候,楚国有一家人,祭完祖之后,准备将祭祀用的一壶酒,赏给帮忙办事的人喝。帮忙办事的人很多,这壶酒如果大家都喝是不够的,若是让一个人喝,那能喝得有余。这一壶酒到底怎么分呢?大家都安静下来,这时有人建议:每个人在地上画一条蛇,谁画得快,这壶酒就归他喝。大家都认为这个方法好,都同意这样做。于是,在地上画起蛇来。
有个人画得很快,一转眼最先画好了,他就端起酒壶要喝酒。但是他回头看看别人,还都没有画好呢。心里想:他们画得真慢。他洋洋得意地说:“你们画得好慢啊!我再给蛇画几只脚也不算晚呢!”于是,他便左手提着酒壶,右手给蛇画起脚来。正在他一边给蛇画脚,一边说话的时候,另外一个人已经画好了。那个人马上把酒壶从他手里夺过去,说:“你见过蛇吗?蛇是没有脚的,你为什么要给它添上脚呢?所以第一个画好蛇的人不是你,而是我了!”那个人说罢就仰起头来,咕咚咕咚把酒喝下去了。

Eis a minha tradução:

Nos tempos antigos, no Reino Chu (楚國/国Chǔ Guó), havia um Senhor feudal que após ter prestado as devidas libações rituais aos antepassados, ainda lhe sobrou um jarro de vinho, que pensou distribuir pelos empregados. Mas como estes eram muitos, o vinho não chegava para todos, porém para um seria mais do que suficiente. Afinal como havia de ser partilhado? Para que se acalmassem um deles sugeriu: “cada um vai desenhar uma serpente no chão, o que terminar primeiro, obterá o jarro de vinho.” Todos concordaram com a ideia e assim começaram a desenhar. Havia um que estava cheio de vontade de o beber, por isso despachou o desenho num abrir e fechar de olhos.

Ao olhar para os outros, viu que ainda não tinham acabado, pelo que pensou que eram muito vagarosos e disse triunfalmente: “Vocês são tão lentos que até tenho tempo para acrescentar pés à serpente!” Então, enquanto agarrava com a mão esquerda no jarro, com a direita acrescentou os pés ao réptil. Na altura em que estava a desenhar-lhe os pés e a falar, um outro terminou o seu desenho; arrebatando-lhe o jarro da mão, disse: “já viste alguma serpente? Se não têm pés por que lhos acrescentaste?!Por isso, o primeiro a desenhar uma serpente não és tu, mas sim eu.” Ao acabar de falar, levantou a cabeça e gluglu emborcou o vinho.

Num equivalente estilístico para Português, o primeiro vencedor tinha borrado a pintura. Numa leitura ontológica, nada há a acrescentar a uma força completa em si mesma. Logo, este dito é usado para mostrar alguém a fazer algo de supérfluo.

Quando a serpente pretende ser outra, tem aberto o caminho da metamorfose, semelhante ao do bicho da seda e da borboleta.

Os chineses estão bem conscientes do poder da Serpente (shé 蛇), cuja leitura etimológica é o verme radicalmente outro, o bicho, a força antitética da civilizada. Esta energia natural imensa foi rebatizada como Pequeno Dragão (小龙 Xiǎo Lóng) para dar espaço ao réptil a se cultivar e exercitar na via espiritual, num percurso interior do corpo à mente, sem, contudo, perder as suas raízes telúricas. A serpente rasteja na terra, se conseguir erguer-se aos céus como um dragão voador, realiza a união das duas forças primordiais do universo, a do Céu e a da Terra, no interior do corpo humano e no exterior do corpo cósmico.

Referências bibliográficas

Baidu. 2025.“画蛇添足” Baidu. Baike. Disponível em: https://baike.baidu.com/item/%E7%94%BB%E8%9B%87%E6%B7%BB%E8%B6%B3/463357, acedido a 10 de janeiro de 2025.
Jung C.G. 1932. The Psychology of Kundalini Yoga. Notes to a Seminar Given in 1932. Ed. Sonu Shamdasani, Princeton: Princeton University Press.
Kwok, Man-Ho. 1997. Chinese Astrology. Forecast your Future from your Chinese Horoscope. Singapura: Asiapac Books.
Revista Circuito (Redação). “2025 é o Ano da Serpente no Calendário Chinês. A Energia Predominante será a da Madeira Yin”. Revista Circuito. Disponível em: https://www.revistacircuitcom/2025-e-o-ano-da-serpente-no-calendario-chines/, 10 de janeiro de 2025, acedido nesta data.
Wang Suoying, Ana Cristina Alves. 2009. “A História da Serpente Branca”, in Mitos e Lendas da Terra do Dragão, Lisboa: Caminho.
Zhao Qingge (赵清阁) .1998. The Legend of White Snake. Beijing (北京): New World Press (新世界出版社)

14 Jan 2025

Encontros e desencontros proverbiais em torno das noções de abertura e fechamento

Coordenadora do Serviço Educativo do Centro Científico e Cultural de Macau

A filosofia comparativa pode usufruir de vasta colheita caso se dedique ao campo proverbial. Aqui se encontram pontos de vista que podem contribuir não apenas para a filosofia como para os estudos de imagologia e os de psicologia social, através da observação atenta das mentalidades.

É interessante notar a semelhança de perceção tanto por parte dos portugueses como dos chineses relativamente ao modo como são aproveitados os talentos de ambas as terras. Muitos em Portugal queixam-se de serem mal aproveitados, de verem os seus filhos partirem rumo à emigração por falta de oportunidades no país, já que “santos de casa não fazem milagres” e, por isso, é bem melhor ser-se profeta em terra alheia, porque “nenhum profeta é bem recebido em sua pátria” (Lc 4,21-30), sendo que a expressão remonta aos tempos bíblicos e à explicação oferecida por Jesus por não fazer milagres em Nazaré. Coincidentemente, os chineses possuem uma expressão proverbial de 4 caracteres e longa história, um chengyu, (成语chéngyǔ), que remete para os Anais da Primavera e do Outono (春秋), um dos cinco clássicos da filosofia confucionista, especificamente ao mais conhecido dos seus comentários, Comentário de Zuo e ao 26º ano do Duque de Xiang《左传 襄公二十六年》(Zuǒ chuán xiānggōng èrshíliù nián), no qual se diz literalmente que “Os talentos de Chu são criados neste reino, mas aproveitados por um outro reino, o de Jin” ( 楚材晋用chǔ cái jìn yòng). Fica a ideia de que os oficiais de Jin não são tão talentosos como os de Chu, mas talvez sejam mais espertos, porque pelo menos são capazes de tirar partido dos de fora. Coloca-se aqui uma questão interessante, em termos de certas categorias espaciais com as quais estruturamos o nosso pensamento e nos posicionamos no mundo, são estas as de “dentro” e “fora”, bem como as correlativas de “proximidade” e “distância”, que conduzem às noções de “abertura” e “fechamento”. Parece mais fácil compreender e aceitar, no que respeita ao talento, o que é exterior, está mais longe e, de algum modo, interpela e incomoda menos.

Mas se estes pares conceptuais funcionam bem quando aplicados a seres especiais, talentos, profetas, gente fora de série, a verdade é que sofrem uma grande alteração de sentido se a coletividade passar a ser perspetivada como norma ou padrão. Aí há uma tendência para proteger os “de dentro” contra os “de fora”, que são muitas vezes encarados como perigosos e disruptivos, na cultura e civilização chinesas, a atender à abundância de provérbios relativos aos “de fora”. Já nos Ritos de Zhou 《周礼》, obra datada de meados do século II a.C, se chama a atenção para a necessidade de questionar sobre os perigos para o país, as migrações e o governante no poder, mas especialmente para o cuidado com “as migrações e necessidades de planeamento” (询迁询谋xún qiān xún móu), nem todas as mexidas e movimentações relativas ao “dentro” ao status quo, ou ordem estabelecida, são boas, mas podem ser proveitosas se no relacionamento do “dentro” com o “fora”, os primeiros não se deixarem contaminar pelos segundos e retirarem o melhor partido destes. E aqui mais uma vez portugueses e chineses concordam, em termos proverbiais, no que se refere a lisonjear ou enganar os estrangeiros em proveito próprio, por exemplo, nós portugueses e brasileiros ludibriando os nossos mais antigos aliados na Europa, o que ficaria retido numa interpretação possível da expressão “para Inglês ver”, a propósito do comércio de escravos com o Brasil, por volta de 1830, já então proibido, com o nosso próprio consentimento, mas imediatamente contornado1, por estarem em jogo valores comerciais de grande peso; assim como os chineses da dinastia Qing na expressão retirada ao escritor Wu Jianren (吴趼人, 1866-1910), em História da Dor 《痛史》(tòng shǐ), que poderá ser traduzida pela paráfrase “lisonjear os estrangeiros para proveito próprio” (媚外求荣mèi wài qiú róng), significando numa tradução literal “lisonja para a glória”.

Na opinião de alguma desta sabedoria proverbial, em que não há fronteiras claras entre o senso comum e o saber propriamente dito, segundo muitos portugueses e chineses dos tempos antigos (e talvez alguns atuais) os “de fora” são bons para ser fintados, ludibriados ou então claramente mantidos à distância, porque quando os deixamos penetrar no espaço interno, ou até íntimo, as coisas podem correr mal, como se indica no dito “de Espanha nem bom vento, nem bom casamento” ou, de um modo menos particularizante e mais sistemático e generalista nos provérbios chineses, nos quais se condena, relativamente à dinastia Qing, ela própria alienígena, a bajulação sistemática dos estrangeiros, por exemplo, através de um dito célebre de um grande escritor chinês Mao Dun (茅盾, 1896-1981) em Aprender com Luxun 《向鲁迅学习》(Xiàng Lǔxùn Xuéxí) : “venerar e bajular o estrangeiro ( 崇洋媚外chóng yáng mèi wài). Neste se condena claramente a bajulação ao outro e a xenofilia, que caracterizou alguns momentos importantes da história cultural chinesa na sequência das Guerras do Ópio (1839-42; 1856-1860), ou da implantação da primeira república chinesa (1912- 1949), a que corresponderia o mesmo tipo de tendência em Portugal, nomeadamente até meados do século XX em relação à cultura francesa. Assim, a literatura estava pejada de francesismos, (como hoje o está de anglicismos) e as meninas educadas deviam todas saber “tocar piano e falar francês”.

As tendências de adesão camaleónica aos “de fora” são comuns aos dois povos e prendem-se com momentos históricos específicos, nos quais existe mais proximidade a determinado país por razões dinásticas, em tempos de monarquia, ou políticas, em tempos de república.

Não são menos evidentes as tendências de fechamento ao outro étnico, que pode ocorrer no interior do espaço nacional, diversificando-se de acordo com as paisagens étnicas e geográficas. Quem não recorda expressões no nosso país como “Portugal é Lisboa e o resto é paisagem”, ou “abaixo do Douro, tudo mouro”? Neste sentido, recorde-se a respeito dos chineses mais um aforismo de Mao Dun, incorporado na sapiência proverbial, a propósito da cidade de Xangai, que significa, numa tradução pelo sentido, “em redor é tudo estrangeiro” 十里洋场 (shí lǐ yáng chǎng), mas ao pé da letra se traduz por “dez milhas de mercado estrangeiro”. Este pode ser aplicado em sentido positivo como referindo-se a um mercado próspero, mas também negativo, aludindo a uma cidade repleta de gente “de fora”, como era Xangai para muitos chineses que a viam como uma colónia capitalista. É preciso remontar à “invasão dos estrangeiros”, na sequência das duas Guerras do Ópio para entender a aceção negativa, a que foi empregue por Mao Dun.

O auge da xenofobia sucede no mundo proverbial quando o estrangeiro é identificado como o inimigo, o que se converte numa apologia do fechamento, memorizada e repetida em frases rítmicas e rimadas ao longo de gerações, pense-se no mundo proverbial português em “mantenha os amigos por perto e os inimigos quanto mais longe, melhor”, cuja correspondência em chinês poderá ser, numa tradução literal, “os inimigos devem manter-se afastados das fronteiras do país” 御敌于国门之外 (yù dí yú guó mén zhī wài), tornando-se o mais distantes e estranhos possível, como sugere este dito da época dos Reinos combatentes, sendo um aforismo atribuído a Mâncio (孟子), retirado do capítulo Wan Zhang 《孟子·万章》da obra homónima, mesmo que o afastamento possa ser apenas de um dos reinos chinês para o outro, como era o caso à época em que o filósofo e/ou os seus discípulos escreveram.

Quando o pensamento fechado impera, torna-se notório, por um lado, o enaltecimento das políticas nacionalistas, com o consequente afastamento dos países estrangeiros e de todas as redes intelectuais e político-comerciais “de fora”, por outro, o louvor daqueles que revelam amor à pátria até ao sacrifício extremo, como bem denotam as expressões portuguesa e chinesa, de sentido idêntico, “sacrificar-se pela pátria” (徇国忘己 xùn guó wàng jǐ). Este dito chinês surge no Livro dos Song, Biografia de Xiehui (389-426)《宋书·谢晦传》(“Sòng shū·xièhuìchuán”), encontrando eco na expressão do poeta Bai Juyi (白居易, 772-846) da dinastia Tang em “sacrificar o corpo pelo país” (徇国忘身 xùn guó wàng shēn). Há ainda um outro provérbio chinês que de um modo não tão radical, pois não exige o sacrifício extremo, afasta, no entanto, os laços com o exterior, sendo atribuído a Hu Qi da dinastia Song (宋·胡锜), “Cultiva o interior, resiste ao exterior” (内修外攘 nèi xiū wai rǎng), numa interpretação possível “olha para dentro, não olhes para fora”.

Para terminar com uma nota de esperança no diálogo e na comunicação civilizacionais, oposta e complementar à tendência de fechamento existe outra de abertura para a qual também se encontram ditos quer em português quer em chinês. Assim, em Portugal empregamos expressões que denotam a vontade de entendimento do outro e a aceitação de práticas culturais e costumes diferentes: “em Roma sê romano” e “à terra onde fores ter, faz como vires fazer”.

Já na China há aforismos relativos a figuras políticas distintas dos tempos republicanos, a Liang Qichao (梁启超, 1873-1929 ), um importante intelectual chinês dos tempos modernos, muito ligado à defesa de uma China mais aberta e comunicativa, como era proposto pelo Movimento da Nova Cultura (1915-1925) ao qual aderiu. Posto isto, não surpreende o seguinte dito, coletivamente apropriado, “portas abertas” (门户开放mén hù kāi fàng), já que só com uma política de abertura de portas para o mundo pode o país prosperar, no entender daquele que foi ministro da justiça da República Chinesa, como explicaria em Breve História da Evolução dos Meios de Subsistência 《生计学说沿革小史》 (“shēngjì xuéshuō yángé xiǎoshǐ”) , pela exposição, contacto e absorção de novas ideias, recebidas do Ocidente, como as da promoção de um pensamento diferente da tradição confucionista, com as características do individualismo, da crítica, da independência e da autonomia para as mulheres. Uma outra expressão que ficou incrustada no pensamento contemporâneo chinês surgiu já no contexto da segunda república chinesa, estabelecida em 1949 pelo partido comunista chinês, e numa segunda onda de pensamento, passada a primeira vaga dos furores revolucionários. Os novos ventos pediam então “reforma e abertura” (改革开放Gǎigé kāifàng), após o fechamento revolucionário que culminaria no Maoísmo (毛主义Máozhǔyì). Esta expressão viria a ser empregue por Deng Xiaoping (邓小平), a 18 de dezembro 1978, na terceira sessão plenária do décimo primeiro Comité Central do PCC. Após o período caótico da Revolução cultural (1966-1976), era preciso pensar noutros termos, serenar os ânimos e abrir a China ao exterior, de modo a que os estrangeiros fossem vistos não como estranhos, ou no pior dos cenários, inimigos, mas sendo suscetíveis de dialogar e contribuir para o desenvolvimento e prosperidade da China, através da compreensão de modos de vida distintos e, sobretudo, da organização económica e científica de que dispunham.

“Abertura” e “fechamento” ligados a “distância” e “proximidade”, “fora” e “dentro”, definidos à maneira das fronteiras, podem apresentar-se como muros, portas fechadas ou abertas, mudando consoante os tempos, a educação das gentes e a mentalidade de quem ocupa o poder.

Referências Bibliográficas

Cai Xiqin 蔡希勤 (Trad.).(1999). 《孟子》北京:华语教学出版社.

Gushiju .(2024). “关于外国人的成语 (12个)” (Provérbios sobre estrangeiros)

《 古诗句网 ©2024 京ICP备22222222号-1》 https://ww.gushiju.net/chengyu/k/%E5%A4%96%E5%9B%BD%E4%BA%BA, acedido a 19 de novembro de 2024.

Ngan, António André. (1998). Concordância Sino-Portuguesa de Provérbios e Frases Idiomáticas. 中葡對照成語集Macau: Associação de Educação de Adultos de Macau.

Rocha, Hélio. (2024). “Há duas versões para a origem da expressão ‘para inglês ver’” .Jornal Opção. 26/11/2024. https://www.jornalopcao.com.br/colunas-geral/memorando/ha-duas-versoes-para-a-origem-da-expressao-para-ingles-ver-259029/, acedido a 26 de novembro de 2024.

Torga, Miguel. (1967). Portugal. Coimbra: Coimbra Editora.

Portugal proibiu, por pressão da Grã-Bretanha, o comércio de escravos no início do século XIX, mas apenas em teoria, já que o tráfico clandestino continuou até 25 de fevereiro de 1869.

11 Dez 2024

A Encarnação Feminina de Pu Songling (蒲松龄, 1640-1715): Um registo biográfico contemporâneo

Por Ana Cristina Alves, Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

19 de novembro de 2024

Pu Songling (蒲松龄) perguntava-se como era possível ter reencarnado mulher, chamava-se agora Pu Meiling (蒲美玲). Depois de tudo o que experimentara na existência anterior enquanto homem e de ter sofrido tão grande dissabor às mãos de oficiais imperiais corruptos, viera parar ao século XXI e, ainda por cima, na figura de uma mulher como as que descrevera nos seus contos. Facilmente seria confundido com uma raposa encantada. A sua versão feminina parecia fotocópia das donzelas bonitas das suas histórias de outrora. Era inteligente, aberta, muito à frente para o seu tempo, gostando de se vestir e comportar de uma forma elegante. Além disso, amava estudar, fazia-o com tanto gosto, que se esquecia dias, meses e anos a fio de que o mundo exterior existia. Quando entrou na Universidade, deu nas vistas por todas as razões, atraindo a atenção de colegas e professores.

Já perto do final do curso de literatura, porque o essencial da mente de Pu Songling não se perdera na sua metamorfose feminina, chamou a atenção de um dos professores pelos piores motivos, não pela escorreita e imaginativa escrita, mas pelas suas belas formas. Enfim, as aproximações de um dos mentores aborreceram-na tanto que mal terminou os exames, se afastou, rumo ao sul da China. Iria até Macau (澳門Àomén), onde tinha ouvido dizer que as mulheres, devido à influência portuguesa, adquiriram um estatuto privilegiado relativamente às chinesas do continente. Portanto, Pu Meiling acreditava que assim resolvia a questão de avanços indesejados, de uma vez por todas. Os pais concordaram que fosse tirar o curso de mestrado em terra distante, desde que voltasse.

Quando chegou à nova terra, escolheu a Faculdade de Humanidades da Universidade de Macau (澳門大學Àomén dàxué), de modo a prosseguir os seus estudos de literatura. Ora ainda faltava algum tempo para as aulas de mestrado começarem, alugou então uma antiga casa de pescadores na vila de Coloane (路環Lùhuán), apesar de lhe terem dito que esta era assombrada pelo espírito de um pescador falecido ao largo da praia de Hác- Sá (黑沙海灘Hēishā Hǎitān). Não sentia qualquer receio, talvez porque se familiarizara com todo o tipo de existências na vida anterior: cadáveres, mortos-vivos, animais encantados e fantasmas. Escrevera volumes inteiros sobre eles, pelo que se preparou para regressar aos mundos paralelos sem qualquer problema. Seria até muito divertido encontrar fantasmas no século XXI. Teriam mudado com os novos tempos, ganhando por exemplo mais corpo? Estariam mais bondosos? Recordava-se de que em geral as raposas encantadas eram bem melhores do que os fantasmas, mas havia exceções de imensa generosidade e abnegação por entre os seres do limbo.

Alugou a casinha na vila de Coloane, decidida a não pregar olho logo na primeira noite. Mas a viagem tinha sido longa e Pu Meiling estava exausta. Nessa noite dormiu de um sono só e quando acordou na manhã seguinte já o sol ia alto.

Levantou-se e resolveu inspecionar a casa com toda a atenção. Não encontrou mais nada à exceção de uma foto, com uma riquíssima moldura de jade, de um sujeito bem-parecido, que talvez tivesse ficado esquecida em cima daquela mesinha a um canto da sala. Não havia dúvida o homem era muito bonito. Estava encostado a um barco-dragão (龍舟Lóngzhōu) e mais parecia um príncipe, mas devia ser o tal pescador que habitara em tempos no lugar.

Meiling, mal pousou a foto, começou a sentir um estranho apelo do mar. Disse para consigo “Tenho que ir à praia, afinal as aulas ainda não começaram, ora tempo não me falta”. Dirigiu-se ao início da vila onde passava o autocarro nº25, que a levaria até Hác-Sá. Ao longo da viagem, foi contemplando as sinuosas curvas de um caminho muito verde, que mais pareciam o dorso de um dragão (龍 lóng), estendendo-se preguiçosamente da vila até ao areal.

Quando chegou à praia, já era tarde. Em breve havia de escurecer, mas ela não se importou. Petiscou qualquer coisa numas bancadas improvisadas à beira-mar e dirigiu-se para a areia preta, onde se sentou, perdendo a noção do tempo. Já a noite ia alta quando avistou um barco-dragão a flutuar relativamente perto da praia. Num impulso atirou-se à água; umas braçadas depois, alcançava o barqueiro, que lhe pareceu tão leve como uma pena. Perguntou-lhe se podia entrar na embarcação ao que este aquiesceu. Agradecendo subiu, enquanto dizia:

– Já vi este barco, estava numa única fotografia esquecida na minha nova casa.

– Não é de Macau – respondeu o barqueiro – nota-se pela pronúncia do Norte.

– Fugi do Norte, porque não gostei do modo como fui tratada na universidade, tenho esperança que haja mais respeito pelas mulheres estudantes no Sul.

O barqueiro ouvindo estas palavras, retorquiu rindo: – o respeito não tem a ver com o Norte ou com o Sul, as mulheres da terra ainda têm um longo caminho a percorrer, sejam estudantes ou não.

– Mulheres da terra…do mar não? – atirou Meiling na expetativa de começar a desvendar o que lhe cheirava a mistério.

O barqueiro explicou que no mundo donde vinha, as mulheres não tinham qualquer problema, eram bem tratadas e, sobretudo, muito respeitadas. Em seguida, convidou-a a ir visitar o palácio do Rei Dragão (龍王 Lóng Wáng), explicando que tinha ordens para levar alguém diferente a distrair o Príncipe (龍太子Lóng tàizǐ). O Rei Dragão estava muito preocupado com o filho, que caíra numa letargia inexplicável. Tudo o aborrecia. Primeiro, o pai tinha-se zangado muito com ele, atirando-lhe em rosto que o seu comportamento era fruto de excesso de mimos, mas depois, vendo que ele não reagia, nem aos berros do governante das águas, e que era o seu filho primogénito, herdeiro da coroa, pensou em encontrar um motivo de diversão e nada melhor do que um humano com as suas peculiaridades e limitações para o fazer regressar à vida.

Meiling aceitou de imediato o repto, por que não distrair um príncipe antes de começar as aulas? Ela também andava meio chocha, podia ser que se inspirassem mutuamente.

O palácio do Rei Dragão era esplendoroso. Sobressaía o tom de verde-jade, por entre belos corais. Todo o mobiliário era transparente, feito dos mais puros cristais que emitiam sons de uma beleza invulgar. O monarca era educadíssimo, a consorte de uma beleza rara e as feições do príncipe lembravam-lhe o homem da foto. Em breve ela e o filho do Rei Dragão seriam os melhores amigos. Ele voltou a recuperar a alegria de viver e ela a confiança na vida. Passado um tempo, Meiling começou a sentir-se inquieta. Tinha que voltar para terra, a fim de prosseguir os estudos. Também não podia deixar os pais tanto tempo sem novas. Já não eram novos e ela era filha única e nunca tivera um ato impiedoso para com eles. Deixá-los sem notícias era uma maldade imperdoável, além disso, como eram idosos, podiam precisar dela num qualquer imprevisto que surgisse. Ora em Macau, saberia deles, mas no palácio do Rei Dragão seria mais difícil. Pelo que, vendo que o príncipe recuperara das suas maleitas, estando pronto a desempenhar as funções reais, despediu-se, regressando a terra na mesma embarcação que a levara ao fundo do mar. À despedida o Príncipe Dragão disse-lhe:

– Tens uma foto minha em tua casa, que ofereci a um pescador exímio nas regatas dos barcos-dragão (龍舟賽Lóngzhōu sài), se sentires saudades minhas, agarra nela e invoca o meu nome, que logo aparecerei.

Todos tiveram pena de ver partir a Meiling; ela nem se falava, ia com o coração pesado como uma pedra. Já em casa, correu à sala para verificar se a foto ainda estava no mesmo sítio e ficou muito contente por perceber que sim. Entretanto, embora tivessem começado as aulas na faculdade, optou por continuar a viver em Coloane na sua casinha da vila perto do mar. Distinguiu-se mais uma vez nos estudos e quando sentia muitas saudades do príncipe-dragão, pegava na foto e chamava-o. Ele aparecia logo, o que muito a animava. Tinham longas conversas sobre todos os assuntos do mundo humano e aquático. Apesar de gostarem muito um do outro, ele mantinha-se respeitavelmente à distância.

Já estava Meiling a escrever a tese de mestrado, quando o pai adoeceu. A mãe telefonou de Beijing (北京Běijīng) a pedir que o fosse ver antes que ele partisse definitivamente. A filha correu para o Norte, a fim de ver o pai e chegou mesmo a tempo de lhe dizer um último adeus. Entretanto, como pensava estabelecer-se em Macau, porque o clima era muito mais quente e sentia-se mais próxima do mar e do seu amigo secreto, sugeriu à mãe que fosse viver com ela para lá. A senhora concordou de imediato, o que a deixou muito feliz.

Novamente em Coloane, e na boa companhia de sua mãe, verificou que a foto tinha sido roubada. Alguém lhe entrara em casa durante a sua ausência e ao ver uma moldura de jade, pensou que havia de lhe render boa soma, pelo que a levou com a fotografia. Meiling, desesperada, perguntou aos vizinhos se tinham dado por qualquer suspeito a rondar o local, mas nada, ninguém vira movimentações estranhas, nem a foto nem a moldura.

A mãe estranhou por que motivo o desaparecimento do objeto preocupava tanto Meiling, pelo que a filha acabou por lhe contar toda a aventura que vivera no reino do Rei Dragão. Quando acabou o relato, a Senhora Pu (蒲太太), procurando consola-la da perda, apenas repetia:

– Tenho a certeza que vais encontrar a foto.

Certo dia em que a Senhora Pu foi a Macau fazer compras no Mercado de S. Domingos, resolveu passear pelas tendinhas laterais, pois aproximava-se o verão e ela precisava de um vestido fresquinho. Ao passar por uma das tendas, com muita quinquilharia, viu uma foto emoldurada a jade, com um rapaz jeitoso e de porte real encostado a um barco dragão. Ainda que fosse o objeto mais caro da tenda, resolveu adquiri-lo, guiada pela sua intuição maternal. Foi então ao banco, levantar grande parte das suas poupanças, o que não a incomodou, pois só pensava, que se tivesse certa, a sua filha ia sentir uma alegria imensa.

Quando chegou a casa, colocou a foto em cima da cama da Meiling com todo o cuidado, na esperança de não ter gastado uma fortuna em vão. Pouco depois chegava a rapariga, muito satisfeita porque o seu orientador já lhe tinha marcado as provas de mestrado. Quando entrou no quarto, ao olhar para cima de cama, viu a foto que tanto amava e imediatamente agarrou nela, invocando o Príncipe Dragão, esquecendo-se que a mãe estava por perto e podia aparecer a qualquer momento.

O Príncipe surgiu, vinha com um ar cansado, estava mais magro. Aproximou-se de Meiling, dando-lhe um grande abraço. Entretanto, a Senhora Pu entrou no quarto e passados os primeiros cumprimentos, contou que resgatara a foto nas tendas de S. Domingos. O Príncipe não quis perder mais tempo, e logo ali pediu a mão de Meiling à mãe. Esta vendo tão garboso e educado rapaz, aceitou com grande satisfação o pedido. Depois o Príncipe foi solicitar ao Rei Dragão permissão para permanecer em terra enquanto a Senhora Pu fosse viva, já que Meiling era uma boa filha e não podia abandonar a sua progenitora nos últimos anos da vida. O Rei Dragão consentiu na condição de que o filho e a nora fossem viver para o seu reino de mar, assim que a Senhora Pu partisse, o que de facto viria a suceder largos anos volvidos.

Quando a promessa foi cumprida, chegou ao Reino do Dragão em certo dia de verão uma comitiva alargada, composta por o Príncipe, a Meiling e os dois filhos, um casalinho resultante do casamento. Estes fizeram as delícias do avô, pois eram muito vivos e alegres, adoravam água e, sobretudo, nunca paravam quietos à boa maneira dos dragões.

Comentário da autora. A história só teve um final feliz porque Meiling revelou uma virtude essencial para o Rei Dragão, era muito bondosa e amiga da sua mãe, mostrando que a verdadeira piedade filial a todos comove, seja na terra ou no mar.

Bibliografia

Yao Feng (Org. ) 2022. Pu Songling. Contos de Fantasia Chineses. Belo Horizonte: Editora Moinhos.

27 Nov 2024

Conto Fantástico ao jeito de Pu Songling

Ana Cristina Alves,

Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

21 de outubro de 2024

Pu Songling (蒲松齡) viveu no início da dinastia Qing 清(qīng), entre 1640 e 1715, legando à posteridade uma das obras mais notáveis da literatura chinesa, traduzida para inglês como Strange Tales from a Chinese Studio e para português como Pu Songling Contos de Fantasia Chineses. O Título original é Liaozhai Zhiyi (聊齋誌異Liáozhāi zhìyì), sendo Liaozhai “o estúdio das conversas” onde o mestre-escola compunha as seus contos fantásticos; ele, que nunca conseguiu passar nos exames imperiais a nível provincial, apenas tendo adquirido o grau distrital de xiucai (秀才xiùcái), que significa numa tradução literal “talento cultivado”, viveu longo tempo no campo, onde pôde recolher os contos fantásticos, em circulação desde as dinastias Tang (唐Táng) e Song (宋 Sòng), aos quais juntou muitos da sua lavra, tendo legado 491 contos, de acordo com a informação da Library of Congress, reunidos em 16 volumes, que inicialmente não passariam de 6. O professor do campo levou uma existência obscura e pobre, mas feliz, no que à expansão da sua criatividade diz respeito. Malquistou-se, no entanto, com o sistema de exames imperiais, que falhou ao nível provincial, o que lhe daria acesso a uma vida confortável isenta de preocupações materiais. Tal talvez o tenha despertado para a revelação da injustiça do sistema, que deixava grandes talentos de lado, sobretudo quando estes vinham de famílias menos favorecidas, sem terem o que era conhecido por “privilégio sombra”, assim como sucedia ao escritor, oriundo de uma família da classe média empobrecida. O seu talento acabou, de algum modo, por ser reconhecido ainda em vida, quando aos 71 anos lhe foi concedido um título, mais pela obra literária, do que pelos feitos eruditos, “tributo ao estudante” (贡生 gòngshēng). Meio século depois da sua morte, o seu trabalho tornou-se muito popular sendo, publicado na segunda metade do século XVIII (1766) em chinês, em Hangzhou, e nos séculos XIX a XXI traduzido para inglês por Herbert A.Giles (1880); John Minford (2006); Sidney Sondergard (2008-2014), mas também para alemão, russo e português. Nesta última língua, surge numa edição ligada à Universidade de Macau, publicada na Editora Moinhos em 2022, tendo sido traduzida pelos alunos do Curso de Mestrado da Universidade de Macau: Zhang Mengyao, Chen Qu, Xiong Xueying, Lou Zhichang e Zhou Qian; contou também com tradução e revisão da docente Ana Cardoso.

Yao Jingming/ Yao Feng, na introdução à tradução intitulada Pu Songling. Contos de Fantasia Chineses, resume: “Pu Songling introduziu nos seus contos cerca de vinte tipos de animais, tais como o dragão, o tigre, o lobo, o macaco, o cão, a galinha, a cobra, o grilo, o rato, a borboleta, a abelha ou o corvo, dos quais se destaca a imagem da raposa, que surgiu em cerca de noventa contos” (Yao, 2022: 8). As “raposas-humanas” encarnam um ideal de mulher pouco comum à época, já que cortam com as submissões e obediências tradicionais às hierarquias e convenções sociais para assumirem papéis capazes de revolucionar em nome de sentimentos universalmente acarinhados, como o amor, a amizade ou outras tonalidades afetivas condensadas no conceito de “sentimento” (情 qíng), que se desdobram em paixão sexual, amor abnegado até à busca de bens por todos desejados, como a felicidade. O escritor mostra grande preferência por histórias de amor entre mulheres fantasmas e/ou raposas encantadas e intelectuais pobres, talvez por estas de algum modo refletirem a sua condição existencial. Explora ainda todas as variantes do mundo sobrenatural, de seres fantasmagóricos a verdadeiros demónios. Além disso denuncia, em vários contos, a corrupção e os oficiais ímprobos daqueles tempos, muito concentrados na satisfação de interesses egoístas, alheios às dificuldades do comum dos mortais.

Um conto biográfico ao estilo de Pu Songling

Pu Songling estava muito empobrecido, o que já vinha sendo um hábito na sua família. O seu pai nunca conseguira prosperar nos negócios, sofrendo concorrência acirrada dos colegas de profissão. Na verdade, os seus negócios mal davam para sustentar a família, por isso o filho ficou louco de alegria quando chegou a casa com a notícia de que havia sido bem-sucedido no exame imperial. Era um xiucai2. Se a vida lhe continuasse a sorrir e se preparasse com afinco para os próximos exames, poderia vir a obter o grau máximo nas provas, seria então um jinshi3. A partir daí, as portas da riqueza, abrir-se-iam para ele e sua família. Talvez fosse convidado pelo imperador para a Academia Hanlin, onde estavam reunidos os melhores intelectuais de toda a China. Teria assistentes, uma ou várias mansões luxuosas, carruagens com fartura, um séquito de serviçais e, por último, mas não na ordem das emoções, uma mulher belíssima à qual seria fiel até à morte, porque casaria apenas uma vez. Se ela não conseguisse dar-lhe descendência, então tomaria uma concubina só para efeitos de procriação. Para quê dispersar o seu amor? A sua consorte havia de ser tão bonita e mágica como uma raposa encantada.

Quanto maior é o sonho, mais dura é a queda. Três anos volvidos, Pu Songling falhava o exame para jinshi. Sentiu-se miserável. Com o coração envenenado, como o de uma mosca, dirigiu-se para Taishan, onde viveria como eremita. Não tinha nem coragem, nem vontade de enfrentar a família. No caminho, passou por Qufu, prestando homenagem a Confúcio. Sentia-se terrivelmente injustiçado. Tinha consciência de que o chumbo não fora merecido. Os examinadores eram incompetentes, um deles era ignorante, como poderia ele entender a sua excelsa prosa? O outro incompetente e facilmente subornável, já que a única linguagem que entendia era a do dinheiro. E com ele haviam-se candidatado tantos nobres e rapazes de famílias ricas… Ora ele, em termos de nome, infelizmente nada tinha para mostrar. A sua ascendência não era ilustre nem poderosa e quanto a riqueza, o seu progenitor suava-a a cada dia para colocar o arroz em cima mesa. Enfim, o seu coração transbordava de tristeza e ódio à medida que se dirigia para a terra do Grande Mestre. Mas se o coração estava envenenado, o espírito continuava vivo e curioso. Assim, como que a temperar-lhe a jornada, foi escutando os relatos de histórias fantásticas, muito antigas, que remontavam à grande dinastia Tang e até a posteriores, que o povo, com a sua memória prodigiosa ia retendo e lhe fazia o favor de contar.

Quando chegou a Qufu, já ia mais animado, pois pensava em registar os relatos de fantasia, naquele que havia de ser o seu “estúdio das conversas”, bem no meio da montanha, onde certamente teria o privilégio de receber a visita de fantasmas e raposas encantadas.

No templo, prestou homenagem a Confúcio, mas ia tão cansado, que se sentou, cerrando as pálpebras. De repente, tinha o Grande Mestre a seu lado, dirigindo-lhe a palavra:

– Não estejas tão desesperado. Poderás não ser rico nem famoso nesta vida, mas serás recordado pela humanidade para todo o sempre. Deixarás uma obra notável, que servirá de inspiração e alegria a muitas gerações.

– Grande Mestre, o que me diz não me deixa nem um pouco regozijado, pois prevejo uma vida dura e cheia de trabalhos para mim. Foi tão injusta a minha reprovação nos exames! Vi os outros candidatos. Muitos deles, nem sequer tinham lidos os Quatro Livros e os Cinco Clássicos, estavam lá porque compraram os examinadores.

– Pu Songling, sabes bem como me bati por uma verdadeira nobreza intelectual. Em vida, também não fui reconhecido, mas nunca deixei que os obstáculos criados me afastassem do verdadeiro Tao. A minha conduta foi sempre irrepreensível, orientada pelas Cinco Virtudes Constantes, por isso ainda hoje me respeitam no Império do Meio.

– Mestre, tem razão, não me posso deixar abater pelas circunstâncias adversas. Farei por honrar o meu destino, agora que mo revelou, enquanto estiver em Taishan, escreverei com afinco todas as histórias que fui aprendendo no caminho.

– Como disse nos Analectos há muito tempo, um cavalheiro deve possuir conhecimento vasto, não é um utensílio4. Serás um sábio na aceção mais alargada, reunirás mundos, o material e o espiritual, o visível e o invisível: terreno, paradisíaco e subumundo. Trarás alegria e beleza à vida das pessoas; contenta-te, pois, com a tua sorte, segue o teu caminho e não olhes para trás. Ainda nesta existência serás recompensado com um título honorífico em reconhecimento aos teus dotes literários.

Pouco depois, deixou de escutar Confúcio. O templo silencioso, indicava que estava sozinho, talvez a conversa entre ambos não tivesse passado de um sonho. Porém, parecia-lhe tudo tão real. Seguia esperançado, cheio de vontade de registar as suas histórias, já que era por elas que iria ser recordado. Não teria benesses em vida, mas muitas honras depois de morto, o que era bem melhor do que nada.

Escolheu bem o seu refúgio, ocupando uma cabana deixada por um eremita que o antecedera, quem sabe não teria também ele sido uma das vítimas dos exames imperais. Dedicou-se ao trabalho com afinco e foi esquecendo as misérias por que passava, ou até purgando-se delas quando as registava em contos. Ridicularizava, sempre que podia, os examinadores imperiais, denunciava desmandos e maus tratos, descrevia as penas e humilhações por que passavam os examinandos, coitados! Nos exames, à chegada pareciam mendigos, depois seguiam-se as apresentações em que recebiam tratos de prisioneiros, dentro dos horríveis cubículos eram vespas encurraladas e dormentes. Saíam daquelas gaiolas como aves doentes. Enquanto aguardavam pelos resultados comportavam-se como orangotangos. Depois, se eram rejeitados, os seus corações enchiam-se de veneno. Eram moscas envenenadas e sofredoras a digerir os péssimos resultados, até renascerem como pombos esperançosos em busca da construção de um novo ninho. Ele encontrava-se a libertar o veneno, à procura de um renascimento, não como pombo, já que não tencionava voltar a tentar a sua sorte nos exames imperiais, mas como melodioso rouxinol. O seu esforço era visível e a obra crescia de dia para dia. Os contos eram tantos que seriam necessários vários volumes para os registar.

Numa noite de tempestade, em que o vento soprava forte e o frio se fazia sentir, muito agreste, penetrando gelado até aos ossos, sentiu uma presença aromática no quarto. Cheirava tão bem, levantou os olhos e viu uma mulher estonteantemente bonita à sua frente. Parecia uma imortal, ou pensando melhor, uma deusa. Ela assim falou:

– Perdi-me na noite escura, não sou capaz de encontrar o caminho de volta para a minha aldeia. Importava-se que ficasse aqui consigo? Tenho tanto medo, está tanto frio…

– Receio que esta choupana não seja digna da presença de uma menina tão bela e fina, no entanto tenho muito gosto em recebê-la. Permita que lhe sirva um chá – disse ele, enquanto se afastava para o fundo da cabana. Quando regressou, deu com ela debruçada sobre os seus papéis.

– Que linda história está a escrever, é sobre um letrado solitário e uma raposa encantada. Pelo modo como descreve a rapariga parece uma deusa.

– Isso foi antes de a ver a si – disse ele estendendo-lhe a chávena de chá- agora vou refazer o texto, porque a sua imensa beleza me inspirou. Com toda a sinceridade, é a primeira vez que encontro uma mulher com a sua finura, graciosidade e leveza.

– Ora, ora, fala assim, porque se encontra aqui fechado há muito tempo. Precisa de se distrair um pouco. Não quererá ajudar-me a despir as luvas e o casaco. A minha indumentária, é muito complicada e infelizmente perdi-me das empregadas, umas joias de raparigas, mas devem ter-se assustado com a tempestade, talvez estejam para aí escondidas, o certo é que já as procurei e não há meio de dar com elas.

– Pu Songling não se fez rogado. Ajudou a bela donzela a despir o casaco e tudo o resto. A seguir foram para a cama e fizeram amor. A cabana tinha-se transformado num belo palácio. A cama onde estavam deitados, possuía agora finos lençóis de linho bordados e no ar pairava um agradável aroma a flores, talvez a rosas ou seriam peónias? Foi uma noite muito divertida e bem passada. Ela contou-lhe cenas fantásticas do sítio de onde vinha. Depois adormeceram. No dia seguinte, quando o letrado abriu os olhos, a donzela já tinha desaparecido. Deixara, no entanto, um pequeno lenço vermelho bordado aos pés da cama. A casa voltou a ser uma cabana, mas parece que a misteriosa beldade o visitou noutras noites ao longo de todo o inverno e sempre que aparecia espalhava graça e magia em seu redor.


Bibliografia

Alves, Ana Cristina. 2005. A Sabedoria Chinesa. Cruz Quebrada: Casa das Letras/ Editorial Notícias.
“論語》1994. Analects of Confucius. Tradução. para Inglês de Lai Bo (赖波) e Xia Yu He(夏玉和) e para Chinês Moderno de Cai Xiqin (蔡希勤) 北京,華語教學出版社.
Wang, Jeffrey. (2018),” The Strange Tales from Liaozhai” Library of Congress Blogs
https://blogs.loc.gov/international-collections/2018/10/the-strange-tales-from-liaozhai/, 2018, 29 de outubro.
Yao Feng (Org. ) 2022. Pu Songling. Contos de Fantasia Chineses. Belo Horizonte: Editora Moinhos.
Este conto é inspirado numa das muitas histórias de fantasia que o escritor nos legou, intitulada “O Erudito Wang Zian” e, particularmente no Comentário do Autor, no qual expõe, numa reflexão certeira, as sete facetas do calvário do xiucai.
Grau conferido pelo exame imperial de nível distrital.
Último grau atribuído pelo exame provincial.
Analectos de Confúcio, Fazer Política, II.12 論語•為政第二《子曰:君子不器》

23 Out 2024

Meditando com Han Shan

Ana Cristina Alves,

Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

27.09.2024

I

António Graça de Abreu possui vasta obra poética publicada, entre os títulos destaco: China de Jade (1997), China de Seda (2001); Terra de Musgo e de Alegria (2005); China de Lótus (2006); Cálice de Neblinas e Silêncios (2008); A Cor das Cerejeiras (2010).

O poeta e sinólogo é ainda tradutor de poesia clássica chinesa, tendo traduzido para português os seis maiores poetas da China: Li Bai (1990); Bai Juyi (1991); Wang Wei (1993); Han Shan (2009); Du Fu (2015) e Su Dongpo (2023).

Lançou em setembro de 2024, em segunda edição, Han Shan Poemas寒山詩 (2024) com a Editora Grão-Falar, dirigida pelo Editor, Jornalista e Escritor Carlos Morais José.

Em Han Shan Poemas寒山詩, António Graça de Abreu convida a visitar o mundo poético deste budista Chan, Zen no Japão. O poeta, cujo nome significa “Montanha Fria”, talvez tenha vivido no século VIII, durante o período áureo da dinastia Tang (618-906), tendo-nos brindado com uma meditação existencial única sobre o vazio.

O Eremita da “Montanha Fria”, se acaso viveu no século VIII, ter-se-á cruzado, como sugere António Graça de Abreu no Prefácio à obra que traduziu, com os maiores vultos poéticos da dinastia Tang, quer dizer, Wang Wei, Li Bai e Du Fu. A verdade é que, tirando a lenda a seu respeito e do filho adotivo e irmão espiritual Shi De, pouco mais se sabe sobre ele. No entanto, a lenda tem a vantagem de nos alertar para o essencial quer da vida de Han Shan quer de Shi De, já que o poeta abandonou a mulher bonita que tinha, no sopé da Montanha Tai, na aldeia de Qinfeng, na província de Shandong, por acreditar que o coração dela pendia para o filho adotivo adolescente, Shi De; e este último ao perceber a confusão gerada foi procurar por muito tempo Han Shan até o encontrar no mosteiro budista de Han Shan em Suzhou para onde entraria também como monge. A atitude de ambos denota que o traço de união entre eles era a dedicação à religião Budista, dedicação essa vivida poeticamente por Han Shan. Este legaria um estilo poético budista Chan (禪 Chán), que seria transferido no Japão de Matsuo Bashô (1644-1694) para a forma Zen.

Já antes na dinastia Song, o primeiro-ministro, poeta e letrado Wang Anshi (1021-1086) se referira à imitação necessária para os estetas crentes mas quase impossível do estilo poético de Han Shan, nas palavras apresentadas por Graça de Abreu “Procuramos a água e apenas ele encontrou a nascente” (Han Shan, Apud Abreu, 2024, 23).

II

Dos 311 poemas de Han Shan, 15 foram traduzidos por Graça de Abreu, tendo anteriormente 25 sido por Jacques Pimpaneau, adaptados na versão poética de Ana Hatherly para português. Qual é então o estilo que inspirou tantos poetas e anima os poemas de “Montanha Fria”?

O estilo filosófico de Han Shan revela, antes de mais, o amor à natureza, que permite enquanto paisagem a concentração no essencial, o coração-mente (心 xīn), seguindo-se a par do elogio do vazio, contraponto a uma existência efémera, eivada de sofrimento, doença e morte, pelo que a meditação sobre o vazio, auxilia o coração-mente a cultivar uma atitude tranquila e desprendida das paixões e prazeres terrenos, bem como a suportar, com a paciência possível, às vezes com alguns desabafos, as dificuldades, limitações e desafios de uma vida curta, repleta de pobreza e frugalidade. O sentimento da brevidade da vida e o envelhecimento, magoam-no, sobretudo por comparação aos tempos de juventude. Apesar de toda a meditação, é perpassado por forças contraditórias, que expressa poeticamente, por exemplo, em as pessoas “São flores num dia de Primavera, /abrem de manhã, murcham ao entardecer” (Abreu, 2009, 12).

Satiriza e crítica gente poderosa, rica e avarenta, apontando o tal caminho frugal, cultivado por taoistas e budistas, revelando ainda estranheza por certos monges budistas se apegarem a atitudes mundanas, denotadoras de valorização de bens materiais em lugar de se concentrarem em desenvolver a força espiritual que os poderá aproximar do Dharma, a lei de Buda.

Os grandes oficiais, os ministros de estado, a quem os portugueses chamaram mandarins, são de igual modo satirizados e denunciados pela prepotência e injustiça com que exercem os seus cargos. Para chegar à conclusão de que “Hoje compreendo melhor: riquezas, honrarias, / o nome, a fama, tudo é inútil e vazio.” (Abreu, 2009, 16).

O prefácio à obra, primorosamente organizado, encontra-se dividido em: apresentação biográfica do poeta, intitulada “Do poeta e da bruma”; “Da Poesia”; “Da Tradução” e “Conclusão”. No que respeita à tradução, a poesia de Han Shan, segundo nos informa o seu tradutor, não é das mais complicadas de traduzir, porque, por um lado, não se encontra repleta de sentidos figurativos e alusões históricas, por outro, utiliza uma linguagem simples e coloquial de modo a que possa ser entendida por todos. Os poemas, sem título, são na sua maioria Lǜshī律詩, 8 versos regulares compostos por cinco ou sete caracteres. As rimas são paralelas e tonais, com alternância entre os tons uniformes, e oblíquos, sendo na concordância tonal que o poeta terá recebido maiores críticas por parte dos letrados, com pouco fôlego poético e muita atenção às convenções. Quanto ao tradutor, confessa-se a trabalhar num registo de sombra cujo silêncio o ilumina (Abreu, 2024, 37). Considera ainda que a empatia com o poeta marca decisivamente os poemas a traduzir (Abreu, 2024,38), bem como “a busca de identidade cultural e afetiva entre o tradutor e o poeta a traduzir” (Abreu, 2024, 39). Considera-se ainda grato pelo seu trabalho não ser um percurso solitário, mas realizado em companhia da consorte, Wang Haiyuan e do velho amigo tradutor ao jeito dos letrados, Zhang Weimin, ilustre tradutor de Fernando Pessoa e Luís Vaz de Camões para Chinês.

A rematar o Prefácio recorda como são importantes as traduções para manterem vivos os diálogos poéticos entre toda a humanidade. Assim, devido à tradução de Jacques Pimpaneau, com versão poética de Ana Hatherly, em 2003, e da sua própria tradução, publicada primeiro em 2009 e agora em 2024, o poeta Han Shan torna-se cada vez mais familiar dos leitores portugueses.

III

Esmiuçando a análise temática da poesia traduzida de Han Shan por António Graça de Abreu, comecemos pelo último poema da coletânea, o 155, uma quadra chinesa jueju (绝句 juéjù) sobre e, perdoe-se o paradoxo, vazio plenamente vivido pelo eremita na sua bela montanha fria:

Habito a montanha,

  ninguém me conhece.

  Entre nuvens brancas,

  o silêncio, sempre o silêncio.

我居山

勿人識

白雲中

常寂寂

(Abreu, 2024, 158/9)

Esta é a postura meditativa que todos os monges budistas procuram alcançar. Coexistir santamente na paisagem, com uma tranquilidade de espírito só possível pela fusão com a natureza, na contemplação silenciosa das nuvens brancas, tal como se ele próprio ao habitar na montanha tivesse incorporado as suas características, ao jeito do trigrama “Montanha” (艮gěn) do Clássico das Mutações (《易经》) fazendo crescer em si, a força, a solidez e a firmeza necessárias a uma postura exteriormente imóvel, mas que desenvolve a máxima energia a partir do seu interior, porque a viagem na montanha é mental. O corpo permanece no mesmo lugar, enquanto o espírito do eremita procura o domínio que lhe pertence e o vazio iluminante, recetivo e compreensivo de todos os males que afligem os seres vivos a nadar num mar de sofrimento até que a força da mente os liberte. Como adverte no poema numerado por Graça de Abreu 154, no qual declara ter mais de 100 anos, não se deve usar o coração para alcançar a “vã glória” mundana, já que ela arrasta inúmeros desejos fatais às pessoas “Quando se usa o coração para renome e fama/ entram no corpo cem diferentes desejos” (心神用盡為名利/百种貪婪進己軀) (Abreu, 2024, 158/9).

Aconselha o monge que o coração das pessoas seja tão vazio quanto possível, mas não indiferente aos outros, eis a grande distância entre as pessoas que vivem sem pensar, nem em si nem nos outros, e os monges, como o poeta, atentos ao fluir da existência e ao auxílio e libertação de todos das amarras que mantêm, segundo a filosofia budista Chan, os seres humanos prisioneiros sem de facto estarem encarcerados numa prisão física. Estes podem até mover-se, aparentemente de uma forma livre, mas na realidade são cativos dos múltiplos desejos com que enchem e enfrenesiam as suas vidas e as alheias, pelo que o melhor é o despojamento meditativo que conduz a uma existência simples e desprendida. Esta é a via certa, a da libertação das manchas e poeira do mundo, a única que apazigua o coração, em comunhão profunda com a falésia, a névoa, o arroio e porque o faz, sabemos o que sente no poema 154 “No meu corpo nem manchas, nem poeiras, /no meu coração nem traço de inquietude.” (身上無塵垢,/心中那更憂。) (Ibidem).

O poeta não é insensível à beleza feminina das meninas, das flores e dos elementos naturais, mas a consciência da efemeridade da felicidade, que não passa de breves momentos em longas existências, às vezes mais de cem anos, como talvez a dele, condu-lo ao distanciamento dos prazeres da vida, como nos informa no poema 152 relativamente à brevidade do riso e gozo, que encaminham inexoravelmente para o choro e sofrimento. Só por meio da meditação é então possível relativizar as forças positiva e negativa em ação, equilibrando-as de uma forma tensional, onde a ponderação da vacuidade da existência fenomenal é decisiva ao bem-estar espiritual do poeta, já que as necessidades e carências corpóreas são supridas pela harmonia no coração-mente em contacto com o incenso exalado pela resina do pinheiro e pelos rebentos do cipreste, de acordo com o poema 150, “Tenho fome, uma bolinha desta panaceia,/harmonia no coração, encostado às rochas” (飢餐一粒加陀藥,/

心地調和倚石頭) (Abreu, 2024, 156-157).

Pode e deve estar silencioso e tranquilo “o coração como a lua de outono/ reflexo imaculado num lago esmeralda” (吾心似秋月/碧潭清皎洁) (Abreu, 2024, 53).

O ideal de muitos eremitas, de Han Shan em particular, é conseguir afastar-se e descansar dos males do mundo, num lugar abençoado pela beleza natural, propício, por isso, à manifestação da força espiritual, na única companhia dos elementos naturais e dos textos sagrados, incluindo os dos poetas do passado e sobre imortais, assim alcança a energia, que se esconde se transferida para a sociedade humana, impelida pelos ventos fortes das paixões individuais. Aqui fica a confissão de bem-estar de Han Shan, no poema 8:

Desejei um lugar para descansar,

  a Montanha Fria deu serenidade.

  Um vento leve sopra entre os pinheiros,

  de perto ouve-se melhor a canção da brisa.

  Sob as árvores, um homem de cabelos brancos

  recita velhos textos taoístas.

  Não deixo este lugar há já dez anos,

  esqueci o caminho por onde vim.

欲得安身處

寒山可長保

微風吹幽松

近听聲逾好

下有斑白人

喃喃讀黃老

十年歸不得

忘卻來時道

  (Abreu, 2024, 54/5)

Que melhor sítio para envelhecer do que este entre montanhas e penhascos, rios e lagos, acompanhado pela suave brisa ou pelo canto dos pássaros, aprendendo a escutar a voz da natureza em todas as estações, das mais suaves e convidativas às agrestes, estas últimas, úteis para despertar a força de vontade e a resistência a um mundo ilusório que, apesar da sua inexistência em termos da verdadeira realidade, deixa marcas, que doem e transtornam os corações, tumultuando-os como se em lugar de ventos suaves soprassem no interior impiedosos tufões.

Enquanto os contrastes e oposições naturais produzem beleza, como as negras rochas e as nuvens brancas de que nos fala o poema ou, ainda, o salto imprevisível das estações da Primavera diretamente para o Outono, o certo é que os conflitos e oposições ao nível humano causam feridas profundas, por vezes insanáveis, pelo que o eu poético confessa a sua preferência por um fluir sossegado dos dias sem confrontos dilacerantes para o seu coração. Prefere então suportar os rigores de uma montanha de que o gelo não se aparta, nem mesmo no Verão. Dada a opção, terá de seguir uma vida frugal, satisfazendo apenas as necessidades alimentares básicas, pelo que sobrevive dos frutos que a dadivosa mãe-natureza coloca ao seu dispor, por isso explicita no poema 10, “Retirado na Montanha Fria, /Alimento-me de frutos da montanha” (一自遁寒山/養命餐山果) (Ibidem). Tal não significa que o eu poético não tenha momentos de desalento e de humana solidão, isso sucede quando se deixa vencer pelo cansaço e pelo sentimento da fugacidade da existência, como confessa no final do poema 27: “O tempo foge, os cabelos brancos, tão brancos,/ o ano acaba e eu velho triste, tão triste”( 時催鬢颯颯/歲盡老颯颯) (Abreu, 2024, 70/1)

Já no tempo de Han Shan, presumivelmente o século VIII da dinastia Tang, o mais importante para muitos senhores de então era o dinheiro, como explica nos últimos verso do poema 41: “mais importante que tudo é o dinheiro (愿君似今日/錢是急事爾)(Abreu, 2024,80/1)”, a valorização dos bens materiais que o eu poético constata parece ser uma constante de todos os tempos em pessoas apenas concentradas nos interesses mundanos, que não conseguem entender que existem outras necessidades para além das físicas, tão importantes como estas e apenas alcançáveis pela via da meditação. Pois para lutar contra os vãos desejos do mundo, o conselho dado ao sábio é: “como arma, leva apenas a espada da sabedoria,”( 常持智慧剑) (Abreu, 2024, 82/3), ele sabe que tudo o que é necessário para se viver bem se encontra nos cinco elementos Wu Yin (五陰Wǔ Yīn ) do Budismo Mayahana (Grande Veículo) : a forma, a sensibilidade, a perceção, a vontade e a consciência, essenciais na compreensão da pobreza e do vazio existenciais, mas ainda de uma certa leveza de um corpo tornado quase espírito na Montanha Fria, como se lê nos últimos versos do poema 63 “Um vento cortante, a lua fria como gelo,/ o meu corpo, um grou solitário voando” (寒月冷颼颼/身似孤飛鶴) (Abreu, 2024, 94/5).

Por fim, um conselho de estética religiosa que o eu poético deixa a todos os seus leitores no poema 64, naturalmente a seguir, porque a poesia é a música das palavras que vai direta ao coração-buda:

Em casa, ter poemas de Han Shan

  é melhor do que ler sutras.

  Escrevam os poemas num biombo

  e olhem-nos, de vez em quando.

家有寒山詩

胜汝看經卷

書放屏風上

時時看一遍

  (Ibidem)

Bibliografia

Abreu, António Graça de (Org. e Trad.). 2024. Han Shan Poemas寒山詩. Lisboa: Grão-Falar.

Hatherly, Ana (Adapt.). O Vagabundo do Dharma. 25 poemas de Han-Shan. Tradução do chinês de Jacques Pimpaneau, versões poéticas de Ana Hatherly e caligrafias de Li Kwok-Wing.

10 Out 2024

O nome poético de Macau em Português

Ana Cristina Alves, Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

O nome poético de Macau encontra-se ligado a grandes poetas que estiveram em Macau, como Luís Vaz de Camões (1524?-1580), com toda a certeza poética que o amor por uma Dinamene confere e confirmam os biógrafos como Eduardo Ribeiro; ou a Manuel Maria du Bocage (1765-1805), ou a Camilo Pessanha (1867-1926),ou a Manuel da Silva Mendes (1867-1931), entre outros mais recentes como António Graça de Abreu (1947-) e Carlos Morais José (1963 -). Neste espaço, gostaria de destacar os contributos para os nomes e relação com a Península de Macau de Maria Anna Acciaioli Tamagnini (1900-1933); Beatriz Basto da Silva (1944-), Manuel do Couto Viana (1923-2010); José Augusto Seabra (1937-2004); Rui Rocha (1948 -), Cecília Jorge e António Mil-Homens (1949-).

Maria Anna de Magalhães Acciaioli Tamagnini, a linda princesinha da poesia escolhida para consorte de Artur Tamagnini Barbosa, deixou-nos além de obra benemérita e socialmente empenhada, uma coletânea poética intitulada Lin Tchi Fá – Flor de Lótus, publicada em 1925, cujo tema principal são as flores, humanas e naturais e, entre estas, a rainha de Macau, a flor de lótus, lin tchi fá, que na sua perspetiva simboliza esteticamente a cidade como nos revela na segunda quadra do poema “Folhas de Lótus”

 Sobre folhas de lótus desenhei

  O mais risonho trecho da cidade;

 E esse leve desenho que tracei

  Dir-se-ia uma paisagem feita em jade

 (Tamagnini, 1991, 15)

Maria AnnaTamagnini cruza-se no tempo de vida com António Manuel Couto Viana, que nasceu em Viana do Castelo em 1923, vindo a falecer, já no século XXI em 2010. Homem multifacetado foi poeta, dramaturgo, ensaísta, memoralista e ainda se dedicou à escrita de contos para crianças. Foi também ator, encenador e empresário teatral, dirigindo a companhia especializada em espetáculos infantis, Gerifalto, bem como a Companhia Nacional de Teatro. Viveu em Macau entre 1986 e 1988, tendo exercido funções no Instituto Cultural. Entre as suas obras poéticas, gostaria de destacar Até ao Longínquo China Navegou (1991), sobretudo pelo primeiro capítulo, intitulado “Nome de Deus Deusa no Nome”, dedicado a Macau, incidindo os restantes sobre a China, a Formosa, o Sião (Tailândia) e o Reino da Malásia. Com ele, se acompanha “Um Sabor a Saudade”, que a terra lhe deixou, bem como a dedicatória ao nome central da literatura macaense, Henrique de Senna Fernandes, através do poema “A-Li a Tancareira”, que recorda as raízes piscatórias de Macau e dos seus habitantes, muitos deles, da etnia Tanga (蛋家Dànjiā), vivendo em pequenas embarcações, os tancares, oriundos das zonas ribeirinhas de Cantão, Fujian e Guangxi. O autor apresenta a tancareira “Como a descer sem pressa/ Ao túmulo impassível do passado” (Viana, 1991,21). Num outro poema, dedicado a João Sales e à Cidade, confessa-se totalmente identificado, sobretudo com a história da terra, “Na Pousada de Mong Há”, cuja derradeira quadra é deveras tocante:

 Memorial de mim em cada muro

 Grava os versos do fim em que me vês:

 - Aqui viveu enquanto foi futuro,

 O último poeta português!

 (Viana, 1991, 23)

Após um outro poema à Festividade da Lua, intitulado “Na Lua do ‘Bate-Pau’” em homenagem ao Padre Benjamim Videira Pires,S.J.(não consigo deixar de me interrogar sobre o que saberia da biografia do Padre), segue-se um soneto em honra da festividade do Ano Novo Chinês, intitulado “Kong Hei Fat Choi” (saudação à prosperidade) soprado pelos ventos de mais uma primavera. O último terceto encerra num desabafo tocante, onde se patenteia e entrelaça o seu sentir pessoal com o do inconsciente coletivo de muitos portugueses e macaenses da sua geração:

 Foi-se-me o tempo e a arte. O que me resta?

 Teu coração, Macau, pra fim de festa,

 No ano que começa e me acabou.

 (Viana, 2010,27)

Para muitos dos nossos compatriotas mais antigos, Macau tem ainda um sabor imperial de conclusão de ciclo, a par de Timor. Porém, Macau é um caso único. A Cidade do Nome de Deus, que haverá de se transformar-se na Região Administrativa Especial da China, foi entregue aos chineses de um modo exemplar, sem sobressaltos nem guerras; simultaneamente marca o fim de uma era europeia, a partir da qual já não são admissíveis colónias. Desta forma, encerra um período histórico, feliz para os que se identificavam com imaginação de que Portugal ia de Lisboa a Timor, sendo igualmente reconfortante para o eu poético que tanto se identificou com o lugar a ponto de lhe sentir o bater do “coração” em período de desfecho, por osmose.

Beatriz Basto da Silva (1944 -), casada com um macaense, historiadora, professora, poetisa portuguesa, nesta última qualidade o que diz sobre o tema da transição de Macau para a China em Silêncios (1996), no poema “Macau 99”?

 Tenho os olhos rasos de angústias futuras

 por isso me parece tudo

 paisagem de nocturno e final canto…

 infiel é o Sol

 que deixou de vir em cada dia

 aquecer-me

 como dantes fazia.

 (Silva, 1996, 59)

Ensombra este poema datado de 1991 um grande pessimismo, impregnado de sentimento desagradável frio e de fim de história, pelo menos imperial, porque, entretanto, Macau continuou o seu caminho e hoje, mesmo os mais pessimistas reconhecem que sobreviveu de novo aos imprevistos da história. Passou de mãos, mas está vivo, próspero e sempre em transformação. É mesmo um caso exemplar de encerramento feliz, ainda que deixando um travo nostálgico em muitas pessoas que na última década do século XX não podiam prever o que as esperava. Foi um mistério até deixar de o ser.

Perdeu-se o império, ficou o sagrado colado ao nome de Macau, como bem notou o professor, ensaísta e poeta José Augusto Seabra (1937- 2004), nascido em Vilarouco, São João da Pesqueira. Licenciado em Direito, conheceu o exílio em França, doutorando-se em letras na Sorbonne. Regressado a Portugal em 1974, faz o seu caminho no ensino até chegar a professor catedrático na Faculdade de Letras do Porto e diretor literário da revista portuense Nova Renascença. Também sentiu e ressentiu o passado histórico, o sonho de grandeza e a perda traumática do império, bem psicanalisada por Eduardo Lourenço em Labirinto da Saudade (1972). Poemas do Nome de Deus (《神的名字》) é uma obra bilingue de 1990, onde se lê em jeito de breve e incisiva introdução/inscrição pela boca do autor que vamos entrar na leitura de “um livro de Amor, Terceira Pessoa da Trindade. Amor com todas as letras, elevado ao infinito, em rigor indizível” (1990,13).

Desta forma, tudo o é dito na obra surge filtrado por este sentir, mesmo a saudade, o sentimento de perda e todos os outros parceiros negativos que costumam acompanhar estes dois. No poema da abertura “Do Nome” vislumbramos o movimento dos nautas pelos mares reais e imaginados até alcançar o horizonte do afeto pleno pela cidade:

 De vir chegando, ao longo de ficar

 mais perto do partir, atravessando

 o lugar infinito de não estar

 na presença a fugir do onde ou quando

 que é só pura memória de chegar,

 eis quase no horizonte o sinal pando

 a tremular ao sol de nau em nau:

 o teu nome sem nome, Ó Deus, Macau.

 (Seabra, 1990, 15)

 Aventureiros do ideal, como é dito no poema sugestivamente intitulado “Dos Nautas”, são “(…) os nautas perdidos/ dando três vezes a volta às margens do vago,/imaginando (…) (Seabra, 1990, 75). Ainda assim, para a história mundial fica uma certeza científica no meio de tanta paisagem onírica, apresentada em “Da Rota”. Esta é com todo o estudo e merecimento “a glória de sabermos/ a rota da viagem” (Seabra, 1990, 77). A relação amorosa do eu poético com a cidade é totalmente justificada no mistério do nome de Deus, afeto proporcionado não apenas pela terra como ainda pela palavra sagrada da pátria, em “Da Lealdade”:

 Ó pátria da palavra

 dada: pátria amada

 que da pátria resguarda

 a palavra sagrada.

 (Seabra, 1990, 33)

 真實

  嘔,語詞的國度

 被賦予的稱呼:可愛的國度

 從這個國度

 保護神聖的詞匯

(Tradução de Lu Ping Yi 吕平義)

Que belo elogio à “Cidade do Nome de Deus, não há outra mais leal”. O amor verdadeiro surge assim do mistério, aliado ao reconhecimento da virtude da lealdade, pois se foram os portugueses os primeiros a chegar a Macau, era justo que nenhuma outra bandeira fosse hasteada a não ser a portuguesa, mesmo quando “se mudam os tempos e as vontades”, bem como as alianças que provocam alterações no panorama político com consequências dinásticas.

Retém José Augusto Seabra os momentos mais belos e significativos da história de Macau, sem, no entanto, esquecer o papel humano dos portugueses, vagabundando num panorama onírico em que por vezes conseguiam concretizar os seus sonhos, sobretudo quando recorriam à perícia tecnológica e ao pensamento científico.

Já em pleno século XXI, transição concluída da Cidade do Nome de Deus para a Região Administrativa Especial de Macau, serão os sentires poéticos talvez outros, a par dos novos tempos, tornando-se mais concretos e laicos?

Rui Manuel de Sousa Rocha (1948 -) nasceu em Lisboa, de ascendência portuguesa e macaense. Foi habitante de Macau por três décadas, onde desempenhou o cargo de diretor do Instituto Português do Oriente, convivendo de perto e em harmonia com as culturas e poesias chinesa e japonesa, oriundas do Budismo Chan (Zen). Na obra poética A Oriente do Silêncio (2012) enquadra lucidamente Macau numa “China antiga”, imperial, na qual o governante se ligava diretamente às forças celestiais através do “mandato do céu” (Rocha, 2012, 11) até ao momento da despedida, num poema cujo título é substituído por uma data “Macau, 20 de dezembro de 1999”, em que sobressai o desejo de partir, acompanhado pelo movimento de diáspora. Aqui fica a primeira estrofe:

 para que o tempo não fuja

 como uma pérola na ponta de um fio

 para que o amor não naufrague

 nas noites escuras dos mares da china

 colarei o meu corpo a um qualquer mapa

 dos lugares por onde andares

 e elevarei o meu coração

 sobre os céus desses lugares.

 (Rocha, 2012, 101)

Ficar e acompanhar os novos tempos, pautados por uma nova administração, ou partir, encetando um outro caminho de vida, mais uma aventura? Tomar qualquer das opções implica coragem e muita energia, mas se as decisões forem realizadas em nome do amor, isso ajuda. Fique-se ou parta-se por sentimento, porque depois, haja o que o houver, que seja em nome da melhor das causas, “para que o amor não naufrague”.

Cecília Jorge, macaense, de famílias antigas da terra, foi jornalista e investigadora muito ativa na cultura de Macau, tendo partilhado com Rogério Beltrão Coelho, português com quem é casada, uma editora, a dos Livros do Oriente. Tem várias obras consagradas ao encontro de culturas, ponto essencial da identidade cultural macaense, concentrando-se em muitas delas na apresentação da matriz chinesa de Macau. De regresso a Portugal, trouxe na bagagem entre os diversos títulos publicados, um livro de poesia dedicado a Macau, Poemas para Macau (2020), no qual vai descrevendo em verso o encontro de culturas como o mais típico da identidade macaense, tantas vezes unida nos corpos e dividida nas mentes de quem transporta muitas matrizes diferentes, sendo duas mais evidentes, a portuguesa e a asiática. São muitas as interrogações de quem se sente puxado por diversos lados, como nos explica em “Mestiçagem”, de que aqui se registam alguns versos, datados de 1991:

 Quem sou?

 Donde venho? De que lado

  do mundo?

 E para onde vou?

 Quanto sangue se misturou

 até me chegar às veias confuso?

 (…)

 Corsário reinol…aventureiro

 antepassado e pai foste

  e num abraço me geraste

 no ventre de mãe asiática

 (Jorge, 2021, 31)

Há então um momento em que chega a hora da partida, justificado pela desidentificação com a cidade contemporânea, onde o eu poético, apesar das suas raízes asiáticas não consegue encontrar o conforto de um espaço idêntico ao das suas memórias de infância e de adolescência, como se lê no poema “Macau”

 Poema que (mal) escrevo

 lápis e papel virtual

 em cada noite de insónia

 memórias que se perdem

 no despertar

 desta urbe travestida que se arrasta

     que grita

 (Jorge, 2021,36)

É o sinal da partida, com a consciência de que no caminho seguirá consigo “a humana partilha/solidariedade/e amizade” (Ibidem), perto ou longe, será transportada até Macau pelo afeto macaense em torno de uma chávena de chá, pelo que afirma em “Lembra-te da cor do ‘mar’”, poema datado de 1991

 Macaenses

 nossa gente

 Ainda que em volta de

 uma só

 taça de chá.

(Jorge, 2021, 47)

Se em Maria Anna Tamagnini é-se conduzido até Macau belíssimo espaço de jardim, já com António Manuel Couto Viana se sente vibrar na sua obra a dimensão histórico-poética, não apenas do eu poético, mas do povo português, sendo este domínio aprofundado por José Augusto Seabra, que lhe confere uma aura amorosa sagrada e consagrada pela palavra, da terra e dos seus virtuosos habitantes, empenhados na sua lealdade. A complementar a zona onírica, surgem os depoimentos poéticos muito reais e saudosos de Beatriz Basto da Silva e Rui Rocha. Este último, com Cecília Jorge, acentua o momento histórico da viragem de macaenses que optaram pela diáspora. Em Cecília Jorge a partida será realizada sem nunca perder de vista a dimensão comunitária da partilha de raízes em torno dos momentos festivos, sempre acompanhados pela gastronomia, hoje património cultural da humanidade, culminando numa simples chávena de chá.

Macau espaço de convívio físico, mas também espiritual, será cantado ainda em Poemografia de Macau (2019), na obra trilingue mais recente de António Duarte Mil-Homens (1949-), com prefácio do atual embaixador Vítor Sereno, à época cônsul de Macau. Este poeta é profissional de fotografia desde 1984, cuja atividade iniciou em 1974, tendo vivido por longo tempo no território, onde exerceu a profissão e a par desta começou a desenvolver a faceta poética. Regressado de Macau, trouxe consigo a sua Poemografia da terra, na qual perpassa o sentir de muitos portugueses que fizerem deste porto abrigo temporário. Para o eu poético nos primeiros versos de “Macau é seio” a terra é a mãe dadivosa, que o alimentou e lhe permitiu a existência, em tempo de migração a que poderia sucumbir:

 Macau é seio

 Macau é ventre

 Macau é mudança,

 (Mil-Homens, 2019,26)

Ao longo da Poemografia, percebe-se o quão único é aquele pequeno espaço, com a China logo ali ao lado, mas separado, por uma ligeira fronteira, como explica em “Portas do Cerco”, o posto transfronteiriço sucessor do muro erguido pela primeira vez em 1573 a dividir Macau e a China em “A entrada noutro mundo/outra lei” (Mil-Homens, 2019,34). E, ainda hoje, depois da criação da Região Administrativa Especial de Macau, formalizada na transferência de poderes a 20 de dezembro de 1999, se verifica a existência de uma Lei Básica de Macau, que alinha em muitos pontos pelo direito português e garante um estilo de vida ocidental à população por cinquenta anos, ou seja, até dezembro de 2049.

Porém, é no encontro dos sentidos com um espaço radicalmente outro que o fotógrafo/poeta se sente desperto na certeza de que este lhe faculta o acesso a um mundo diverso. Leiam-se as suas palavras em “Nesta Macau me endoido”:

 Nesta Macau me endoido,

 Neste retiro me mereço

 Neste covil me entesoiro

 E sem querer me esqueço.

 (Mil-Homens, 2019, 84)

Porém, só por breves momentos se esquece da sua herança portuguesa, já que a memória imagética e fotográfica é constantemente avivada pela presença do património histórico e afetivo português, como se lê em “Molhada, esta calçada portuguesa” (Mil-Homens, 2019, 88). Sofre ainda fisicamente de um sintoma que o recorda da presença em terra não estranha, mas em transformação frenética, distante do seu sossegado país. Nela se mantém constantemente ativo, estimulado, vigilante, por causa “Desta Macau que me provoca/ Insónia prenhe, vontade pouca/ De desligar, de adormecer” (Mil-Homens, 2019, 92). Constata que em terra oriental chinesa e de Macau muito mais é o vivido imaginado do que o real, num mapa disperso, impressionista criado pelos sentidos no seu confronto com uma cultura distinta, que dá origem a uma esplendorosa geografia mental, como sugere “Nesta geografia/sem mapa” (Mil-Homens, 2019, 102). Assim, o seu sentir é confuso, regozijante, atento à procura de uma resposta existencial, como declara em “Exílio ou opção”:

 Mantido à tona

 Desta demanda

Em comunhão?

Aqui Macau,

Além China,

Almejo ainda salvação…

(Mil-Homens, 2019, 105)

Macau é durante parte do caminho a resposta existencial certa para o eu poético, pelo menos até ao momento da despedida: não física, mas mental. Porque se o sinal de partida foi dado e o poeta regressou Portugal:

 Não sei onde te encontrar,

 Procuro onde me rever,

 Em torno tudo a mudar,

 A velha Macau a morrer

 (Mil-Homens, 2019, 142)

isso não significa que tenha de facto abandonado aquele espaço que lhe proporcionou a vida, ou melhor, a energia para continuar a viver, já que afirma em “Irei reinventar-te no regresso” a incapacidade de esquecer a terra que o viu nascer como pessoa e agora, longe, renascer:

 Da memória já renasces,

 Como se naufragado tivesses,

 Macau

 E, à vista do que recresce,

 Me condenes ao redito,

 Da água brotando do Lilau.

 (Mil-Homens, 2019,122)

 澳門,

你從記憶裏重生,

就如曾遭遇海難。

而審視再次生成的東西,

你會逼我重新描述,

阿婆井流出的水。

(Tradução de Xu Caiyan 徐彩燕, 2019,124)

E como se diz de quem bebeu da água dessa Fonte do Lilau nunca mais esquece Macau, também António Mil-Homens, à semelhança de todos os outros poetas e poetisas aqui trazidos, ficará para sempre ligado à misteriosa e sagrada Terra do Nome de Deus.

Bibliografia

Jorge, Cecília. 2021. Poemas para Macau. Prefácio de Vera Borges. Macau: Livros do Oriente.

Mil-Homens, António Duarte. 2019. Poemografia de Macau. Macao Poemography. 《澳門詩像》.Macau: Instituto Cultural do Governo da Região Administrativa Especial de Macau.

Rocha, Rui. 2012, A Oriente do Silêncio. Lisboa: Esfera do Caos Editores.

Seabra, José Augusto. 1990. Poemas do Nome de Deus. 《神的名字》Macau: Instituto Cultural de Macau.

Silva, Beatriz Basto. 1996. Silêncios. Macau: Edições Mar-Oceano.

Tamagnini, Maria Anna Acciaioli. 1991. Lin Tchi Fá. Flor de Lótus. Macau: Instituto Cultural de Macau.

Viana, António Manuel Couto. 1991. Até ao Longínquo China Navegou. Macau: Instituto Cultural de Macau.

25 Set 2024

A simplificação do mundo

A linguagem tem muitas funções, salta à vista a de instrumento essencialmente social. Por meio da palavra, tanto oral como escrita, participamos no mundo, moldamo-lo à nossa imagem e semelhança e os mais inventivos chegam mesmo a recriá-lo.

Tradicionalmente, os chineses atribuem a invenção da linguagem a Canjie, um dos ministros de Huangdi, o Grande Imperador Amarelo. Note-se que antes do aparecimento da linguagem social propriamente dita, já a religiosa tinha surgido pela mão de Fuxi, o Primeiro dos Cinco Imperadores Augustos.

A linguagem na sua faceta social terá sido fruto, em algumas versões, da observação das pegadas dos pássaros, noutras da leitura atenta das carapaças das tartarugas.

Diz-nos o quarto maior filósofo daoísta, naquela que ficou conhecida pela obra de Huainanzi, que “Canjie inventou a escrita, a fim de poder governar todos os oficiais e dirigir todos os assuntos. Os tolos utilizam-na para anotar o que não devem esquecer, os sábios servem-se dela para transmitir pensamentos profundos antes de desaparecerem. Os perversos utilizam-na para deixar registadas mentiras que os desculpem da morte de muitos inocentes.” (Huainanzi, cap. 8, in Anthologie des Mythes et Légends de la Chine Annciene, org. de Rémie Mathieu, Gallimard, 1989)

Interessa-nos reter a justificação socio-política chinesa para o aparecimento da escrita. Na versão mais positiva, surgiu para organizar e governar os homens, na mais negativa, acrescentamos nós, é um excelente instrumento de domínio. Pensamos com a linguagem e não antes dela, comunicamos e impomos, quanto temos força para tal, também através dela.

Sabia bem esta lição o Primeiro Imperador Ying Zheng, que subiu ao trono com o nome de Qin Shihuang, à letra o Primeiro Imperador dos Qin. Este conseguiu impor o reino Qin a todos os outros Estados Combatentes, entre 230 e 221 a.C. O Primeiro Imperador unificou o país, centralizou o poder económico, político e administrativo. Impôs uma só moeda e padronizou a linguagem, com base na escrita do pequeno Selo ou Xiaozhuan, isto é, na grafia utilizada no reino de Qin.

Contra a ânsia uniformizadora e redutora do Imperador, reagiu, como é fácil de perceber, a maioria dos intelectuais à época, muitos deles filiados na tradição confucionista, completamente avessa a modelos padronizadores e a simplificações. Começaram a correr históricas satíricas sobre o Imperador e ele respondeu previsivelmente: mandou queimar todos os livros, à excepção dos cientificamente úteis, aqueles relativos à medicina, agricultura e outros domínios directamente relacionados com a sobrevivência das gentes. Mas deixemos o construtor da Grande Muralha e do Exército de terracota repousar o sono dos grandes…

A reter, a simplificação da escrita utilizada como arma política centralizadora. Mais tarde, durante as dinastias Han, tanto do Oeste como do Leste, a linguagem escrita voltaria a sofrer novos processos de simplificação, o primeiro, com a adopção da Escrita Oficial, ou Lishu, por volta do século 3 a.C. e o segundo, entre o século 2 e 3 d.C, com a adopção da Escrita Regular, ou Kaishu, também denominada de Escrita Verdadeira ou Zhenshu – o estilo predominantemente quadrado que ainda hoje vigora entre os chineses, quando utilizam os caracteres, sobretudo, para funções sociais.

Os séculos foram correndo e as simplificações no domínio da escrita abrandaram, até que a chegada de missionários ocidentais à China, nomeadamente a de Mateus Ricci, volta a trazer a questão da linguagem chinesa para primeiro plano. Novamente as necessidades comunicativas falaram mais alto. Como colocar a mundividência chinesa ao dispor dos ocidentais?

Ricci optou, no início do século XVII, pela utilização do alfabeto latino para transcrever os caracteres chineses. Após a sua tentativa, outras se seguiram, sendo de destacar as do francês Nicolas Trigault, que publicaria em 1625 um livro intilulado: UM GUIA PARA INTELECTUAIS OCIDENTAIS e, sobretudo, a do inglês Thomas Francis Wade, que, após as Guerras do Ópio, em 1867, publicaria um alfabeto fonético para a linguagem chinesa, conhecido por sistema Wade, que, não só perdurou até aos nossos dias, como é bastante semelhante ao próprio Pinyin, isto é ao alfabeto latino chinês, reconhecido oficialmente no presente pelos chineses.

Às tentativas ocidentais para transcrever foneticamente a linguagem chinesa, com recurso ao alfabeto latino, vieram juntar-se os esforços chineses, nascidos da nova mentalidade que, em 1911 transformou, com Sun Yat-sen, o Império do Meio em República do Meio.

Os republicanos criam um sistema fonético, o Zhu Yin Zi Mu, que deveria vigorar em todo o país. Neste tipo de transcrição, recorria-se a 37 símbolos para registar todas as palavras no dialecto de Pequim.

Como já anteriormente sucedera, houve a necessidade de mexer na linguagem para a tornar uniforme, isto é, extensível ao maior número possível. Não obstante, a linguagem escrita e os vários dialectos locais foram preservados. Por isso, aos olhos dos que tomaram o poder em 1949, este sistema possuía dois grandes defeitos: não era capaz de funcionar como base comum para unir todas as minorias nacionais, nem de promover o intercâmbio internacional, por não recorrer a um alfabeto latino, que pela sua simplicidade pudesse ser entendido tanto por estrangeiros, como servir de fundamento à criação de uma escrita, ausente de muitos dos dialectos nacionais.

A transcrição fonética dos nacionalistas não implicava uma mudança radical na escrita, era uma uniformização ao nível oral e para consumo interno, entenda-se, para divulgação da mensagem e ideais republicanos.

Em 1949 os comunistas tomaram o poder. Traziam consigo um mundo ideológico radicalmente novo. Eles não queriam pontes com a tradição, pelo contrário, a palavra de ordem era revolucionar e em todos os campos. Por um lado, necessitavam, para espalhar a “sua boa nova” de uma linguagem, que funcionasse como um instrumento social eficaz.
Por outro, debatiam-se com um problema, como espalhar a nova mensagem se a maioria era iletrada?

Havia que cultivar as pessoas sem demora, para tal precisavam de uma arma simples, eficaz, que chegasse rapidamente às massas. Ainda no ano de 1949 é criada em Pequim a Associação para a Reforma da Linguagem Escrita Chinesa e em 1952 é estabelecido, com carácter oficial, o Comité de Pesquisa para a Reforma da Linguagem Chinesa. Este Comité, como esclareceria Zhou Enlai, no discurso proferido, em 1958, aquando da aprovação final do Novo Alfabeto Fonético Chinês, tinha tido como principais objectivos: a simplificação dos caracteres chineses; a popularização de um discurso comum (Putonghua) e a criação de um alfabeto fonético chinês.

Em 1956, o Conselho de Estado estabelecia o primeiro esquema para a simplificação dos caracteres chineses, como meio de erradicar iliteracia. Para a nova mentalidade, era necessária uma escrita com menos traços, que poupasse energia e tempo a professores e aprendizes, que permitisse, a um cada vez maior número de chineses, aprender e colocar o país no caminho do progresso científico.

Também era fundamental para a propagação do novo mundo ideológico, um discurso comum, que tivesse como padrão o dialecto de Pequim. Este, com a ajuda de um alfabeto fonético passaria a facultar não só o intercâmbio nacional, pela criação de um sem-número de materiais linguísticos e de catalogação simplificados, como também o intercâmbio internacional. Foi então aprovado o Plano para o Alfabeto Fonético pelo Congresso Nacional Popular em 1958, que adoptou, como seu modelo, o alfabeto latino.

A simplificação da linguagem chinesa possui características manifestamente chinesas. Aos olhos ocidentais, este sistema linguístico continua a ser tremendamente complicado. A nossa tendência é para simplificar a simplificação, por assim dizer. Por isso, nas transcrições fonéticas, esquecemos os acentos, que povoam individualmente as palavras e não existem por acaso, mas sim para evitar as homofonias, pródigas neste sistema linguístico.

Esquecemos e seja o que Deus quiser. Mas esse esquecimento levanta um grande obstáculo para aqueles que sonham em transformar o chinês numa língua romanizada, pois embora seja possível olvidar os acentos em palavras soltas e frases curtas, uma transcrição fonética de um escrito chinês sem os tais grafismos, que marcam os tons, torna qualquer texto absolutamente incompreensível.

No entanto, um escrito romanizado pejado de acentos, transforma a leitura, sobretudo se for de grande porte, num martírio. Por enquanto, o alfabeto fonético chinês é um instrumento de leitura e nada mais. Também não pretendia ser, pelo menos aos olhos das gentes do dragão, qualquer outra coisa.

Não obstante, a simplificação da linguagem chinesa para consumo interno, funcionou. Esta estendeu-se a um maior número de pessoas e pagou um preço – leia-se, desejado – por isso. Cortou com a tradição. Hoje, a nova geração é incapaz de entender os textos clássicos nas suas versões originais. Assim, só para nós, estrangeiros, as simplificações linguísticas são reformas, para os chineses do continente foram uma verdadeira revolução que os pôs a olhar para um mundo novo, simplificado, sem raízes, onde o progresso e a ciência, mais do que palavras, são verdadeiros programas de vida, que doravante poderão, como religiosamente se acredita, ser concretizados por meio da escrita simplificada.

25 Jun 2024

O Vazio Amoroso em François Cheng

Ana Cristina Alves, Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

29 de maio de 2024

I

O vazio amoroso

François Cheng (1929 – ) é um grande escritor, filósofo, calígrafo, enfim sinólogo, descendente de chineses nascido e radicado em França. Tem alguns estudos profundos dedicados à pintura chinesa, nos quais se destaca o seu pensamento filosófico, como em: L’ Espace du Rêve: mille ans de Peinture Chinoise (1980); L´Écriture Poétique Chinoise: Suivi d’ une Antologie des Poèmes des Tang (1982) e, sobretudo, Vide et Plein: Le Langage Pictoral Chinois (1991), com reflexões muito interessantes sobre o vazio do ponto de vista filosófico.

Possui ainda uma obra literária da qual se destacam dois romances premiados, ambos traduzidos para português pela editora Bizâncio, o primeiro Le Dit de Tianyi (1998), que lhe valeu o prémio Femina; o segundo, que aqui se analisará L’ Éternité n’ est pas de Trop (2002) , a propósito do vazio amoroso pelo qual se conduzirá o leitor até ao vazio filosófico. A obra, traduzida para português por Francisco Agarez, sob o título de A Eternidade não é de mais, valeu-lhe o Grande Prémio da Francofonia da Academia Francesa.

Através dela somos conduzidos a finais da dinastia Ming, tal como sucedeu a François Cheng quando convidado para um colóquio em Royaumont numa antiga abadia restaurada, deu com um legado de um erudito chinês à biblioteca conventual, no qual descobriu uma novela notável intitulada História do Homem da Montanha. Perdeu-se na narrativa, que relatava a paixão amorosa persistente para além do tempo, sendo recompensada trinta anos mais tarde, pela persistência do par amoroso. Mas o mais extraordinário está para vir. Cheng, embora muito tocado pelo livro, seria atraído pelo mundo dos afazeres profissionais, até que volvidos vinte anos foi de novo convidado a participar num encontro intelectual em Royaumont. Saltou-lhe à memória com acutilância a história que não tinha sido capaz de esquecer. Porém, quando chegou à biblioteca a obra havia desaparecido. Logo se comprometeu a refazer a narrativa que tanto o impressionara. Chegaria, por fim, a coincidência mais admirável de todas, outra vez distraído por razões mundanas, só conseguiria realizar o seu intento, dez anos depois, ou seja, somando aos vinte que tinham passado, trinta anos corridos. Tudo indicava que a realização do feito seria tão fora de série como a coincidência a que o autor chamou “milagrosa” (Cheng, 2002, 8).

Aquela grande paixão regressa à vida agora pela mão do escritor, que a consagrará em França e no mundo através do mais importante galardão literário francês. Garantida fica a imortalidade do par amoroso chinês, Dao-Sheng, “o Santo do Dao” o médico adivinho, e Lan-Ying, a “Fina Orquídea”, que atados pelo fio vermelho invisível do destino com que o Velhinho da Lua (月老) põe e dispõe casamentos e relações, voltam a encontrar-se contra todas as expetativas. 1

Tal é possível, como nos explica o escritor, porque “a verdadeira paixão amorosa não tem apenas a ver com o coração e os sentidos. Revela eminentemente do espírito” (Cheng, 2002, 12). Ora o espírito (神shén) ultrapassa e supera as vicissitudes humanas, que haviam afastado o inicialmente violinista, Dao Sheng, da filha da família Lu, a Menina Lan-Ying, por intervenção do Segundo Senhor Zhao, o marido da futura Senhora Ying, um homem devasso, brutal, incompetente, descrito como “um perfeito inútil, tirano a passar das marcas” (Cheng, 2002, 32). Tudo se complica e parece afastar o par predestinado. Dao Sheng faz frente ao futuro marido de Lan-Ying, sendo degredado e sujeito a trabalhos forçados, que lhe danificam o pulso e o perdem para o violino. Mas como homem de recursos que era, foge do cativeiro, sendo recolhido num mosteiro taoista, onde revela pouco vocação monástica, contudo grande apetência para o estudo da medicina, pelo que, depois de mais de uma dezena de anos de estudo de plantas medicinais e receitas, se transforma num habilidoso curandeiro e adivinho. Já a senhora Ying, depois de casada, é, para sua sorte, “completamente abandonada; por isso leva uma vida muito mais tranquila” (Cheng, 2002, 33), dedicando-se a causas humanitárias budistas, o que lhe valeu a amizade e o respeito do bonzo local, o Grande Monge, que a salvaria quando esta foi raptada por bandidos. Ora eles viriam a pedir um resgate avultado ao Segundo Senhor Zhao, que hesitou em pagar a soma solicitada por uma mulher que deixara de o atrair, por estar sempre triste e melancólica.

O Grande Monge budista terá um papel fulcral na intriga, já que não só salvou a Senhora Ying do cativeiro armado pelos ladrões, como recolheu o monge taoista, curandeiro e adivinho, quando percebeu a sua grande competência médica. Será também por intermédio do Grande Monge que se intui estar a aguardar a Senhora Ying algo de muito bom, porque, segundo nos diz,“quem sobrevive a uma calamidade irá conhecer a felicidade mais tarde” (Cheng, 35).

Quanto a Dao Sheng, “por mais meditações e exercícios de vacuidade que se impusesse, não conseguia livrar-se da ideia fixa que trazia consigo”. (Cheng, 2002, 26) – Lan-Ying, sobretudo aquele sorriso dela que tanto o cativara e o acompanhara ao longo dos anos mais penosos de degredo. Ele era um homem especial, um santo conhecedor da via do Dao (道), apesar de não ter atingido o desprendimento ou iluminação total (Cheng, 2002, 20):

Além de tratar dos doentes, a sua profissão principal ainda é a adivinhação. E não é esta que propõe o preceito: «fazer o que o homem puder, deixar que o Céu faça o resto?» Com efeito, uma vez que estejam reunidas as condições e as oportunidades, e que o homem tenha feito aquilo que está ao seu alcance, o que não deve acontecer, não acontece, e o que deve acontecer, acontecerá.

Dao Sheng, que nunca tinha perdido Lan-Ying da ideia, vai à procura da amada, encontra-a, já ela está muito doente, ainda assim consegue salvá-la. Afinal, era um excelente médico, apesar de não ter os pergaminhos necessários, por isso a si mesmo se apelida de curandeiro. É simples, bom, honesto e trabalhador e está convencido de que a sua arte e ciência ficam a dever o melhor de si mesmas ao pensamento (Cheng, 2002, 52):

A adivinhação e a medicina não se fazem só com receitas, que elas nada são sem o pensamento que lhes serve de fundamento (…) Diz-se que está tudo ligado, que não se podem separar os sinais humanos dos que vêm da Terra e do Céu. Dentro deste todo orgânico, o traço de união não é nenhuma corrente, nem nenhuma corda, mas sim o sopro que é ao mesmo tempo unidade e garante da transformação.

A história avança e ele consegue salvar a amada do estado doentio em que se encontra. No entanto, as convenções da época mantêm o par à distância, apenas lhes permitindo depois da cura da Senhora Ying, trocas de olhares, sorrisos furtuitos e silêncios pejados de sentido. Entretanto, aproxima-se a morte do Segundo Senhor Zhao, que tinha ficado paralítico, na sequência de múltiplas cacetadas nas costas, aquando do assalto dos bandidos, que pululavam nos tempos tumultuosos dos finais da dinastia Ming, nos quais grassava a pobreza e as casas senhoriais se tornavam muito apetitosas. A inação e o ópio conduzem o Segundo Senhor à tuberculose, ditando-lhe um final de vida mal vivida e esquecida entre os fumos. É chamado Dao Sheng, de reconhecido mérito, para que o tente salvar in extremis. Só que, por um lado, ele já está às portas da morte, por outro, Dao Sheng acaba por se revelar, atraindo novamente a desgraça sobre a Senhora Ying e ele próprio. O marido, cuja paralisia e a beleza rejuvenescida da mulher, lhe voltam a despertar um estranho desejo, descobre finalmente a razão de ser da graciosidade recuperada da Senhora Ying e nos momentos finais de vida chama-a para a enforcar com o cinto do roupão.

Aparentemente bem-sucedido, todos dão a Senhora Ying como morta, quando a sua fiel empregada, Xiao Fang, manda chamar o médico, que literalmente a ressuscita num ato conjugado de ciência e fé. Ele que tinha escutado a um dos padres jesuítas, vindo do “Oceano do Oeste”, ao qual salvara do paludismo, uma citação de Santo Agostinho, “ama e faz o que quiseres” (Cheng, 2002, 195), lança-se rumo à segunda salvação de Lan-Ying, num cruzamento da inspiração cristã com as excelentes técnicas medicinais taoistas, que implicam, quer a massagem baseada no magnetismo da mão, quer o recurso ao sopro vital, numa eficaz respiração boca a boca.

Estas crenças e técnicas conjugadas com uma postura ética irrepreensível, levam-no a questionar-se e a prosseguir exausto com a tarefa de salvamento “Com essa humildade, essa sinceridade conseguirá alcançar o shen? Lançar um fio ténue no espaço imenso para apanhar um ganso selvagem perdido?” (Cheng, 2002, 184).

Salva a mulher e daí para a frente ficarão fisicamente separados, mas espiritualmente mais unidos do que nunca, ele no mosteiro da montanha, ela, depois da morte do marido, liberta-se da família Zhao e vai para o convento das freiras do Vale de Guan-yin (观音Guānyīn). Ambos com a plena consciência de que a separação era momentânea, mas a jura, eterna “mais perene do que o Céu e a Terra” (天长地久Tiāncháng-dìjiǔ) ou “para além dos rochedos apodrecidos e oceanos ressequidos” (大海干涸、岩石腐烂Dàhǎi gānhé, yánshí fǔlàn) (Cheng, 2002, 122), mesmo que não seja já nesta vida, porque Dao Sheng dá sinais de velhice, o seu sopro vital está fraco, respira com dificuldade e “sente-se ferido de vazio” (Cheng, 2002, 214).

O final fica em aberto. Será que voltam a reencontrar-se? Senão nesta existência por certo para a próxima, porque se o vazio aproxima, também fere e mata, o sopro vital é limitado e para se eternizar terá de regressar à origem, ao sopro primordial, a esse que tudo pode, por entre os temas essenciais da vida humana, o nascimento, a velhice, a doença e a morte, faz acontecer o melhor “uma pitada de aspiração aqui, uma onça de amor acolá” (Cheng, 2002, 52).

II

O Vazio Filosófico

O sopro vital concede-nos o melhor a que podemos aspirar, a inspiração e o amor, pelo modo como se relaciona com o vazio, mas atenção porque existem sopros deficientes, perniciosos e malignos (Cheng, 2002, 52), uns e outros podem favorecer a união ou a separação, a cura ou a doença, a vida ou a morte, tudo e nada, na medida em que são constituídos pelo vazio, a potência que se pode atualizar no que o espírito ou a pessoa desejar.

Em Vide et Plein (1991), François Cheng alerta para o facto de o Vazio ser essencial no pensamento chinês, ao mesmo nível dos princípios Yin e Yang, que são perspetivados como sopros vitais, sendo o próprio vazio não o nada que se opõe ao tudo, mas “um elemento eminentemente dinâmico e operante” ( Cheng, 1991, 45). Ou seja, em termos práticos, é ele quem vai permitir a conjugação e a harmonização de dois elementos tão distintos como o Yin e o Yang. O vazio é então definido como um “princípio base” no pensamento chinês (Cheng, 1991, 46) essencial na filosofia, expressando-se através do silêncio, mas também na própria noção de vazio enquanto complementar do cheio, potência de infinitas possibilidades, que ainda não podem ser ditas, por exemplo no taoismo ou no budismo; filosofias extremamente sensíveis e dependentes do vazio. Na pintura, este expressa-se pelo espaço não pintado, na poesia pela supressão de certos vocábulos, na vida pela conjugação de elementos viabilizada por ele, um mediador que harmoniza a rígida oposição, como a montanha e a água (Cheng, 1991, 47) numa paisagem. O vazio, enquanto potência, permite toda e qualquer transformação, sendo esta noção o pilar da filosofia chinesa. A transformação proporciona, indica e favorece a vida, a ausência da mesma manifesta a morte.

De acordo com a perspectiva de François Cheng sobre a ontologia taoista, que me parece legítima, esta apresenta-nos uma versão cosmogónica em que o Dao (道) é primeiro, mas surge em estreita conexão com o Nada, este será o vazio essencial a nível numenal, o sopro primordial, enquanto Wú (无), ou não-ter ou não haver, vai proporcionar o ter/haver Yǒu (有), entrando a partir daqui um terceiro termo mediador, o vazio fenomenal, o Xū (虚), o sopro existencial, elemento de união entre todos os seres, que corresponderá nos budistas ao Kōng (空). É do mesmo vazio que se trata, que tem como par complementar o pleno/cheio e atua a nível fenomenal, quer dizer da realidade material que nos rodeia Shì(事). Toda a nossa existência se desenrola entre o vazio e o cheio, quanto mais vazios formos, mais plenos de possibilidades nos tornamos. Quanto mais cheios, tanto menos dinâmicos e mais coisificados. Cabe-nos decidir se queremos ser (ativos e dinâmicos) ou ter (coisas, ocupar espaços). As filosofias taoista e budista privilegiam o vazio, o silêncio, o recolhimento, a humildade e o apagamento. Já a filosofia confucionista poderá privilegiar a construção de obras, livros, bibliotecas, escolas, etc. O caminho certo, está como de costume, no meio termo, na via do meio, nem pessoas muitas cheias, nem muito vazias, nem países muito cheios, nem muitos vazios, de modo a favorecer a harmonia que permita viver bem. Sem espaço corpóreo não há possibilidade de ligação, nem amor, nem beleza, onde o sopro amoroso possa desenvolver-se a atuar, sem estruturas materiais não há obras de arte: livros, pinturas, rolos caligráficos, estátuas, museus, palácios, templos, belas paisagens em que se possa contemplar o sol e a lua, repletas de possibilidades ou de vazio.

A representação do vazio, na filosofia daoista, é o vale, a nível fenomenal; porém, a nível numenal é o espírito do vale, daí a importância do espírito (神shén), que nos religa à esfera sagrada, à zona do mistério como indica o capítulo VI do Daodejing (《道德经》)no qual o Dao (道) é descrito como “o Espírito do Vale” (谷神Gǔ shén) e a “Fêmea Misteriosa” (玄牝Xuán pìn):

谷神不死

是谓玄牝

玄牝之门

是谓天地根

绵绵若存

用之不勤

(Graça de Abreu, 2013,38)

(O Espírito do Vale não morre/diz-se a Fêmea Misteriosa/As portas da Fêmea Misteriosa dizem-se a raiz do Céu e da Terra/Continuamente existente/ Usa-se mas não se esgota2.)

Por último, e para melhor entendermos o sopro amoroso que uniu Dao Sheng e Lan-Ying, aqui fica a primeira parte do capítulo 42 do Livro da Via e da Virtude, que nos revela a cosmogonia daoista e, ao mesmo tempo, a possibilidade de ligações amorosas:

道生一

一生二

二生三

三生万物

万物负阴而抱阳

冲气以为和

(Graça de Abreu, 2013, 110)

(O Dao gerou o um/ O Um gerou o Dois, o Dois gerou o Três/ o Três gerou os Dez Mil Seres/ Os Dez Mil Seres carregam o Yin e abraçam o Yang/ a harmonia nasce do vigoroso sopro mediador)

Voltando ao início, quando o casal amoroso se encontrou, o que os uniu foi sopro vazio mediador. Como descreveria o narrador naquela noite do 15ºdia do 8º mês em que a lua brilhava em todo o esplendor nos céus, e o par, com o apoio da fiel empregada, consegue iludir a apertada vigilância da família Zhao, sentando-se os dois lado a lado, de mãos unidas a contemplar a lua: “E ficam as quatro mãos sobrepostas, por elas passando a respiração harmoniosa dos dois” (Cheng, 2002, 132).

Referências Bibliográficas

Cheng, François. (1980). L´Espace du Rêve: mille ans de Peinture Chinoise. Paris: Phébus.

_____________. (1982) ); L´Écriture Poétique Chinoise: Suivi d’ une Antologie des Poèmes des Tang. Paris: Éditions du Seuil.

_____________. 1991). Vide et Plein: Le Langage Pictoral Chinois. Paris: Éditions du Seuil.

______________. (1998). Le Dit de Tianyi. Paris: Albin Michel.

_____________. (2002). L’ Éternité n’ est pas de Trop. Paris: Albin Michel.

Graça de Abreu, António. (Org. e Trad.) (2013). 《道德经》Tao Te Ching. Livro da Via e da Virtude. Ed. Bilingue. Lisboa: Vega.

Wang Suoying, Ana Cristina Alves. 2009. Mitos e Lendas da Terra do Dragão. Lisboa: Caminho.

Wang Suoying, Ana Cristina Alves (2009) Ver Mitos e Lendas da Terra do Dragão. Lisboa; Caminho.

Traduções da autora do artigo.

31 Mai 2024

O banho de Buda

Ana Cristina Alves, Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

I

O Dia de Buda

A todos os seres especiais se associam fenómenos raros, sejam eles pessoas excecionais ou divindades, sobretudo pela altura do nascimento, como é o caso de Jesus Cristo, Confúcio e o Buda Histórico Siddharta Gautama Shakyamuni. Quando Jesus nasceu uma estrela brilhou pujante nos céus, encaminhando os Três Reis Magos do Oriente até Belém, uma estrela poderosa e sumamente inteligente guiou até nós os Reis Sábios há 2024 anos com os quais partilhou a sua transcendente sabedoria.

E que dizer do nascimento de Confúcio? Está associado a um unicórnio (麒麟 Qílín) como seria de se esperar do organizador do sistema meritocrático que introduziu as Cinco Virtudes constantes na China (Benevolência, Justiça, Ritos, Sabedoria e Confiança). O Qilin era tão bom, que apenas voava, sem sequer pisar as ervinhas.

Quanto a Buda, pilar do sistema espiritual miscigenado chinês, nasceu em 624 a.C, tendo falecido em 544 a.C . Era de ascendência real, filho do rei Suddhodana e da rainha Maya, mas tal como Jesus Cristo, teve dois pais, um terreno, outro celestial, já que se conta que a mãe engravidou não pelo Espírito Santo, mas por contacto com um elefante branco e pela axila, assim gerou e concebeu o corpo sagrado. Buda ao nascer terá saudado o mundo com um rugido de leão, pelo que o Budismo ficaria para sempre associado à figura totémica deste felino. Deu então sete passos, donde imediatamente brotaram sete lótus. Apontou com uma mão para o Céu e outra para Terra, afirmando simultaneamente a jurisdição sobre ambos os domínios. Foi então que todas as divindades celestiais se apressaram a prestar-lhe homenagem, incluindo nove dragões que o banharam efusivamente. Este episódio ocorre no oitavo dia do quarto mês lunar e, desde então a história tem-se vindo a repetir num banho ritual à estátua de Buda um pouco por toda a Ásia onde esta religião impera espiritualmente. Já Jesus seria batizado bem mais tarde, em adulto, por S. João Baptista no Rio Jordão. De qualquer modo, a água é um importante elemento purificador e hoje nas igrejas cristãs as crianças recebem o seu batismo nos primeiros meses de vida.

Em 2022 tive oportunidade de publicar um texto poético intitulado Visitações, de temática espiritual, pelo que aqui deixo o poema “O Banho de Buda” (Alves, 2022, 65)

O banho é sagrado,

Buda, que o recebeu,

Foi por nove dragões batizado,

No 8º dia do 4º mês lunar,

Sete séculos antes de o Senhor chegar.

Veio o grande Meditador ensinar

A libertar do sofrimento e da dor.

Os dragões receberam-no

Com salvas de água,

Em honra do branco progenitor

Celestial que o criou no corpo de Maya

Enquanto o pai Suddhodana a terra governava.

De acordo com informações recolhidas no site do Instituto Cultural de Macau, relativo ao Património Cultural, se a introdução do Budismo no sul da China, mais concretamente no distrito de Xiangshan (香山), data da dinastia Tang, do reinado de Xiantong (唐咸通), entre 820 e 872, já o primeiro templo budista é o de Kun Iam (观音), ou o templo de Guanyin (觀音), na pronúncia do Norte, sendo bastante posterior, dos finais da dinastia Ming, de 1632; a sua primeira nomenclatura foi templo de Pou Chai (普濟禪院), mais tarde seria rebatizado com o nome da Boddhisattva da Compaixão. Situado na Avenida do Coronel Mesquita está associado ao amor universal, que Guanyin distribui por todos. Neste templo seria assinado o primeiro tratado diplomático entre chineses e americanos, o “Tratado Sino-Americano de Mong-Há” em 1844 entre o Vice-Rei de Cantão, Ki Jing, e o ministro plenipotenciário Caleb Cushing. Mas aí também se celebra o amor particular, já que o seu jardim abrigou durante bastante tempo duas árvores entrelaçadas que simbolizavam o amor terreno e a fidelidade conjugal contra todas as convenções.

Um outro templo em lugar de destaque entre os vários dedicados a divindades budistas é Kong Tac-Lam, mais recente, datando do início da primeira república, importante pelo facto de surgir ligado à educação feminina de mulheres budistas em Macau, num tempo em que estas já deviam ser educadas, a bem da nação, ainda que depois de cursadas, regressassem a casa para educar os filhos de acordo com o ideal de mulher republicana então vigente, que produzia esmeradas donas de casa. Também as mulheres budistas, bonzas e laicas, beneficiaram dos ares dos novos tempos, quando se deslocavam a ou para Kong Tac-Lam a fim de se letrarem.

Entre as atividades festivas do Dia de Buda, importante festividade em Macau, cuja sociedade conta com uma mistura de várias religiões em que o Budismo é proeminente, nos templos e associações os crentes juntam-se para orar, discursar sobre matérias budistas e para banhar buda. Ora este banho conduz-nos à reflexão sobre importância do corpo sagrado.

II

O corpo sagrado

O corpo é espaço de sentido, quando se pressupõe uma divisão entre alma e corpo, em que a alma entra e sai do corpo a seu bel-prazer, como no Cristianismo ou é ainda o próprio sentido quando não há cisão entre a esfera física e a espiritual.

O corpo sagrado é único.

A literatura fornece-nos uma vasta gama de metamorfoses mágicas nos contos de bruxas e de fadas, e não só. Quem não se recorda do pacto com diabo atuando no corpo de Dorian Gray, personagem famosa de Oscar Wilde? De Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll ou, mais recentemente, da Metamorfose de Kafka?

Na Metamorfose de Kafka temos um bom exemplo de uma ligação indissociável entre um psiquismo recalcado por uma vida social e familiar sem sentido e o corpo. Gregor Samsa, o protagonista, que, acima de tudo, denuncia um estado de coisas absurdo, sofre um processo de metamorfose, onde o corpo é palco de uma revelação animalesca, quase demoníaca, que rompe com todas as leis naturais e sociais da ordem estabelecida. De repente, o caixeiro-viajante acorda quando a mãe, no seu tom suave, o vai alertar por estar atrasado para o emprego, ele responde já semitransformado em inseto, e sente um profundo horror pela sua voz: “Gregor teve um choque ao ouvir a sua própria voz responder-lhe, inequivocamente a sua voz, é certo, mas com um horrível e persistente guincho chilreante.” (Kafka, 1975,11)

Não fica completamente metamorfoseado em animal, torna-se uma figura repelente por ser uma mistura entre o humano e o animal. Ora esta mistura entre duas ordens biológicas diferentes oferece as figurações mais assustadoras, como bem viram os budistas ao fazer guardiões dos seus templos os famosos lokapalas. Mas, voltando a Gregor, quando tenta levantar-se da cama, percebe que em vez de braços e mãos tinha apenas as inúmeras perninhas, que não cessavam de se agitar em todas as direcções e que de modo nenhum conseguia controlar (Kafka, 1975,13).

O percurso do protagonista afasta-o da família rumo à morte. Ele rejeita a ordem estabelecida. Continua a ligá-lo à existência o afeto pela irmã e as manifestações artísticas: a sua arte, a da carpintaria, e a música que a irmã lhe fazia chegar aos ouvidos por meio do violino tocado. Ele questiona-se: Poderia realmente ser um animal quando a música tinha sobre si tal efeito? (Kafka, 1975,81)

No caso específico da Metamorfose de Kafka, tudo se processa no mundo natural, não havendo qualquer apelo a entidades divinas, sejam elas imanentes ou transcendentes.

Nota José Gil em Metamorfoses do Corpo: «Amuletos, talismãs, feitiços, elixires e relíquias conservam em si energias dominadas.» (1980,20). O corpo é o recetáculo que permite todas as metamorfoses e receção de sentidos. O sacralizado, o demoníaco e o mágico precisam de um lugar de manifestação. O corpo é médium entre várias realidades. É microcosmos natural, é uma minúscula organização, encerrando em si o princípio da unidade plural tão caro a Leibniz – tudo é um, porque um é tudo. Ele é, ainda, um espaço sociocultural, pois além de corpo particular, é coletivo: contém em si a herança dos mortos e a marca social dos ritos (Gil, 1980:43) e, por último, é médium ou microcosmos religioso, domínio privilegiado de comunicação e manifestação do sagrado, surja ele na forma de espírito, antepassado, imortal ou deus.

Como é possível então estas potencialidades exacerbadas irromperem no corpo? Será que lá estão desde sempre? A resposta vai depender do tipo de filosofia religiosa adotada. Numa perspetiva imanentista e, portanto, claramente oriental, o corpo é animado de espírito desde sempre. Nada existe fora dele, mas o divino que o anima não se manifesta espontaneamente, pois são necessários exercícios físicos e espirituais para que o sagrado se revele. Na tradição cristã, o corpo, mesmo o parcialmente divinizado, onde já ocorreu a ligação essencial ao sagrado, não escapa ao sofrimento na sua condição telúrica, e experimenta martírios que os budistas relegam para a esfera infernal.

No Cristianismo foi necessário Cristo humanizar-se e sofrer o calvário e ser pregado numa cruz para através do seu sofrimento libertar a humanidade. Fica então assente que não teria havido libertação coletiva sem o martírio individual de um corpo particular e muito especial, o do filho de Deus.

Para os budistas, o martírio do corpo prova o contrário, que ainda não se deu a libertação da esfera do sofrimento e do desejo. O mundo fenomenal desperta com os seus desejos um sorriso numenal compassivo, abrindo-se uma única exceção para o buda do futuro, Maitreya, também conhecido na China por Buda que Ri ( 笑佛 Xiào Fó ) e por Buda Compassivo, que há-de colocar novamente a roda do dharma em movimento. O seu mudra é dharmachakra, onde o polegar e o indicador de ambas as mãos formam um círculo representando a roda do dharma.

O corpo, no Budismo tântrico e no Mahayana, permite a união com a esfera divina pela libertação, por meio de exercícios propedêuticos respiratórios e meditativos, do verdadeiro sentido, do sagrado, e não se pode prescindir dele em qualquer momento. Também no Cristianismo o corpo de Cristo, embora mantendo um estatuto dual, portanto separado em relação ao espírito, tem a possibilidade de inaugurar uma nova aliança, justamente na Última Seia:

Jesus, partindo o pão e dando-o aos seus discípulos «isto é o meu corpo», sela uma nova aliança ao mesmo tempo que depõe a sua presença no corpo dos discípulos. E quer seja no domínio da história das sociedades ou no da ascese mística, o enquadramento e o «encher» de um significante flutuante, vazio, acompanha sempre a constituição de um corpo novo – que inaugura o processo de aparecimento da presença do sentido. (Gil, 1980,73)

A questão que se coloca é: há uma afinidade de raiz em relação ao modo como é vivido o aparecimento de uma nova ordem por meio do corpo, no Budismo e no Cristianismo? No Cristianismo, através da Última Seia, o que notamos é a assimilação de um corpo divino que está fora, que literalmente transcende os discípulos e que uma vez incorporado os modifica, unindo-os à esfera sagrada. Entretanto, o que sucede ao próprio corpo de Cristo é que morre como homem para ressuscitar numa esfera transcendente e divina onde viverá para todo o sempre, sentado à direita do Pai. No Budismo, liberta-se o corpo do que este tem de matéria pesada e de ilusão para que melhor se possa unir ao divino. A verdadeira energia perpassa a matéria e precisa dela para se manifestar. Isto só é possível porque o divino já está previamente em cada corpo particular, não é incorporado nem assimilado; antes é libertado, quando são ultrapassados os estados ilusórios, sociais e culturais que dividem a pessoa e a afastam da energia envolvente, definida como pura atividade, corpo subtil, ou na tradição budista e taoista esotérica, embrião espiritual.

Nunca encontramos no Budismo uma cisão entre puro espírito e a matéria como na tradição cristã. Não há um princípio que era simplesmente Verbo, embora haja carne que regresse ao Verbo, mas diferentemente da tradição cristã, no Budismo volta-se ao Verbo sem abandono da condição material, ou melhor, sempre através desta até à libertação definitiva da roda da reincarnação. Até lá ore-se e banhe-se Buda.

Referências Bibliográficas

Alves, Ana Cristina. (2022). Visitações. Fafe: Labirinto.

Cowell, B et al. (ed) .(1969). The Budha-karita in Buddhist Mahâyâna Texts. New York: Dover Publications, Inc.

Dia de Buda.(2024). Património Cultural, Instituto Cultural de Macau. Disponível em: https://www.culturalheritage.mo/pt/detail/102270?AspxAutoDetectCookieSupport=1

Frédéric, Louis. (1995). Buddhism. Paris, New York: Flammarion.

Gil, José.(1980). Metamorfoses do Corpo. Lisboa: A Regra do Jogo.

Kafka. (1975). A Metamorfose. Mem Martins: Publicações Europa-América.

MM023-Templo de Pou Chai (Kun Iam Tong). (s.d). Bens Imóveis Classificados. Património Cultural de Macau. Disponível em: https://www.culturalheritage.mo/pt/detail/99953?AspxAutoDetectCookieSupport=1

Tatjana & Mirabaina Blau. (1999). Buddhist Symbols. New York: Sterling Publishing Co. Inc.

24 Mai 2024

Ao correr da Pena: Exercício de Tradução em torno de Camões

* Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

12.5.2024

I

…na outra a pena

Na comemoração dos 500 anos do nascimento do poeta nacional, Luís Vaz de Camões, alegadamente em 1524 ou 1525, sabemos que cedo ficou órfão de pai, este viria a morrer em Goa, tendo, por isso, sido criado pela mãe no quadro familiar de pequena nobreza lisboeta. Também sabemos que cursou em Coimbra, onde se distinguiu nos estudos e no interesse pela literatura clássica, que transportaria tanto para a sua poesia épica como lírica.

Conhecemos-lhe ainda os amores, que o haviam de manter bem agarrado à vida, projetando-o para aventuras guerreiras e exílios donde tiraria o maior proveito. A paixão, talvez por uma aia da rainha, conduzia-o à expulsão e à guerra no Norte de África, donde regressaria irremediavelmente ferido num olho.

Também por sentimento, agora de amizade, experimentaria os calabouços de Lisboa, quando ao socorrer um amigo feriu um oficial da Corte. E foi ainda o amor que havia de o acompanhar por quase duas décadas de viagem no Oriente, amor à Pátria, vertido nos Lusíadas, amor às belas donzelas orientais, entre as quais se destacam Bárbara e, sobretudo Dinamene, por último ou primeiro na ordens da razão e da emoção, amor à poesia, que lhe valeria a publicação do poema épico em 1572 e uma magra tença apaziguadora da fome até 1580.

Não assisti ao seu naufrágio no rio Mekong1 (湄公河Méigōng hé), e portanto o que se segue é fruto da imaginação, mas parece que o vislumbro com o poema numa mão, hesitando entre o salvamento da sua bem-amada chinesa e a obra-prima que assim considerava, a justo título e de acordo com os padrões limitadamente humanistas da época.

Em Os Lusíadas, como bem refere Yao Feng no Prefácio a 100 Sonetos de Camões 賈梅士十四行詩, traduzidos por Zhang Weimin (張維民) “o Literato subscreve uma visão eurocêntrica, ou, mais corretamente, lusocêntrica do mundo” (Yao, 2014, 10). Os tempos eram propícios ao centramento das perspetivas, pelo que pouco mais há a acrescentar sobre o assunto.

Quando medito sobre a biografia de Camões vem-me à ideia o inferno em vida, em que uns mais do que outros, ardem entre as fogueiras ateadas pelas limitadas mentalidades vigentes em todos os tempos. Mas também, pela atenção às suas vivências, o modo de o contornar. Nesse sentido, tendo tido oportunidade de rever há pouco uma obra de Italo Calvino intitulada na tradução portuguesa As Cidades Invisíveis (2008), na qual nos é apresentado um diálogo entre Marco Polo e Kublai Kan, onde são descritas as cidades, em conversa com o imperador dos tártaros, imaginadas e reais que o veneziano terá visitado, deparo-me no final com uma oportuna reflexão sobre o inferno dos vivos, que passo a citar (Calvino, 2008: 166):

O inferno dos vivos não é uma coisa que virá a existir; se houver um, é o que já está aqui, o inferno que habitamos todos os dias, que nós formamos ao estarmos juntos. Há dois modos para não o sofremos. O primeiro torna-se fácil para muita gente: aceitar o inferno e fazer parte dele a ponto de já não o vermos. O segundo é arriscado e exige uma atenção e uma aprendizagem contínuas: tentar e saber reconhecer o que não é inferno, quem e o que não é inferno, e fazê-lo viver, e dar-lhe lugar.

Creio que Camões optou pelo segundo modo de não sofrer o inferno, nas suas caminhadas pela vida, agarrando-se a cada experiência em cada momento sempre pelo coração, mesmo que tal não parecesse: quando o imagino a optar entre dois bens, a Dinamene chinesa ou a poesia, agarrou-se ao amor maior, à poesia, através da qual pôde imortalizar o seu amor não digo menor, mas terreno. E ainda hoje, cinco séculos depois, todos cantamos e recordamos Dinamene, por exemplo, na primeira quadra de um dos célebres sonetos em honra da “ninfa inspiradora”:

 Alma minha gentil, que te partiste

 Tão cedo desta vida descontente,

 Repousa lá no Ceo eternamente,

 E viva eu cá na terra sempre triste.

Num outro cenário, talvez o poeta nem sequer tenha tido opção. Era mesmo impossível salvar Dinamene, com ou sem Lusíadas numa das mãos. Impossível para todos, exceto para aquele que empunhava a pena mágica, que aparentemente perdeu amada para as águas do rio, mas na realidade a soube transformar em musa inspiradora da sua poesia, elevando-a ao panteão das figuras imortais pelo menos enquanto Portugal, os portugueses, seus descendentes e todos os amigos da cultura portuguesa existirem aqui e espalhados pelo mundo

II

Exercícios de tradução ao correr da pena

Zhang Weimin (張維民), nascido em Beijing em 1951, tem vindo a traduzir os nossos maiores poetas para chinês, Fernando Pessoa e Camões, tendo recebido em 1986 o Prémio de Tradução da Sociedade de Língua Portuguesa. É dele a tradução 100 Sonetos de Camões 賈梅士十四行詩, sobre a qual adiante se refletirá nos sonetos que a tradição literária acredita serem dedicados a Dinamene. Antes, porém, vamos regressar ao Prefácio desta obra com que inaugura o primeiro da colecção Escritores Chineses e Lusófonos, coordenada pelo Professor Yao Jing Ming, numa edição do Instituto Cultural de Macau, a fim de proceder a uma meditação sobre a possibilidade de traduzir poesia. Há uma longa discussão nos Estudos de Tradução sobre a tradução poética, com autores a defenderem a impossibilidade de traduzir satisfatoriamente na área, a menos que tal ação seja realizada por um poeta, porque o que se joga neste tipo de tradução é menos a comunicação eficaz do sentido e a fidelidade, tanto à ideia, como à palavra que a encarna, e mais a uma sensibilidade especial, que implica quer a atenção pictórica à imagem quer ao ritmo poético, incluindo às rimas dos versos, sobretudo na poesia tradicional. Tal cuidado será para muitos teóricos da tradução condição exclusiva de poetas. No entanto, sabemos que a sensibilidade poética não é do domínio exclusivo dos poetas, pelo que um bom tradutor apenas necessita de deixar correr a sua emoção em diálogo com o poeta para que a tradução fique bem, numa comunhão empática com as ideias e sentimentos do autor, logo, do meu ponto de vista, não é preciso ser poeta, basta que se deixe encantar pelas emoções do autor, transpostas em figurações e ritmos.

Um (a) tradutor (a) meritoso (a) no campo da arte literária é muito mais do que um profissional consciencioso, ainda que também o deva ser; é alguém que intui, para o caso em estudo, o que o poeta sentiu e pensou, entrando num diálogo em uníssono, como que guiado por um poder indizível à maneira dos unicórnios que comunicam telepaticamente, sem que possam dar conta ou apresentar os passos lógicos da conversa contemplativa que no reino imaginário realizaram. Diz Yao, ele próprio tradutor, que assina o prefácio com o seu nome poético Yao Feng, numa reflexão certeira sobre a tradução poética (Yao, 2015, 14):

Traduzir é difícil, traduzir poemas é uma aporia. Não é uma pura busca de palavras por palavras, exige (…) mesmo um diálogo espiritual entre o tradutor e o poeta: é como se fosse possível ouvir o pulsar do sangue dentro das veias, ora um silêncio, ora um rumor. Em resumo, traduzir é um “recriar a intenção poética”.

Zhang Weimin é muito bem-sucedido na recriação da intenção poética de Camões, nos quatro sonetos que se julga poderem estar diretamente associados a Dinamene: “Alma minha gentil, que te partiste/你去了,我純潔的心靈”; “Chara minha inimiga, em cuja mão/你是我尊貴的仇家”; “Quando de minhas mágoas a comprida/長久沉浸在痛苦的想像”; “Ah minha Dinamene! Assi deixaste/ 阿蒂娜妹! 你這樣地棄別了”.

Proponho aqui analisar em termos da tradução de Zhang, além do soneto a Dinamene, a primeira quadra e o último terceto do soneto “Alma minha gentil que te partiste/你去了,我純潔的心靈” (Yao, 2014, 36-37):

Alma minha gentil que te partiste

你去了,我純潔的心靈,

Tão cedo desta vida descontente,

過早了地從這個不幸的人生,

Repousa lá no Ceo eternamente,

永恆地樓住在天上,

E viva eu cá na terra sempre triste

留我在人間永遠哀傷。

A intenção poética é recriada com sucesso, já que o sentido é transmitido com fidelidade, muito embora não haja inteira reprodução do jogo rimático em português, pois apenas o segundo e o quarto versos rimam imperfeitamente (生/傷). No entanto, no quarto verso além da rima final, assistimos a um feliz jogo de rima interna(永遠/哀傷).

Quanto ao último terceto, as rimas finais não são mantidas, ou melhor, são substituídas por uma rima interna e há o eclipse da imagem dos “olhos”, para além de se proceder a uma adaptação cultural da palavra “Deos” (天主), que é substituída por “divindade” (神).

Roga a Deos que teus anos encurtou,

就去祈求縮短你生命的神,

Que tão cedo de cá me leve a ver-te,

儘早將我帶去見你——

Quão cedo de meus olhos te levou.

如同那樣早,從這裡帶你而去。

Verifica-se ainda ao nível do primeiro terceto, que aqui não é apresentado, o recurso a uma metáfora expandida no último verso “Da mágoa, sem remédio de perder-te”, onde “remédio” é traduzido por “não há remédio que possa curar” (無藥可醫).

Vamos encontrar o recurso a idênticas técnicas de tradução em Ah minha Dinamene! Assi deixaste/ 阿蒂娜妹! 你這樣地棄別了”. Atente-se à primeira quadra e ao primeiro terceto (Yao, 2014, 146):

Ah minha Dinamene assi deixaste

呵蒂娜妹!你这样地弃别了

Quem nunca deixar pôde de querer-te!

永遠不能棄別對你的愛的人!

Que já, Nympha gentil, não possa ver-te!

美麗的仙女,再也看不見你!

Que tão veloz a vida desprezaste

你如此輕率地蔑視生命!

É eficaz a estratégia de Zhang Weimin para “achinesar” o nome de Dinamene, aquela a quem a tradição sempre considerou chinesa, ainda como bem notou a Professora Cristina Zhou da Universidade de Coimbra, na palestra dedicada a este tema apresentada nas Conferências de Primavera de 2024 do CCCM, o nome em si não soa a chinês, a menos que, acrescento agora, se encurte e recorra a um sufixo inapelavelmente autóctone “mei”, que tanto pode ser menina como irmã mais nova. Ora creio que Zhang Weimin colocado perante a aporia de traduzir um nome supostamente chinês tão grande foi o que fez: transformou, em termos práticos, Dinamene em “Dina Mei” (蒂娜妹), ou seja, em menina Dina.

Igualmente feliz foi a estratégia de adaptação cultural seguida pelo tradutor, quando traduziu “nympha” por “imortal” (仙女), palavra bem mais chegada à tradição chinesa. Soube também manter o ritmo de alta tensão emotiva da primeira quadra, salpicando-a de pontos de exclamação à maneira do original. A sua recriação poética apenas parou nas rimas finais, que não foram reproduzidas na tradução.

Passando agora à análise do primeiro terceto, nota-se a necessidade de reinterpretar os dois últimos versos por respeito ao sentido na língua de chegada, que implicaram a deslocação de palavras do terceiro para o segundo verso:

Nem somente falar-te a dura morte

你竞答應殘酷的死神

Me deixou, qu´apressada o negro manto

那樣快將黑絨蓋住你的眼睛,

Lançar sobre os teus olhos consentiste.

都不讓我對你僅僅說一句話。

A tradução dos sonetos de Camões realizada por Zhang Weimin é muito meritória, até porque, como se viu, é na tradução poética que um tradutor se expõe mais, arriscando em cada palavra, em cada sentido, como nos passos que dá na vida. E se é verdade que se pode compor e começar de novo nas nossas caminhadas pela existência, valendo o mesmo para as novas traduções, não obstante haver passeios de vida ou de morte, o mesmo sucede com as traduções, em cada uma delas o tradutor de um poema sabe que tem de se dar por inteiro, convertendo a razão em coração, sob pena de falhar esse momento poético pelo menos até à próxima oportunidade, se ela surgir.

Bibliografia

Calvino, Italo. (2008). As Cidades Invisíveis. Lisboa: Teorema.

Yao Jing Ming. (2014). 100 Sonetos de Camões 賈梅士十四行詩. Tradução de Zhang Weimin (張維民). Macau: Instituto Cultural de Macau.

Zhou, Cristina. (2024). “Silhuetas de Macau no Mito de Camões”. In Conferências da Primavera do CCCM, 2024, Conferência de Macau, 8 e 9 de março.

Segue-se na referência ao rio Mekong a pronúncia do Sul da China.

14 Mai 2024

A dança do leão (舞獅 wǔ shī )

A dança do leão (舞獅 wǔ shī ) diz-se em patuá antigo “brinco do leão” pode ser realizada por um ou dois acrobatas, acompanhados por gongos, címbalos, bátegas e tambores do leão ou tímbalos, ao som de panchões, bombas e fogo- -de-artifício, representando este último uma chuva de boa sorte. O leão é um guardião, variando a simbologia da sua máscara, conforme a cor. A máscara vermelha representa a coragem, a dourada, o vigor e a verde a amizade ou benevolência. A dança do leão é comum a muitas culturas asiáticas, incluindo a japonesa, a vietnamita e a tailandesa.

Segundo a Baidu Baike, podemos dividir os leões em dois grandes tipos, à maneira dos mandarins: leões letrados ou culturais (文獅 Wén shī) e leões marciais (武獅Wǔ shī), correspondendo às escolas budistas do Norte e do Sul, as principais danças deste felino. Recorde- -se que na Escola do Norte, a iluminação é gradual, implica estudo e dedicação ao saber, à maneira de uma escola tomista ocidental; já no Sul, como se de seguidores agostinhos se tratasse, a iluminação é súbita, e muito mais emotiva, implicando, por vezes, gestos repentinos e choques como gritos, palmadas, etc. Mais do que no saber discursivo, concentra-se na apreensão intuitiva da realidade.

Siga-se este diálogo ocorrido entre o monge Chan, Hongbian (弘辯) , retirado do quarto tomo de Junção das Fontes das Cinco Lâmpadas 《五燈會元》, mais concretamente dos Diálogos de Hongbian, neste caso com o imperador Xuan da Dinastia Tang (唐宣), intitulado “Não há divisão entre o Norte e o Sul na escola Chan/禪門本無南北” , que será apresentado na versão original, seguindo-se a respetiva tradução explicativa do surgimento destas duas escolas: 唐宣宗問:「襌宗何有南北之名?」對 曰:「襌門本無南北。昔如來以正法眼 付大迦摩葉”,展轉相傳,至二十八祖 菩提達摩,來遊此方為初祖。 暨第五 祖弘忍大師在蘄州東山開法,時有二 弟子,一名慧能,受衣法,居嶺南為六 祖;一名神秀,在北揚化。其後神秀門 人普寂者,立秀為六祖,而自稱七祖。 其所得法雖一,而開導發悟有頓漸之 異,故曰南頓北漸,非禪宗本有南北之 號也。 「 (弘辯語錄,引自《五燈會 元》卷四 Apud Jiang, 1997: 192)

O imperador Xuanzong da dinastia Tang perguntou o seguinte ao Mestre Chan Hongbian: “Por que razão se dividem o Budismo Chan nas escolas em Dança do Leão do Norte e do Sul?” Ao que o Mestre retorquiu, “Não há qualquer divisão originária entre Norte e Sul. No início Buda transmitiu os seus ensinamentos ao discípulo Mahakashyapa, que foram passando de geração em geração até ao 28º patriarca Bodhidharma, o qual viajou até aqui para se transformar no Primeiro Patriarca Chinês.

À época em que o Quinto Patriarca Hongren ensinava em Qizhou, na região de Dongshan, tinha dois discípulos, um chamado Huineng, que herdou o manto de mestre. Este viveu no Sul da China em Lingnan, vindo a ser o Sexto Patriarca; o outro, chamado Shenxiu pregou no Norte da China, tendo sido estabelecido como o Sexto Patriarca por um dos seus discípulos, Puji, que a si mesmo se intitulou o Sétimo Patriarca. Ambas as escolas seguem a mesma doutrina, advogando métodos diferentes para se alcançar a iluminação, que na Escola do Norte é progressiva, enquanto na do Sul é repentina. Porém, quanto ao Budismo Chan não há divisão de raiz entre o Norte e o Sul.”

Este enquadramento é necessário para se compreender as Danças do Leão do Norte e do Sul. No Norte, os leões parecem cães pequineses ou de Fu (cão de Buda, 佛狗 Fó gǒu), surgem aos pares com máscaras de tons laranja e amarelo, os machos, com arco verde na cabeça, as fêmeas com um vermelho: vão realizando acrobacias para diversão e entretenimento, de arte pela arte, como fazer cócegas, lamber pêlos, coçar orelhas e bochechas, rolar e brincar com a bola, que é a pérola mágica, figurando, desde tempos imemoriais, tanto o disco solar, como o lunar. Por vezes, surgem em família, 2 adultos, 2 crias, em “Lar da Dança do Leão” (獅子之鄉 Shīzǐ zhī xiāng). Já na Dança do Sul são introduzidos movimentos de grande perícia acrobática, implicando as artes marciais e, estas, relações ao mundo da religião budista Chan.

É bom não esquecer que mais do que divisões geográficas estão aqui em causa enquadramentos religiosos, não obstante se acreditar que há uma íntima relação entre a Dança do Sul, bem mais simbólica, e a província de Guangdong, onde terá surgido, tal como o sexto Patriarca Huineng, ligado ao Sul. Esta dança subdivide-se em dois grandes tipos: fut San/fó shān (佛 山Montanha do Buda), onde predomina a cor negra, e Hok San/hè shān (鹤 山Montanha do Grou), de cor amarela, entre outros subgéneros como Fut- -Hok/fó hè (佛鹤). Os leões das duas principais escolas, explica o antropólogo António Pedro Pires, “são ambos de modelo tigre, com grande policromia” (2018: 237).

O leão chinês terá de despertar (醒狮 xǐng shī), sendo convidada uma individualidade local para acordar o leão, como esclarece a professora Ana Maria Amaro na obra Brinco do Leão (1984), quando os olhos e a língua são pincelados com cinábrio, de seguida ele lança-se à caça do tesouro, a fim de atacar e conquistar a presa e o envelope vermelho, o laisi (利是), ao obtê-lo bate cabeça em sinal de agradecimento e retira-se vitorioso.

O Leão, quando entra numa vila ou domínio, presta primeiro homenagem ao templo budista local, aos ancestrais e depois anda pelas ruas para espalhar a boa sorte e a felicidade por entre a população e os negociantes, como no Ano Novo chinês quando “colhe verduras” choi chang (採青), ou seja, envelopes vermelhos pendurados em alfaces. A dança do leão não pode faltar por ocasião de todas as grandes celebrações, a começar, como já se referiu, pela Festa 獅子舞 (shī zi wǔ) da Primavera, mas também ao longo do ano em inaugurações de hotéis e outros estabelecimentos comerciais; encontramo-lo, ainda, presente em congressos e exposições, bem como em receções oficiais e para homenagear gente ilustre.

Com a divulgação do Budismo na China, foi introduzida na Festa da Primavera, a Dança do Leão (“舞狮”), com o objetivo de afastar maus espíritos e calamidades e de trazer boa sorte e fortuna às populações locais. A entrada desta dança na vida palaciana remonta à dinastia Tang (618-907), tornando-se componente importante das celebrações na corte.

Recorda António Pedro Pires, em Festividade do Ano Novo Lunar em Macau, que o felino seria “transformado em símbolo de realeza, força e poder e assumido pelo Budismo como seu totem protetor, o leão rapidamente se transformou num poderoso afugentador de demónios” (…) possui portanto uma função de divertimento e outra mágico-religiosa, como libertador dos espíritos maléficos causadores de doenças, tempestades e inundações. (Pires, 2018: 243). Da realeza, força e poder do leão fala a sua etimologia, já que o sinograma escolhido para o representar, 獅 (shī), possui junto ao radical de animal 犭(quǎn), o de mestre (師shī ), preceptor ou chefe.

Segundo Ana Maria Amaro, há ainda uma outra leitura etimológica possível, a de “que a palavra leão se relacione com a figura do seu domador, mestre em artes” (1984: 17), sendo possível, segundo a autora, defender até com base nestas duas leituras, que as danças do Norte e do Sul são diferentes na sua origem, a do Sul posterior à do Norte.

Esta última remontará talvez à dinastia Han (séc. III a.C e séc. II. d.C), inspirada em domadores estrangeiros das estepes ocidentais, que levariam os seus espetáculos à corte chinesa, ao passo que a do Sul estaria diretamente conectada ao Budismo Chan e aos monges de Shaolin (少林) , portanto às artes marciais e à iluminação repentina, sem necessidade de outra ascese que não as práticas corporais apropriadas, concentradas no exercício físico, na respiração e na meditação silenciosa. (Amaro, 1984: 177)

Na minha opinião, a Dança do Leão deve ser perspetivada na ótica do Budismo Chinês, tanto nas danças do Norte como nas do Sul, já que é relativamente fácil encontrar semelhanças de postura entre os exercícios acrobáticos do Norte, que implicam muitas piruetas e brincadeiras em mesas empilhadas e pódios em que o animal se movimenta, ora subindo, descendo ou saltando, como se fossem exercícios graduais e académicos da inteligência discursiva, própria da Escola do Norte; aproximando-se a dança do Sul de carácter religioso, desprendido e marcial à congénere budista do Sul.

Em Macau, esta dança é, ainda realizada no âmbito da religião popular, em comemoração de certas divindades muito veneradas, como o Deus da Literatura e da Guerra, (關帝Kuan Tai/ Guāndì), o Deus da Terra, (土地公Tou Tei /Tǔdìgōng) e a Padroeira dos Mareantes (娘媽Néong-Má/ Niáng Mā).

O certo é que os leões, bem como as suas danças, ficarão para sempre associados à figura do Buda Histórico, Shakyamuni, que tal como o epíteto indica é “O Sábio do Clã dos Shakyas”, este teria tido como figura totémica um leão, tendo o Buda Histórico emitido um rugido aquando do seu nascimento, de acordo com os sutras budistas.

Seguiram-se depois os shīzi (獅子), talvez, os filhos de mestres superiores ou budistas (Amaro, 1984:17), que quando dançam devem, de acordo com os registos do Budismo Chan, sacudir pulgas, de modo a não serem contaminados por estas e outras poeiras do mundo, afastam assim o negativo, atraindo o positivo e a boa sorte para todos, de acordo com um dos Diálogos de Zhicang (智藏), retirado do terceiro tomo de Junção das Fontes das Cinco Lâmpadas 《五燈會元》”As pulgas do Leão comem a sua carne/狮子身中蟲,自食狮 子肉” (Jiang, 1997:134) 師普請次,曰:「因果歷然,爭奈何! 爭奈何!」時有僧出,以手托地。 師 曰:「作什麼?」 曰:「相救!相救! 」師曰:「大眾,這個師僧猶較些子。 」僧佛袖便走。 師曰:「獅子身中蟲, 自食獅子肉。」(智藏襌師語錄, 引自 《五燈會元》卷三)

Enquanto o bonzo Chan Zhicang trabalhava com os restantes confrades, disse: “É claro que temos que pagar pelas nossas faltas, mas como o faremos? Mas como o faremos?” Foi então que um monge se adiantou, sacudindo as mãos para o chão. O Mestre inquiriu: “O que estás a fazer?” Ao que ele gritou: “Socorro! Socorro!” O Mestre disse: “bonzos, é correto o que ele está a fazer.” O monge endireitou as mangas e partiu. Ao que o mestre Chan acrescentou: “As pulgas do leão, comem a sua carne.” Pode-se então encarar as várias danças do leão na China à maneira budista como uma forma de libertação das múltiplas pulgas que afligem o corpo do animal, que ao brincar, pular e guerrear, corre em busca de um tesouro que implica sorte e prosperidade para toda a comunidade.

Referências bibliográficas

• Amaro, Ana Maria. 1984. O Brinco do leão. Macau: Direcção dos Serviços de Turismo.

• 百度百科2020狮子舞[shī zi wǔ] https:// baike.baidu.com/item/%E7%8B%AE%E 5%AD%90%E8%88%9E/891685

• Jiang, Lansheng (江蓝生). 1997. 《 禪宗語錄一百則》100 Excerpts from Zen Buddhist Texts. 香港:商務印書館.

• Pires, António Pedro. 2018. Festividade do Ano Novo Lunar em Macau. Macau: Instituto Cultural do Governo da R.A.E. de Macau.

• Wikipédia. 2024. “Dança do Leão” https://pt.wikipedia.org/wiki/ Dan%C3%A7a_do_le%C3%A3o

10 Abr 2024

Exercícios de tradução em torno da poesia amorosa chinesa

No mês da Primavera falemos de amor, e quem melhor para o fazer do que os poetas? Não quaisquer poetas, mas sim os da idade de ouro da poesia chinesa, aqueles que viveram na dinastia Tang (唐,618-907), grande em tudo, mas sobretudo no encontro de culturas e na poesia. Pela sua capital, Chang´an (长安) passeava-se todo o tipo de gente, nacionais e estrangeiros, incluindo estudantes. Eram tantos os que acorriam à capital chinesa que o governo Tang criou gabinetes especiais para acolher os residentes internacionais. Esta dinastia foi a única tão aberta e liberal, a viabilizar a chegada ao poder de uma imperadora, Wu Zetian (武则天, 624-705), e conheceu grandes imperadores como Xuanzong (玄宗皇帝, 685 762).

É a dinastia de Li Bai (李白,701-762), Wang Wei (王维,701-761), Du Fu (杜甫,712-770), Bai Juyi (白居易,772-846) e tantos outros ilustríssimos poetas que entoaram as alegrias e penas do amor como este merecia ser cantado.

Nesta idade de ouro literária, há, como em tantas outras manifestações artísticas, um estilo antigo gutishi ou gufeng (古体诗gǔtǐshī ou 古风gǔfēng) e um estilo moderno jintishi ou gelüshi (近体诗 Jìntǐshī ou 格律诗gélǜshī), sendo o mais moderno característico da dinastia Tang, onde abundam quadras de 5 ou 7 caracteres, denominadas jueju (绝句Juéjù), sendo as quadras de cinco caracteres as wujue (五绝wǔjué) e as de sete caracteres as qijue (七绝qījué), há ainda uma outra forma poética popular constituída por poemas de 8 versos, os lüshi( 律诗lǜshī), também eles de 5 caracteres, os wulü (五律Wǔlǜ)ou de 7 caracteres os qilü (七律Qīlǜ ), seguindo esquemas rimados rigorosos, em que normalmente as sílabas finais rimam. Nas estrofes de oito versos, é habitual as 2ª, 4ª, 6ª e 8ª linha rimarem, ao passo que nas quadras são os 2ºs e 4ºs versos, incluindo por vezes o primeiro verso, sem que tal seja um requisito obrigatório. A rima pode ainda incluir jogos tonais, com alternância entre o 1º e o 2º tons, por um lado, e o 3º e o 4º por outro. Nos lüshi é frequente que os 3ºs e 4ºs versos entrem em relação complementar ou antitética com os 5ºs e os 6ºs. Com a utilização destes recursos estilísticos, no fundo o que se pretende, como nos explicam Wang Guozhang e Wang Anlu (1995, 143): “é tornar os poemas musicais, encantadores, fluentes e fáceis de ler em voz alta”

Recorda-nos Zerbo Freire na sua tradução das Quadras Chinesas (2022) que a poesia Tang conheceu vários períodos, um inicial (618-713) sob a influência da Dinastia do Sul (420-589) repleto de sensibilidade e leveza, seguido de um período ascendente (713-766), no qual o desenvolvimento económico e cultural da dinastia se repercute em vários estilos poéticos e temáticas, encontrando no mesmo período, poetas “românticos” como Li Bai e realistas como Du Fu, ou de espírito ecológico como Wang Wei. Há ainda um período médio (766-836) onde desabrocham vários estilos individuais e um período de declínio (836-907), no qual a poesia acompanha a instabilidade dos tempos, provocada pelas guerras e crises políticas, que Bai Juyi, por exemplo, pôde experimentar.

Certo é que em todos estes períodos foi cantado o amor, correspondido, perdido, achado, distanciado, desaparecido, renovado, abandonado, fatal. Enfim, qualquer expressão amorosa pôde encontrar eco no sentimento fixado na escrita dos poetas, que tão bem souberam apresentar as tonalidades do coração humano.

Comecemos por um poema de Wang Wei, poeta do período ascendente, nascido numa família de mandarins, mas que teve alguns reveses na sua carreira oficial pelo que optou por terminar os seus dias em retiro, enquanto meditava sobre o sofrimento e transitoriedade do mundo, apoiando-se nas escrituras budistas e dedicando-se na sua eremitagem à pintura. Como era um bom pintor, conseguiu conjugar com grande mestria poesia e pintura, angariando fama na tradição chinesa de pintar poeticamente e realizar uma poesia pictórica. (Foreign Language Press, 2008: 109)

Em muitos casos, pode-se pensar no amor terreno como uma flor, dura pouca, desponta, é belo e murcha, ou pior, desparece deixando os amantes infelizes, muito embora seja uma maravilha enquanto dure, mas Wang Wei nesta quadra de cinco caracteres recorda o quanto faz sofrer, já que nos traz uma mulher que chorou sob uma árvore até morrer, após ter perdido o marido em combate, tendo das suas lágrimas em contacto com a terra despontado a ervilha do rosário, abrus precatorius, que é vermelha e redonda:

相思

红豆生南国,

春来发几枝?

愿君多采撷

此物最相思

(Freire, 2022: 22)

Apresento a minha tradução:

Saudoso padecer

Nas terras do Sul cresce a ervilha do rosário,

Quantos ramos despontaram na primavera?

Colhe até mais não poder,

Eis o meu saudoso padecer.

Ainda que não pertença à dinastia Tang, não resisto a apresentar, como complementar a esta quadra, um dos mais belos poemas de amor chineses. Este pertence a Su Dongpo (苏东坡), heterónimo que significa “A Encosta do Leste”, tendo como nome próprio Su Shi (苏轼, 1037-1101). Foi um poeta da dinastia Song (宋朝, 960 – 1279). Este mandarim teve uma carreira oficial muito problemática, porque, como nos recorda Graça de Abreu em Su Dongpo, Poemas (2023: 20) foi honesto e tolo, esquecendo-se de aplicar a si próprio a máxima confucionista de dizer a verdade, mas não toda. Tal imprudência valeu-lhe o epíteto de “Mandarim nómada”, já que passou grande parte da vida a viajar, impelido pelos ventos que sopravam contrafeição da corte.

Eis ao poema de 8 versos e sete caracteres, qilü (七律) em memória da sua terceira mulher, 王朝云(1062年—1096年)deixando o poeta cá na terra sempre triste:

《悼朝云》

苗而不秀岂其天,不使童乌与我玄。

驻景恨无千岁药,赠行惟有小乘禅。

伤心一念偿前债,弹指三生断后缘。

归卧竹根无远近,夜灯勤礼塔中仙。

Em Memória de Zhaoyun

Se o broto não for excelente como poderá ser digno do Céu?

É para mim um mistério tanta virginal pureza.

Ofereço-me a pequena via do meditar,

Por não encontrar na paisagem remédio para o meu mal.

Pago um karma passado com tristeza,

Em futuro de terceira vida interrompida,

Regresso ao repouso da próxima e distante raiz do bambu,

No templo à noite, presto culto diligente à bela imortal.

Bai Juyi, que já viveu nos tempos conturbados da dinastia Tang, foi um mandarim, erudito e eremita, dedicado aos estudos do budismo e do taoismo, que sabia amar a vida. Ele, como refere António Graça de Abreu em Poemas de Bai Juyi foi o poeta mais no coração do povo chinês” (1991: 13). Apresenta uma das mais belas canções de amor da dinastia Tang, triste já que relata os amores fatais do imperador Xuanzong pela concubina, Yang Guifei (楊貴妃, 719-756). Esta intitulada 《长恨歌》foi traduzida para português por Graça de Abreu sob o título de “Canto do Remorso Perpétuo” (1991: 78-84). O amor foi fatal a ambos, porque o imperador negligenciou os assuntos do império em benefício da companhia da concubina. Coincidindo o romance com o início das turbulências na dinastia Tang, mais especificamente, com a revolta do general An Lushan (安禄山), entre 755-763. Esta mergulhou o país numa guerra civil e o imperador viu-se obrigado a abandonar a capital, levando com ele Yang Guifei. Porém, as tropas amotinaram-se, pedindo a morte da amada do soberano, à qual atribuíam todos os males da China. Na sequência da morte da beldade, o imperador abdicou em favor do filho, passando o que restavam dos seus dias entre delírios e esperança de reencontrar a amada no reino dos imortais.

Há mil e uma formas de amar, positivas e alegres, negativas e dolorosas, imaginadas, reais, mas todas sinalizam a presença do amor. Os versos destes grandes poetas sucedem-se, muitos deles dedicados ao amor triste, saudoso, abandonado, descurado e ressentido.

Leia-se esta quadra de cinco versos que nos traz o amor não correspondido e o ressentimento que provoca, tão bem captado na sensibilidade poética, quando alguém gosta de uma outra pessoa, sem o/a excluídos possam entender a razão de tal opção, que nada tem de racional, já que se trata de sentimentos, genuínos na sua espontaneidade. Acompanhemos o eu poético proporcionado por Li Bai:

怨情

美人卷珠帘

深坐颦蛾眉。

但见泪痕显,

不知心恨谁。

(Freire, 2022: 29)

Proponho a seguinte tradução:

Ressentimento

Beldade pregueada, entre cortinas,

Alheada, de sobrancelhas franzidas,

Embora note os vestígios de suas lágrimas,

Desconheço quem lhe provoca as feridas.

Ao queixoso não lhe basta amar, gostaria de ser amado, possivelmente para concretizar uma relação amorosa, desejada, que satisfizesse o seu coração, pelo que ao reconhecer a agitação da dama, lastima-se por não ser ele o alvo das atenções da amada.

Daqui não se segue que Li Bai possua um eu poético ressentido, pelo contrário, era um espírito livre, cavaleiro errante, que pouco aqueceu o lugar na corte como redator da Academia de Hanlin, por não suportar os jogos de poder, inclinado a uma profunda comunhão com a natureza, à maneira taoista, o seu nome próprio Bai (白), “branco” mereceu-lhe o epíteto de Taibai (太白), que significa “muito branco” ou iluminado, relacionando-o com a Estrela da Manhã, o nome que os chineses encontraram para Vénus, que ele honrou à sua maneira, casando quatro vezes e vivendo com escassos bens materiais mas repleto de aventuras e riqueza espiritual.

A Primavera é a estação do despertar de toda a natureza e, por isso, também dos sentimentos amorosos que um outro poeta Tang Liu Fangping (? – 782刘方平) descreve com subtileza associando-os com suavidade e discrição à brisa e ao luar primaveris:

《月夜》

更深月色半人家,

北斗阐干南斗斜,

今夜偏知春气暖,

虫声新透绿窗纱。

(Freire, 2022: 62)

Sugiro a seguinte tradução para esta quadra:

Noite de luar

Noite alta, o luar, quase sem vivalma,

As estrelas da Ursa Maior na sua trajetória bela,

Noite inclinada à suave brisa de Primavera,

Escutando os insetos cantando de novo junto à janela.

O poeta Liu Fangping relata a vontade de amar que surge na primavera, nas noites de luar onde insetos e brisa dedilham as cordas sensíveis do eu poético, que encontra na natureza o seu parceiro amoroso, e não precisa de mais para sentir o calor das sensações a despontar tão juvenis como a quadra natural.

Todos os poetas chineses aqui trazidos têm um traço comum, a subtileza sensível no canto amoroso, figurando-o com o auxílio de elementos naturais, seja a lua, as flores, os pássaros, particularmente os patos mandarim, que simbolizam a relação amorosa, ou as aves que entram em comunhão de alma com o eu poético, como os papa-figos, mensageiros de um amor distante, ou ainda outros seres mitológicos, as fénix. As declarações, as saudades, alegrias e amarguras nunca são apresentadas de uma forma direta, mas através dos elementos da natureza que melhor se conjugam com o sentir poético.

Hoje, tempo de grande exposição de sentimentos, holofotes e espetáculo, poderá ser um bálsamo e um consolo para o mundo termos à disposição este reservatório poético clássico chinês, onde se pode comungar de pequenos gestos criativos que recordam e acompanham, com imenso gáudio, a paisagem primaveril do coração. Termino a partilha do amor de antigos poetas chineses com o homem de estado, poeta e letrado Tang, Zhang Jiuling (张九岭678-740), que expressa a saudade amorosa através de uma amada distante pela força das circunstâncias, comunicando os seus sentimentos em comunhão com a lua:

《望月怀远》

海上生明月,天涯共此时。

情人怨遥夜,竟夕起相思。

灭烛怜光满,披衣觉露滋。

不堪盈手赠,还寝梦佳期。

Pensando no Amado ao Luar

A lua brilhante sobre o mar,

Distantes, mas a partilhar o mesmo olhar.

Sofrem os amantes com a separação,

Toda a noite o mesmo penar no coração.

Ao apagar a vela, surge a lua cheia apiedada,

Envolta em roupa, sinto-a orvalhada,

Sem conseguir ofertar uma mão cheia de lua,

Regresso ao quarto, sonhando contigo de alma pura.

Bibliografia

Freire, Zerbo. 2022. Quadras Chinesas. Macau: Livros do Meio.

Foreign Language Press. 2008. Quick Access to Chinese History. Beijing: Foreign Language Press.

Graça de Abreu, António (Org. Trad. ). 1991. Poemas de Bai Juyi. Macau: Instituto Cultural de Macau.

______________1993. Poemas de Wang Wei. Macau: Instituto Cultural.

______________.2023. Su Dongpo, Poemas. Lisboa: Grão-Falar.

Su Shi (苏轼). 2024.《悼朝云》(Em Memória de Zhaoyun). Baike.Baidu.com

Wang Guozhang, Wang Anlu. 1995. 《唐诗60首今语浅译》. Sixty Annoted Tang Poems. Beijing: Sinolingua.

Zhang Bingxing (Trad.). 2002. 英译中国古典诗词名篇白首 100 Best Chinese Classical Poems.北京:中华书局.

Zhang Jiuling. 2024.《望月怀远》(Pensando no Amado ao Luar) Baike.Baidu.com

21 Mar 2024

A Simbologia do Dragão na Cultura Chinesa

I – A Simbologia do Dragão

O Ano do Dragão inaugura a 10 de fevereiro. Será de Madeira Yang.
Traz prosperidade, sucesso, poder e felicidade.
Serão privilegiadas a imaginação, a criatividade e a responsabilidade.
A cor da sorte será o verde e o elemento a Madeira, que expandirá a energia e o poder criativo do dragão.
Serão privilegiados artistas e profissionais independentes e criativos.
Onde encontrar então a génese da leitura simbólica do Dragão na cultura chinesa? Por um lado, nos mitos, por outro, na caligrafia.
O dragão tem uma existência lógica, que desagua num longo caminho ontológico, já que a sua descrição física conjuga o melhor de todos os animais existentes, como nos revelam as representações da dinastia Tang, nas quais surge com cabeça de camelo, uma pérola mágica na boca, donde se solta por vezes uma nuvem que se transforma em água, outras em fogo, para mostrar que ele controla os poderosos reinos do céu e da água. Tem olhos de coelho, orelhas de vaca, corpo de cobra, patas de tigre, barriga de sapo, escamas de carpa, garras de falcão, e assim por diante. Ele é a máxima potência natural, já que reúne o que há de melhor no reino animal, sendo ainda a máxima entidade sobrenatural, ao apresentar-se como comandante supremo das águas do céu, dos mares, dos rios e até das que correm subterrâneas na terra.
O dragão chinês não se limita a possuir o poder supremo natural e sobrenatural, ele é ainda a máxima entidade humana, o rei-sacerdote, que governa a terra, porque foi investido para tal pelo céu, como nos indica a leitura realizada pelo Dr. Ong Hean- Tatt (1996), a partir do caracter 龍 (Lóng):

No lado esquerdo do carácter observa-se a forma de um guardião humano, que encarna o poder divino e protege as coisas sagradas, ao passo que o lado direito não surgia nas escritas mais antigas como a Oracular (1400-1100 a. C) ou a de Bronze (1100-300 a.C), tendo sido acrescentado no período do Pequeno Selo (300 a. C) à figura humana . Este ostenta em ambas as mãos algo de sagrado. À direita vemos uma longa linha, simbolizando a veste santificada do sacerdote, onde figuram os três traços característicos da água, porque o dragão é a divindade das chuvas e dos rios.
Nos mitos chineses, o dragão surge associado ao primeiro imperador mítico chinês, Fuxi (伏羲) e a sua irmã ou consorte, conforme as versões. Fuxi é considerado o pai de todos os chineses, o Dragão Azul, como lhe chamam. Simboliza o maior dos homens, o patriarca da grande nação espiritual chinesa, o dominador do Cavalo-Dragão (龍馬 lóng-Mǎ), que emergiu das águas do Rio Amarelo (黃河 Huáng Hé) , tendo-lhe concedido a possibilidade de decifrar os oito trigramas fundamentais da cultura chinesa, que formam a base do Clássico das Muações ( 《易經》 Yìjīng), por entre o emaranhado da sua crina.
Fuxi e Nüwa (女媧) eram metade humanos, metade dragões, como se pode verificar pelas representações deles. Por isso, foram os criadores supremos: Fuxi da cultura chinesa e Nüwa dos seres humanos (女媧造人Nǚwā zào rén) .

II – O Dragão no Clássico das Mutações

Entre os oito trigramas que são o fundamento do Clássico das Mutações, e condição de possibilidade dos 64 hexagramas, o mais importante é o do Céu ( 乾 Qián), composto pela força conjugada dos dois trigramas do Céu. Vale a pena seguir a apresentação e desenvolvimento deste hexagrama, tal como nos é oferecido por John Blofeld . O Céu surge como o princípio criativo, cujas principais características são ser masculino e ativo. Este princípio é personificado pelo dragão, o sacerdote-rei, que une o céu e terra, por via da participação em ambos os princípios.
O primeiro hexagrama simboliza as forças celestiais em ação e o labor da pessoa superior sobre si própria. Aqui refere-se, numa leitura taoista, a pessoa superior, porque para os confucionistas e para a tradição chinesa, se menciona claramente um homem superior, representado por um dragão que voa nos céus. Eis então o texto de Qian (乾):

O Princípio Criativo. Sucesso Sublime! A persistência na causa certa traz recompensa. 9 para o lugar do fundo: o dragão escondido evita a ação. 9 para o segundo lugar: o dragão é visto a céu aberto; é vantajoso visitar um grande homem. 9 para o terceiro lugar: o Homem Superior ocupa-se o dia inteiro e a noite encontra-o completamente alerta. A desgraça ameaça – sem erro. 9 para o quarto lugar: é preciso saltar nas profundezas, sem erro! 9 para o quinto lugar: o dragão voa nos céus; é vantajoso visitar um grande homem. 9 para o lugar de topo. Um dragão voluntarioso – que desgraça! 9 para os seis lugares – Um bando de dragões sem cabeça – felicidade.
(乾卦《初九:元亨利貞/潛龍無用; 九二:見龍在田,利見大人; 九三:君子終日乾乾,夕惕苦厲,無咎; 九四或躍在淵,無咎;九五飛龍在天,利見大人。上九:亢龍有悔;見君龍無首,吉》)

A análise das linhas em consonância com a interpretação de Blofeld e com a tradição chinesa, mostra-nos o que se espera do dragão chinês quando este se identifica com o rei e/ou o homem superior. Ele é o governante por excelência: no céu, enquanto princípio divino; na terra por incorporação do mesmo. Há, porém, um trabalho de construção ética que deve ser realizado para que o dragão terreno, o governante sábio e santo, possa atuar. Assim, e como indica a primeira linha, o dragão está a construir o seu ser, trabalha sobre si próprio, oculto dos seus eventuais pares humanos. O diálogo é interior e as pontes para o exterior são feitas por meio da captação das suas raízes e cruzamento com as energias universais do céu e da terra. Após este trabalho a solo, o dragão na segunda linha, sai para o mundo dos seus pares, procurando a orientação daqueles cuja sabedoria é capaz de o iluminar. Depois regressa a si mesmo na terceira linha, de forma a realizar os princípios e ensinamentos recebidos do que escolheu para mestre.
Na quarta linha o dragão que almeja chegar a rei-sábio deve saltar nas profundezas. Este salto é importantíssimo. Através dele, separa-se do pior de si mesmo e, por isso, também se pode afirmar que se ultrapassa, salta sobre si e, simultaneamente, salta em si, conseguindo alcançar o mais profundo da sua natureza, o que lhe permitirá a fusão com a verdadeira realidade. A partir do momento em que dá o salto, a que no Ocidente chamaríamos de fé, libertou-se. No entanto, nesta altura volta a correr grandes riscos, porque uma iluminação à solta é, na tradição filosófica chinesa, algo de muito perigoso, por isso o dragão é aconselhado na quinta linha a procurar outra vez a orientação daqueles que escolheu para seus mestres, já que a finalidade não é expressar a sua criatividade e estilo próprios, mas integrar-se numa comunidade, a que deve servir de exemplo, sem se impor.
Na linha do topo adverte-se que um dragão voluntarioso pode provocar grandes dissabores a si e aos outros. Esta leitura política do primeiro hexagrama não é abusiva, sendo confirmada pela interpretação conjunta das seis linhas, onde somos informados que a felicidade é obtida quando um conjunto de dragões voa sem cabeça, ou melhor, sem cabecilha. Do ponto de vista político, a ditadura de um iluminado (usual na China antiga) é, no maior dos Clássicos da Filosofia Chinesa, fortemente desaconselhada. Nenhum sábio deve cultivar-se apenas para si próprio, nem acreditar que é dono absoluto da verdade. O que foi e o caminho que conseguiu percorrer até à sua libertação ética, política e espiritual ganha pleno sentido quando é conciliado e harmonizado com o conjunto de dragões nos quais se deve incluir. Este bando de seres superiores, chamemos-lhes assim, não tem líder, sendo essa a condição para haver boa sorte, já que segundo o conjunto das linhas um cabecilha traz má sorte.
Pode concluir-se nesta interpretação do Princípio Criativo, título para o primeiro hexagrama, que a nação espiritual chinesa, embora dependa de um primeiro dragão mítico azul, Fuxi, se constitui e desenvolve quando um conjunto de seres, que se trabalha eticamente para fins políticos, se reúne. Após o que se erguem nos céus espirituais em conjunto, contribuindo com o que de absolutamente próprio conseguiram alcançar, a fim de atingir uma postura equilibrada e exemplar. Esta deve servir de exemplo a todos os seres que os observam da terra e lhes contemplam o voo.
O conjunto de dragões «sem cabeça» pode ser visto como a primeira exigência ético-política do Clássico das Mutações para que se dê a transformação certa aos níveis social e político. Os governantes-sábios devem, por isso, empenhar-se no desenvolvimento das suas virtudes, entre as quais constam as quatro essenciais do governante: a bondade ou Humanidade (仁 Rén), a conduta perfeita, que depende da obediência aos Ritos (禮Lǐ ), a Justiça (義 Yì) e a Sabedoria (智Zhì).

III – O Dragão Alquímico e a Geomância

Onde ir procurar a raiz da leitura alquímica do dragão chinês? Há que regressar ao Clássico das Mutações para o fazer. Simplesmente não é possível recorrer ao apoio da linha confucionista, que nos transmite sobretudo uma leitura ético-política dos hexagramas, tal como a explorada no ponto anterior, encontrada em grandes sinólogos como Richard Wilhelm.
O dragão alquímico revela-se nos comentários da linha taoista ao Clássico das Mutações, por exemplo o de Thomas Cleary.
O dragão celestial é apresentado na explicação do autor como o representante do Céu criativo, que desenvolve e dá fruição. Ele é o princípio divino que na terra age através do sábio. É divino sem deixar de ser natural, é o poder máximo de transformação e criatividade. É a primavera celestial que comanda a telúrica. A título de criador, atua, iniciando e consumando os processos, sempre em ligação com a natureza exterior, representada pelas quatro estações; mas também com a nossa natureza interior e energia que nos percorre: esta energia enraizada no primordial permanece oculta no temporal. Não pertence mais aos sábios, nem menos às pessoas comuns (…) Fundamentalmente cria, desenvolve e traz fruição e consumação espontaneamente .
A energia alquímica surge logo na primeira linha yang (阳) do hexagrama celestial : Dragão escondido: não se usar .
O nosso dragão interior prepare-se em estado de retiro para o casamento com o tigre, porque nós, tal como a terra, possuímos duas energias, figuradas no tigre e no dragão. O tigre é o representante da energia feminina, telúrica e escura, pesada e opaca, e o dragão, o representante da energia masculina, celestial, leve e clara.
Ora o dragão não pode prescindir do tigre. Do ponto de vista geomântico e alquímico precisa absolutamente dele para complementar as paisagens exterior e interior. Na segunda linha, quando o dragão sai de si para o exterior, digamos para um passeio na campo ou na natureza, ele vai à procura de uma pessoa grande, um (a) mestre que o possa orientar para a criação do seu embrião espiritual, por meio de um trabalho realizado em conjunto sobre a sua força celestial, a fim de libertar o halo espiritual que o conduzirá à longevidade e à imortalidade. Por isso labora empenhadamente na terceira linha para a realização da união de forças feminina e masculina ao nível telúrico, isto é, abdominal. A fim de o casamento entre o tigre e o dragão seja bem-sucedido, nenhuma das forças pode prevalecer. Elas devem encontrar-se em perfeito equilíbrio, para que seja realizado novo encontro de forças no coração, situado na quarta linha, após o dragão ter saltado sobre o abismo em si mesmo . A partir daqui o dragão está na zona do espírito. Para realizar o salto, teve de espiritualizar o tigre, que o vai auxiliar a voar em céu aberto. Ele sente-se, na quinta linha bem, livre e planando totalmente iluminado. Na tradução de Cleary (1986:42) O dragão está no céu: é benéfico ver uma grande pessoa , que lhe facultará a continuação do trabalho sobre as energias e mais uma transmutação espiritual do yin em yang, um terceiro casamento espiritual, ao nível da mente, criador do corpo fora do corpo.
Sem orientação espiritual, o dragão corre o risco de se desequilibrar e cair na tentação mortal (porque o reconduzirá à terra), exposta na sexta linha, que é a da arrogância .
Se vencer esta última tentação, consegue conjugar, como nos indica a leitura conjunta do hexagrama, a sua imagem espiritual com muitas outras, inserindo-se harmoniosamente num conjunto de dragões que voa sem cabeça.

Bibliografia

Alves, Ana Cristina. 2022. Cultura Chinesa, Uma Perspetiva Ocidental. Coord. Carmen Amado Mendes Coimbra: Almedina e CCCM.
___________. 2004 Representações do Feminino na Cultura Chinesa. A Mulher nos Discursos Filosófico, Religioso e Sociopolítico (tese policopiada).
___________. 2004.Uma Viagem de Muitos Quilómetros Começa por um Passo. Macau: Cod.
Blofeld. 1965. The Book of Change. A New Translation of the Ancient Chinese I Ching (Yi King), with detailed Instruction for its Practical Use in Divination. London: Georg Allen & Unwin LTD.
Cleary, Thomas (trad.).1986. The Taoist I Ching. Boston & London: Shambala.
Legge, James (trad). 1990. The I Ching. The Book of China. Singapore: Graham Brash.
羅慷烈 (Luo Kanglie) 2005.«易經詳解與應用》香港三聯畫店.
Shi Zhengyu.1997. Picture Within a Picture. An Illustrated Guide to the Origins of Chinese Characters. Beijng: New World Press.
Tan Huay Peng. 1980. Fun with Chinese Characters. Singapore, Kuala Lumpur, Hong Kong: Federal Publications.
Wang Suoying, Ana Cristina Alves. 2009. Mitos e Lendas da Terra do Dragão. Lisboa: Caminho.
Wilhelm, Richard. 1989. I Ching or Book of Changes. Prefácio de C. G. Jung. London: Penguin Group.
張中鐸(ed) 1995《易經提要白話解》台南市:大孚.

11 Jan 2024

A Viagem com Características Chinesas

Ana Cristina Alves*

26 de dezembro de 2023

Os sábios da antiguidade chinesa foram grandes viajantes. As primeiras referências à viagem remontam à mais alta antiguidade chinesa e à primeira de todas as obras, O Clássico das Mutações (《易經》), atribuída ao lendário imperador Fuxi (伏羲), que terá vivido há cerca de 3 mil anos.

Recordo que ao meditar sobre a obra encontrei dois hexagramas contíguos, um deles completamente centrado no percurso, o 28º (大過卦 Dà Guò Guà) “Grande travessia”, o outro complementar, o 27º hexagrama “Cantos da Boca/Fornecendo Nutrição” (颐卦 Yí Guà). A complementaridade realiza-se a partir da conjugação dos trigramas Raio/Trovão (震 Zhèn) e Montanha艮 (Gěn) (27), Vento (巽Xùn) e Lago/Paul(兑 Duì) (28), porque entre os oito trigramas constitutivos deste livro, o Raio é oposto ao Vento e a Montanha ao Lago, numa habilidosa união entre elementos ativos, Raio e Vento, e elementos passivos, Montanha e Lago.

A transformação é operada pela ação do raio dinâmico na montanha tranquila e do vento silvante que percorre o lago silencioso. Em Visitações (2022) conjuguei estes dois hexagramas complementares numa interpretação poética que denominei “Nutrição da Grande travessia” (颐卦/大過卦), que passo a apresentar:

Um Raio no sopé da Montanha,

A boca aberta e moderadamente farta,

The corners of the mouth waiting for nourishment,

Quando se deixa escapar a tartaruga,

Ganha-se muita ruga,

十年無用,

利涉大川1

Crossing the great water

It´s a blessing,

Brings general happiness.

É preciso não reter,

Deixar-se ir,

Por todos distribuir.

Preponderance of the great,

Go away, don´t wait.

O Lago cresce sobre as Árvores,

O Vento sopra com delicadeza,

Apontando o caminho a seguir,

É avançar sem desistir,

Quem sabe mais à frente

Se casa a graça com a desgraça.

(Alves, 2022: 151)

Pode-se interpretar a viagem, “a grande travessia” como uma forma de nutrição e desenvolvimento à maneira da tradição proverbial chinesa em “Os Oito Imortais atravessam os mares, cada qual revelando os seus poderes mágicos” (八仙過海各顯神通Bāxiān guò hǎi gè xiǎn shéntōng), eles ao passarem pelo mundo, cruzam-no sobrevoando o oceano em despique para revelarem os seus dons espirituais: um tem uma espada mágica, o outro um leque, há ainda quem possua uma flor de lótus, um cesto de flores, uma flauta, uma cabaça, uma mula branca, mas atenção a um deles que ostenta castanholas e encarna a figura do viajante, ele é Cao Guojiu(曹國舅Cáo Guójiù). Viveu, variando as versões, na dinastia Song (Duane, Huichinson 1998:73) ou Yuan (Lai, 1977: 27), era o irmão mais novo da rainha. Seguindo a versão de T.C.Lai, Cao Guojiu ter-se-á saturado da vida palaciana e resolveu conhecer mundo, ajudado por uma medalha oferecida pelo próprio governante, com a inscrição «O imperador deseja que o seu cunhado seja tratado, vá onde for, sempre como se estivesse acompanhado por Sua Majestade» (Lai, 1977:27). Quando saiu do palácio, Cao Guojiu correu a terra, desejando cultivar o Tao, sempre protegido pela sombra influente do Imperador, até que um dia Lü Dongbin ( 吕洞宾Lǚ Dòngbīn), um dos patriarcas imortais, disfarçado de mestre taoista, lhe fez ver a incorreção do comportamento e ele imediatamente deitou fora o salvo-conduto, em troca das bênçãos imortais. As castanholas são o seu símbolo. Elas produzem um som celestial que silencia tudo o resto para as escutar. Em chinês chamam-se castanholas Yin Yang (陰陽板Yīn Yáng bǎn), tendo por isso o maior dos poderes criativos do ponto de vista espiritual. A verdade é que este imortal só conseguiu libertar-se da esfera humana, quando em viagem dispensou favores e proteções mundanas, devotando-se por inteiro ao seu aperfeiçoamento. T.C. Lai relata ainda um episódio em que o viajante é testado por outros dois imortais; que querem saber se já o podem considerar entre pares. Lü Dongbin, o imortal da espada mágica, e Zhong Liquan ( 鈡离權 Zhōng Líquán ), o imortal do leque que proporciona longa vida aos vivos e ressuscita mortos. Questionam-no sobre o que ele está a cultivar nas suas andanças pelo mundo terreno, ao que ele responde que se encontra a cultivar o Tao (道 Dào), a Via ou Caminho. E eles prosseguem, inquirindo pelo Tao, ao que ele responde apontando para o céu; os imortais continuam: “‘Onde está o céu’?” (Lai, 1977: 29) e ele aponta para o coração, passando o exame com brio, porque “tinha entendido o Caminho” (Ibidem).

Filósofos taoistas como Laozi (老子III. a.C?) ou Zhuangzi (莊子, c. 369 -286 a. C) possuem biografias muito semelhantes às de Cao Guojiu, sobretudo Zhuangzi, que recusa sistematicamente imiscuir-se na esfera mundana, rejeita propostas ministeriais ao serviço da ordem estabelecida, levando uma vida apagada e pobre, mas recompensadora do ponto de vista espiritual, já que faz a apologia do sábio modelar que se pauta pela quietude e afastamento da ordem político-social, deambulando livremente como uma pequena borboleta esvoaçando de flor em flor. Assim podemos ler, logo no capítulo inicial da obra homónima, intitulado “Vagueando em Absoluta Liberdade” sobre a metamorfose proporcionada pelo movimento que transforma peixes Kun (鲲) em pássaros gigantescos Peng (鹏), que voam do Mar do Norte ao Mar do Sul, também conhecido por Lago Celestial. A própria vida pode ser encarada como uma viagem de longa duração, e quanto mais longa melhor, sendo os percursos mais excelsos realizados por seres santos ou filósofos como Liezi (列子), também citado neste capítulo (Zhuangzi: 1999:7): “que viaja montando o vento de um modo livre e descontraído, volta à terra em quinze dias, nunca se deixando enredar na sorte mundana; porém, embora ele não tenha que andar, depende de algo.” (夫列子禦風而行,泠然善也,旬又五日而後反。 彼於致福者,未數數然也。 此雖免乎行,猶有所待者也。)

Com a mudança de escola filosófica para a confucionista, que atualmente continua a reger o mundo chinês, agora mais cosmopolita e dialogante através dos seus institutos Confúcio, a viagem ganha tonalidades terrenas e pragmáticas, como viria a suceder no caso de Confúcio, na esperança de conseguir interessar os governantes da época pelos valores morais. Confúcio, entre os chineses o Mestre Kong (孔子), viveu de 551 a 479 a. C. O seu nome próprio era Qiu (丘) e o seu cognome Zhongni (仲尼). Nasceu no Sul da província de Shandong em Qufu. Oriundo de uma família da pequena nobreza, trabalhou para vários senhores feudais e teve alguns cargos oficiais. Chegou a primeiro-ministro de Lu em 501, mas por pouco tempo, porque o duque trocou os seus ensinamentos pelos encantos de um grupo de bailarinas, presente do duque de Qi, interessado em enfraquecer o estado de Lu, já que se tornara bastante forte. Desiludido com o mundo, regressou à sua terra e passou a dedicar-se exclusivamente à atividade pedagógica, iniciada em 497, tendo chegado a reunir 72 discípulos. Viveu os três últimos anos em Qufu, na sua terra natal e faleceu em 479 a. C. No entanto, o movimento de viagem é enaltecido, na obra dialogada que nos deixou, registada através dos seus discípulos, os Analectos (論語 Lúnyǔ), que inaugura da seguinte forma (《論語 • I-1》):

子曰:「學而時習之,不亦說乎?有朋自遠方來,不亦樂乎?人不知而不慍,不亦君子乎?」

Confúcio disse: “É ou não um gosto poder praticar em tempo devido o que se aprendeu? É ou não uma alegria receber amigos vindos de longe? Será um cavalheiro aquele que se ofende quando não se é apreciado?”

Um cavalheiro (君子 Jūnzǐ), ou melhor, um futuro governante, só terá a ganhar com o confronto de ideias, que é possibilitado pela abertura do mundo e pelos viajantes que chegam desafiando com suas perspetivas diferentes. A viagem torna-se assim na tradição confucionista uma descida à terra, já não deambulam apenas os imortais e santos, cujas mentes vagueiam pelo cosmos, outros sábios mais pragmáticos encetam as suas travessias para dar a conhecer ao mundo princípios filosóficos e, no caso do Confucionismo, valores morais.

Atualmente, os chineses viajam à procura de melhor vida. Andam por dentro e por fora da China. Quando passam de umas províncias para as outras são considerados imigrantes, como se pode ler em Compreender a China Contemporânea: um dicionário (2009), dirigido por Thierry Sanjuan, no artigo de Isabelle Thireau, e têm bastantes problemas por causa do sistema de registo de residência (戶口簿hùkǒu bù) “São assim qualificados como imigrantes e considerados problemáticos os indivíduos que não residem onde estão oficialmente domiciliados” (Thireau, 2009: 183/184). Contudo, dadas as assimetrias entre o campo e a cidade, sobretudo das megapolis, como Xangai, Beijing, regiões administrativas especiais, etc., as pessoas migram para tentar uma melhor sorte, mas nem sempre assim sucede, quando possuem menores recursos económicos ou culturais, ficando à mercê de direitos de residência temporários, que as obrigam a frequentes deslocações fora do domicílio oficial, e a enfrentarem situações salariais e sociais mais precárias, suscitando esta mobilidade geográfica desconfiança por parte dos residentes permanentes. De qualquer modo, dado o declínio populacional na China, a imigração é necessária, ainda que os imigrantes nem sempre sejam bem acolhidos, pelo que se têm vindo a associar de modo a serem capazes de dar resposta à pressão social encontrada: “Agrupam-se em alguns quarteirões em função da origem geográfica comum, criando escolas para os seus filhos.” (Thireau, 2009: 185), tal como encontramos estabelecimentos de ensino para filhos de chineses em Portugal. Aqui há concentração de chineses em certas zonas do país, como Lisboa (Martim Moniz, Almirante Reis), Porto, Faro, Aveiro, Braga e Leiria.

Porém, mudou-se de registo, porque se passou da imigração para a emigração. O que tem trazido a segunda leva de emigração chinesa ao país é a mesma vontade de melhorar as condições de vida que impulsiona a migrar dentro de portas. Desta vez chegam-nos quadros qualificados, com cursos superiores, empresários e empreendedores que pretendem viver confortavelmente fora da terra de origem, de acordo com os melhores padrões das classes médias e médias altas da Europa desenvolvida ou dos Estados Unidos da América.

De acordo com os dados de Henley & Partners no Global Private Wealth Migration Report 2023, conta-se com 13 milhões e quinhentos mil chineses a emigrarem ao longo de todo este ano. Os chineses partem cada vez em maior número, talvez para realizarem o dito “nascer como um dragão, viver como um tigre” (生龙活虎 shēnglóng-huóhǔ), significando esta aliança do par biológico primordial chinês, muito aplicada na geomancia, cumprir um projeto existencial repleto de energia (do dragão) e vigor (do tigre), onde enriquecer não parece ser decisivo, já que muitos apenas emigram, porque é mais fácil viver-se fora uma vida comum (“很多人移民国外并不是为了活得大富大贵,只是为了在国外更好地做一个普通人”2).

Na realidade, a migração, seja dos que vêm de fora, como emigração, ou dos que são recebidos de dentro, a título de imigração, pode beneficiar os que migram, criando novas oportunidades de vida e riqueza para o país que acolhe esta força migrante, através das suas contribuições. As misturas fornecem ainda amplas possibilidades demográficas e culturais, favorecendo cenários multiculturais tão enaltecidos nos nossos dias; mas como é óbvio pode ter aspetos negativos, também muito enfatizados por determinados setores políticos, por causa do impacto negativo nos salários, da criação de desemprego, da pressão nos serviços públicos, do aumento das rendas e da potencial instabilidade social.

Para o que migra, emigra ou imigra é a abertura de um novo caminho, mesmo quando é forçada pelas circunstâncias, como sucedeu com o exílio de grandes homens na China antiga, por exemplo, o poeta Su Dongpo (蘇東坡, 1037-1101), que se transformou num Mandarim andarilho, menos por vontade própria e mais por ditame imperial. No entanto, muitas das províncias para onde imigrou revelaram-se verdadeiras oportunidades de vida, como quando esteve em Cantão. Pode ler-se no seu último poema:

廬山煙雨浙江潮,未到千般恨不消。

到得還來沒事,廬山煙雨浙江潮。

Aqui apresentado na excelente tradução de António Graça de Abreu (2023: 171):

Névoas de Lushan, marés de Zhejiang,

Antes da viagem, nostalgias mil,

Viajei muito, mas tudo muda, tudo permanece.

Névoas de Lushan, marés de Zhejiang.

O movimento de viagem é enaltecido, por ter um efeito terapêutico, é um espanta tristezas eficaz, mesmo que depois voltem os amargos de mente ou nunca tenham partido, a verdade é que o encontro com novas paisagens, vivências, e descobertas que vão sendo feitas ao longo do caminho, bem como as surpresas trazidas por novas relações, permitem uma mudança de cenário que atua positivamente no espírito e na vida de quem a realiza, ou até na nova terra onde se é recebido, ainda que o poeta viajante tenha plena consciência de que “tudo muda, tudo permanece”. Ontem e hoje assim se pensa no País do Meio, tudo se transforma na terra e nas gentes, mantendo-se, porém, a raiz que permite dizer sem contradição que o essencial fica na mesma, sendo a própria vida uma travessia de afastamento e/ou de completude, bem como de retorno num movimento regressivo ao fundamento. Para os chineses, estamos sempre a viajar, mesmo quando não saímos do lugar, à maneira do filósofo, do santo e do imortal nas suas caminhadas espirituais.

Bibliografia

@Aavest 美股预测.2023. 《移民的优点和缺点》 (Benefícios e inconvenientes da migração). Youtube. Disponível em: https://aavest.com/pros-and-cons-of-immigration/, acedido a 27 de dezembro de 2023.

Alves, Ana Cristina. 2022. Visitações. Fafe: Labirinto.

______________. 2005. A Sabedoria Chinesa. Cruz Quebrada: Casa das Letras.

Confucius «孔子».1994. Lun Yu «论语». Analects of Confucius. Ed. Bilingue, Beijing: Sinolingua.

Duane, O.B; N. Huichinson. 1998. Chinese Myths & Legends. London: Brockhampton Press.

Graça de Abreu, António (Org. e Trad.) 2023. Su Dongpo, Poemas. Lisboa: Grão Falar.

广东省 .2023.“不如换一个地方生活?2023年全球私人财富迁移报告发布”. Disponível em: https://www.sohu.com/a/716176593_120005859, acedido a 27 de dezembro de 2023.

Lai, T.C. 1977. The Eight Immortals. Hong Kong: Swindon Book Company.

Oliveira, Jorge Costa. 2023. “Declínio populacional e imigração – na China e noutros países”. Diário de Notícias. Disponível em https://www.dn.pt/opiniao/declinio-populacional-e-imigracao—na-china-e-noutros-paises-15879077.html:

Wilhelm, Richard (Trad.). 1989. I Ching or the book of changes. London: Arkana, Penguin Books.

Wong, Eva. 2001. Tales of Taoist Immortals. Boston & London: Shambhala.

Zhang Fengyang. 2016. Os Chineses em Portugal: as razões da sua vinda e a sua situação atual. Dissertação de Mestrado em Estudos Interculturais Português/Chinês, orientada por Manuel Gama e Sun Lam. Disponível em: https://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/44336, acedido a 26 de dezembro de 2023.

*Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

10 anos sem sentido,/É vantajoso atravessar o grande mar.

广东省 2023“不如换一个地方生活?2023年全球私人财富迁移报告发布”. Disponível em:

https://www.sohu.com/a/716176593_120005859

4 Jan 2024

Sinologia e Tradução

Tudo muda, tudo é tudo, tudo é nada outra vez,

neste mundo a vida como um jogo de xadrez.

Su Dongpo, “Ao modo de Li Bai” 2023:144

Neste espaço se reflete sobre sinologia e tradução a partir da obra traduzida por António Graça de Abreu: Su Dongpo, Poemas, publicada em Lisboa, na editora Grão-Falar, 2023, estando também de parabéns o editor Carlos Morais José.

Antes de tudo o resto, o realce para as delicadezas de Graça de Abreu, o livro é dedicado ao seu pai chinês Wang Renlun (王仁伦, 1929-2023), cuja paternidade o poeta e tradutor herdou por via da mulher. António Graça de Abreu (1947-) não é um noviço nem na poesia, já que entre as suas criações poéticas se contam os livros de poesia: China de Jade, 1997, China de Seda, 2002, Terra de Musgo e Alegria, 2005, China de Lótus, 2006, Cálice de Neblinas e Silêncios, 2008, A Cor das Cerejeiras, 2010 e Lai Yong, Bernardo e outros Poemas, 2018; nem na tradução poética tendo editado as antologias Poemas de Li Bai (1990, 2022), Poemas de Bai Juyi (1991), Poemas de Wang Wei(1993), Poemas de Han Shan (2009), Poemas de Du Fu (2015) e Poemas de Su Dongpo (2023), publicadas em Macau e, esta última já em Portugal. Pela tradução dos Poemas de Li Bai, António Graça de Abreu obteve o Prémio Nacional de Tradução 1990, do PEN Clube Português/Associação Portuguesa de Tradutores.

Na obra Su Dongpo, Poemas começa por nos brindar, como é habitual nos seus trabalhos, com uma biografia do poeta em estudo, Su Shi (蘇軾1037-1101), cujo nome artístico é Dongpo(東坡), “A encosta do Leste” , enquadrada historicamente neste poeta da Província de Sichuan. A obra encontra-se ainda repleta de notas de Rodapé muito elucidativas sobre as circunstâncias de vida do “Mandarim nómada” (Graça de Abreu, 2023:16), de uma grande integridade que ao opor-se às reformas de Wang Anshi (王安石), terá transitado do “homem honesto a tolo” de acordo com a sabedoria confuciana (Graça de Abreu, 2023:20), que aconselha a dizer a verdade mas não a verdade toda, contra o que o poeta fez em memorandos ao imperador, pagando a sua frontalidade com o exílio e o degredo.

“No seu labor de mandarim local foi constante a luta de Su Dongpo para tentar diminuir o sofrimento do povo”, diz-nos Graça de Abreu (2023: 22) , pelo que os seus poemas circulavam por entre a população, já que, como nos recorda o tradutor, a poesia era uma das formas de comunicação da dinastia Song(宋朝, 960-1279), o que só lhe dificultava a vida a nível político, pelo que não se libertou do cárcere, nem do julgamento, tendo sido semi-ilibado com um pequeno cargo de intendente das águas e o posto de oficial de uma unidade de treino residual sem direito a honorários estatais. Em termos práticos, estava exilado em Hubei (湖北), na vila de Huangzhou(杭州), onde viveu por um tempo pobre e livre, como agricultor, cultivando uns “socalcos de terra” na “encosta do leste”, o nome que escolheria para o representar poeticamente. Até ser transferido para o burgo de Linju, onde começaria a sua reabilitação oficial, chegando a secretário do primeiro-ministro (翰林, Hanlin), encarregue de redigir os éditos imperiais, além de participar no processo de nomeação dos mandarins. Tinha voltado ao poder. Veio ao de cima a sua faceta mundana de bom cozinheiro, passando à história como um dos 4 cozinheiros famosos da China clássica, com o seu “porco estufado à Su Dongpo” (Graça de Abreu, 2023: 166, nota 120). Ele acreditava encontrar a alma também no vinho, aproveitando a vida como mandarim de corte, até que farto da patifaria citadina se mudou novamente para o campo, ocupando o cargo de governador de toda a província de Zhejiang (浙江) ocidental, que incluía a bela cidade de Hangzhou. Era agora o comandante militar do distrito, que ajudou a desenvolver, sendo de relevo os trabalhos mandados executar no belíssimo Lago do Oeste (西湖). Mas a sorte não dura sempre e teve de regressar à corte assumindo novamente o posto de Hanlin. Porém, desta vez com mais dificuldade, pois os seus inimigos estavam cada vez mais poderosos. É novamente destituído de todos os cargos e enviado para Huizhou em Guangdong (广东惠州), onde vive satisfeito, pelo que tal muito desagradaria aos poderosos inimigos que angariara na corte. Estes em breve o desterram novamente, desta feita para Hainan (海南), uma ilha chinesa nos confins do Sul em frente ao Vietname. Assentaria em Danzhou (儋州), onde à época as condições nada tinham de atrativo. Com a morte do lúbrico imperador Zhezong (哲宗) em 1100, terminaria o seu exílio, já que a imperatriz-viúva, reinando enquanto Huizong (徽宗) crescia, perdoou aos exilados e comutou sentenças. Na viagem de regresso levava o filho Guo e o cão “Focinho Preto”, as suas companhias ao longo de três duros anos. Já em Nanquim (南京) adoeceu, encaminhando-se suavemente para a morte. Faleceu em 1101.

António Graça de Abreu informa-nos ainda que Su Dongpo viveu nos tempos de apogeu da dinastia Song, na época em que “Apareciam os primeiros escritos sobre o fabrico da pólvora, inventara-se a bússola, pela primeira vez na história do mundo surgia o papel moeda, faziam-se rigorosos recenseamentos da população, importantes para o lançamento de impostos. Em 1030, o número de habitantes da China ultrapassava os cem milhões.” (Graça de Abreu, 2023: 13).

Acrescenta o sinólogo tradutor que a China Song prestava atenção aos poemas daquele mandarim nómada e excêntrico para tantos:

“Não podemos esquecer que a imprensa havia sido inventada na China, muito antes de, na Europa, Gutenberg ter metido as mãos a tal tarefa. Os chineses criaram pranchas de impressão onde agrupavam caracteres móveis em madeira, ou mesmo em metal que barrados com tinta eram depois prensados sobre papel de arroz, o que resultava em documentos de grande e fácil circulação. Os poemas, as gravuras, as folhas de livros eram impressos com facilidade e em grande quantidade, e ainda em vida de Su Dongpo as tiragens dos seus poemas chegaram a ser de milhares e milhares de exemplares.” (Graça de Abreu, 2023: 42)

Seguimos com interesse as alusões biográficas do próprio tradutor, completamente identificado com o poeta, pode-se então ler na nota 6 “Bafejado pela sorte, com a complacência dos deuses, este raro tradutor da poesia de Su Dongpo, desceu já por cinco vezes o rio Yangtsé, entre 1983 e 2018, antes e depois da construção da barragem das Três Gargantas. São lugares de uma grandiosidade asfixiante, de inefáveis espantos e de diálogos semi-proibidos, permitidos, de longe a longe, com singulares divindades que descem das montanhas para saudar os homens.” (Graça de Abreu, 2023: 14).

O Prefácio de Graça de Abreu é escrito por quem conhece muito bem a China tornando-se por isso numa extraordinária dupla narrativa de viagens, a do autor e a do tradutor, ambas descritas com grande mestria poética.

Quanto à obra, os sinceros parabéns, ficando a aguardar, tal como sucedeu com os premiados Poemas de Li Bai (1990, 2021), uma edição bilingue.

Quanto à tradução, o tradutor Graça de Abreu confessa “Quase nada sei, e contemplo o universo todo na arte abstrusa do tradutor. Uns pingos de clarividência, tentar conhecer umas resmas largas de caracteres, a sequência das palavras, passear pela língua chinesa, entender, não entender, espreitar cuidadosamente traduções inglesas e francesas.” (Graça de Abreu, 2023: 51). Confessa-se amigo do seu amigo poeta. Reflete sobre o trabalho de tradução, declarando que tem de comunicar na língua de chegada a “raiz original das palavras e um mesmo sentir” (Graça de Abreu, 2023: 52), ou seja, “a delicadeza, a suavidade, o encanto e a frescura da grande poesia clássica chinesa”(Ibidem). Apoia-se numa citação de Giorgio Sinedino para defender a coautoria do trabalho de tradução, feito a 4 mãos, as do autor e as do tradutor. Recorre também aos três grandes princípios de Yan Fu(嚴復1854-1921), a fidelidade (信 xìn), a fluência e legibilidade (达 dà) e a elegância (雅 yǎ)numa tentativa de procurar harmonizar as línguas de partida e de chegada. E adiante especifica, apoiando-se na especialista em Su Dongpo, Min Xiaohong (1963-), que a tradução deve apenas ser fiel ao sentido e, numa alusão a Nuno Júdice em nome de George Steiner, refere o ato de “contrabando” existente na tradução, onde para Nuno Júdice se verifica uma velada “traição”. (Graça de Abreu, 2023: 53) O tradutor conclui “No que me diz respeito, sei que no poema traduzido tem de estar a voz e o sentir do poeta chinês, mais a minha própria leitura poética, em língua portuguesa” (Ibidem). Expõe que se apropria do espaço poético dividindo-o com Su Dongpo, ombreando com nomes como o de Arthur Waley (1889-1966), António Feijó (1859-1917), Gil de Carvalho e Adelino Ínsua, mas o livro que aqui se traz conta com 160 poemas, sensivelmente metade da poesia de Su Dongpo ( Graça de Abreu, 2023: pp. 54/55).

Dá-nos o seguinte exemplo de tradução na forma de uma quadra (绝句 juéjù ) neste caso de sete sílabas (七绝Qījué),

中秋月

暮 云 收 尽 溢 清 寒

银 汉 无 声 转 玉 盘

此 生 此 夜 不 长 好

明 月 明 年 何 处 看

Lua do Meio Outono

Anoitece, novelos de nuvens desaparecem na limpidez fria do céu,

em silêncio, a Via Láctea dá a volta na abóbada de jade.

Se esta noite, no nosso existir, não fruímos prazeres,

no próximo ano estaremos onde, contemplando o luar?

Vai-se procurar analisar algumas das técnicas de tradução empregues nesta coautoria, menos de contrabando, mais de empatia, já que uma boa tradução implica um entendimento profundo do autor, uma partilha de sentires e ideias e, no que respeita à tradução poética, uma comunhão ou identificação estética, no entanto não são a mesma pessoa, ainda que autor e tradutor possam pertencer a idêntica comunidade espiritual. E isso nota-se por exemplo em aspetos formais. Su Dongpo recorre a rimas, sobrevoadas pelo tradutor (寒 rima perfeitamente com 盘 e imperfeitamente com 看 ). O ritmo da rima é substituído por um trabalho pictórico, vejamos então verso a verso. No primeiro verso, Anoitece, novelos de nuvens desaparecem na limpidez fria do céu (暮 云 收 尽 溢 清 寒) , “nuvens juntas”, recebem uma acréscimo linguístico figurativo, como que uma pincelada a salientar a ideia em “novelos de nuvens” e depois é introduzido o substantivo “céu”, evidenciando o forte trabalho criativo por parte do tradutor que conjuga a “limpidez fria” com o céu. No segundo verso da quadra, em silêncio, a Via Láctea dá a volta na abóbada de jade(银 汉 无 声 转 玉 盘) há uma apropriação metafórica, apresenta-se a leitura sugestiva da via láctea silenciosa, enquadrando-a no prato de jade, que é interpretado como a “abóbada celeste” onde gira a via láctea, numa outra interpretação de um qualquer outro tradutor no seu papel de coautor, a via láctea podia ser o próprio prato de jade a girar. No terceiro verso, Se esta noite, no nosso existir, não fruímos prazeres (此 生 此 夜 不 长 好), há um acréscimo de sentido, o poeta- tradutor interpreta a transitoriedade (不长) ligada aos prazeres, e não à noite e à vida (此生此夜)fazendo uma apologia do gozo e não da efemeridade da existência, tendo optado traduzir hao (好) por “fruímos prazeres” e não pelo adjetivo “boa”, ligando-o à noite e à vida, pelo que esteve lado a lado com o autor a compor um sentido, permitido sem dúvida, já que Su Dongpo tinha apreço pelos prazeres da vida, mas também pela transitoriedade da existência tão bem figurada na ideia de “nuvens passageiras”. No quarto e último verso, no próximo ano estaremos onde, contemplando o luar? (明 月 明 年 何 处 看) dá-se uma tradaptação, ou seja, a tradução do sentido do verso, adaptando-o à língua portuguesa com a introdução do sujeito: estaremos onde (何处看).

Resumindo nesta tradução poética o tradutor por sua autoria acrescentou termos, interpretou metáforas, optou por sentidos e adaptou o estilo da poesia clássica chinesa à portuguesa. E andou bem? Com certeza porque na realidade é um coautor de pleno direito.

Refere Su Dongpo citado por Graça de Abreu a propósito de um outro poeta clássico chinês, Wang Wei (王维,701-761), “Os seus poemas são pinturas, as suas pinturas são poemas” (2023:35), este também foi traduzido pelo sinólogo na obra Poemas de Wang Wei (1993). Vejamos um exemplo retirado desta obra (Graça de Abreu, 1993: 128/129):

渡河到清河作

汎舟大河裏

積水窮天涯

天波忽開拆

郡邑千萬家

行復見城市

宛然有桑麻

回瞻舊鄊國

淼漫連雲霞

Ao atravessar o rio, chegando a Qinghe1

Atravesso o rio num barco de junco,

 vastas águas estendendo-se até aos confins do céu.

De súbito, abre-se o céu, rasgam-se as ondas,

 eis a cidade, centenas de lares.

Avança o barco, o povoado diante de mim,

como tufos de amoreira ou prados de cânhamo.

Olho para trás. Lá longe, o meu país natal,

 a imensidão das águas entre brumas e nuvens.

Neste belo quadro poético, volta-se a encontrar a mesma coautoria empática por parte do tradutor, que vai pintando palavras com o poeta chinês ao longo da folha portuguesa. Esquecem-se rimas perfeitas e imperfeitas (涯/麻; 拆/家/霞), privilegiando a visualidade musical, acrescentam-se palavras como pinceladas a enfatizar os elementos pictóricos, por exemplo, “junco” a “barco” no primeiro verso Atravesso o rio num barco de junco (汎舟大河裏); reduzem-se sentidos no quarto verso, optando por centenas em vez de milhares eis a cidade, centenas de lares (郡邑千萬家); introduz-se o sujeito, ausente na poesia nos quinto e sétimo versos Avança o barco, o povoado diante de mim (行復見城市) e Olho para trás. Lá longe, o meu país natal (回瞻舊鄊國); escolhem-se significados no oitavo verso de acordo com o sentir poético do autor em conjugação com o do tradutor, quando em lugar de “nuvens róseas” (霞)se opta por brumas a imensidão das águas entre brumas e nuvens (淼漫連雲霞). E tudo funciona às mil maravilhas para quem lê: capta-se a ideia, há musicalidade nas palavras, e somos transportados para uma paisagem sublime.

Su Dongpo é comparado a Bai Juyi (772-846), por Arthur Waley, mas ultrapassa-o em mestria de acordo com António Graça de Abreu (2023:56). Podemos encontrar exemplos de tradução do poeta que viveu entre o século VIII e IX em Poemas de Bai Juyi (1991), onde se nota que há mais tradução e menos coautoria empática (Abreu, 150-151):

花非花

花非花,

雾非雾,

夜半来,

天明去。

来如春夢幾多時

去似朝雲無覓處

Flor, não há flor.

Bruma não há bruma.

Noite vem,

A aurora vai.

Vem o sonho da breve Primavera

E vai, nuvem da manhã, sem deixar rasto.

Este é um trabalho de tradução bem-feito, mas não de transformação (o que poderia ter dado: flor sem flor/bruma sem bruma…) como tantas vezes sucede nos poemas traduzidos de Wang Wei e Su Dongpo, para estes últimos casos de coautoria gosto de pensar que o poeta António Graça de Abreu se apropriou devidamente de um espaço espiritual que naturalmente lhe pertence.

Conclui-se com o poema de Su Dongpo que espelha bem as dificuldades sentidas por este mandarim nómada, num mundo oficial chinês tantas vezes avesso à sensibilidade poética, que Graça de Abreu primorosamente nos soube transmitir (Graça de Abreu, 2023: 64):

Para o meu irmão Su Zhe, recordando o passado

em Mianchi

Semelhante a quê, a vida dos homens?

Gansos selvagens pisando a neve e a lama,

deixando suas pegadas, ao acaso,

e levantando voo, outra vez. Para leste, para oeste?

Falecido o velho monge, suas cinzas sob o pequeno pagode,

caiu o muro onde outrora gravámos um poema.

Nesses tempos, tão difícil a viagem, ainda recordas?

Longa a caminhada, imenso o nosso cansaço,

oiço ainda o zurrar da mula coxa.

Bibliografia

Graça de Abreu, António (Org. e Trad.). 2023. Su Dongpo, Poemas. Lisboa: Grão-Falar.

_______________________________2021. Cem Poemas de Li Bai 李白诗一百首. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim.

__________________. 1991. Poemas de Bai Juyi. Macau: Instituto Cultural de Macau.

___________________. 1993. Poemas de Wang Wei. Macau: Instituto Cultural de Macau.

No sul da província de Shanxi

21 Dez 2023

Panda: Um importante símbolo chinês

Ana Cristina Alves, Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

O Panda (熊猫 Xiōngmáo), numa tradução literal “urso-gato”, ou Grande Panda (大熊猫Dàxiōngmáo), é um importante símbolo da China. A sabedoria proverbial diz muito sobre ele. Comece-se pelo nome que nos apresenta um urso ou de um grande urso, com o qual os chineses se identificam, não apenas do ponto de vista geográfico, já foi preservado e guardado por eles como um tesouro de valor inestimável, mas porque tem uma aparência física com a qual os descendentes do Dragão imediatamente se identificam do ponto de vista afetivo, já que é grande, fofo e redondo, recebendo por isso o epíteto de “Rolante”(滚滚 Gǔngǔn).

Ele é “brincalhão e ingénuo” como indica a expressão proverbial (憨态可掬hāntài-kějū), portanto o melhor amigo que as pessoas podem ter na pândega. Além disso, a sua atitude é uma verdadeira lição de vida, já que está sempre satisfeito com o seu destino, como se lê numa outra expressão proverbial, na qual se afirma que é “tranquilo e satisfeito” (悠然自得 yōurán-zide); somam-se a estas, novas características que distinguem o seu carácter: “autocontrolado e vigilante” (泰然自若 tàirán-zìruò), não entra em pânico, permanecendo sempre alerta, o que é associado, do ponto de vista cromático, à conjugação do preto e do branco no seu pelo.

Como relata Wolfram Eberhard em A Dictionary of Chinese Symbols (1986:35), nos tempos em que Mao Zedong (毛泽东) se quis dissociar da antiga União Soviética, corria na China que havia dois tipos de mascotes, o bom panda chinês e o urso mau soviético, ao ponto de terem surgido versões da história do Capuchinho Vermelho, nas quais o lobo mau era substituído por um urso pardo russo.

O Panda proverbial é ainda “vagaroso e deliberado” (慢条斯理màntiáo-sīlǐ), mas essa lentidão pensada confere-lhe a postura correta na vida. O passo estugado, o querer fazer muito em pouco tempo, o estar constantemente a produzir e em crescimento, seja por que motivo for, material ao espiritual, conduz à morte prematura.

A deliberação deste urso na redução da velocidade, não implica excesso de racionalidade, como se pode verificar pela atitude espontânea e humilde, transmitida no modo oscilante e despreocupado como se move, “abanando a cabeça e o rabo” (摇头摆尾yáotóu-bǎiwěi).

Recebe ainda muita simpatia entre as gentes do País do Meio por ser tão “desajeitado e fofo” (笨拙可爱bènzhuō-kě’ài). Num outro dito é descrito como “inteligente e vivo” (聪明伶俐cōngmíng-línglì), vivacidade esta que deixa transparecer nos saltos, manifestando a vigorosa alegria com que atravessa a existência “aos pulos” (活蹦乱跳huóbèng-luàntiào) .

Aliás, ele vive sem qualquer atenção à sua “imagem social”, “movendo-se como se não houvesse ninguém por perto (旁若无人pángruò-wúrén), numa falta de cuidado pelo retrato, que se irá encontrar em muitos chineses.

Enquanto urso, o panda simboliza “a fecundidade masculina, a virilidade e a força” (Steens, 1980: 354). Acrescenta Wolfram Eberhard (1986: 34) que ao representar o homem, quando alguém sonha com ursos terá filhos do sexo masculino, encontrando-se ainda ligado a um imperador mítico chinês, o Grande Yu (大禹Dàyǔ), que era, tal como o seu pai, multifacetado: aquele que soube dominar o dilúvio na China, abriu canais e conduziu as águas dos rios até ao mar, a fim de os dragar, podia transformar-se num urso.

Dayu casou com Nujiao (女娇), a quem matou de susto quando assumiu o aspeto de urso, numa das suas metamorfoses essenciais, para mais facilmente abrir um túnel na montanha Xuanyuan. Ora a mulher que lhe ia levar a comida, quando viu um enorme mamífero atrás de si com a voz do cônjuge, morreu de susto: “Nujiao ouvia a voz do marido, mas quando voltava a cabeça só via um urso em sua perseguição. Apavorada, correu até à montanha Song (Songshan 嵩山), onde caiu exausta, transformando-se numa estátua de pedra” (Wang, Alves, 2009: 86). Teve ainda a gentileza de lhe deixar o filho que transportava no ventre, a pedido dele, abrindo-se a estátua por milagre celestial.

O Panda não é apenas a mascote da China, que simboliza o homem, remete ainda para importantes símbolos astrológicos, as duas Ursas, a Maior e a Menor, e dentro destas constelações de sete estrelas para cada, pode ser visualizada na Ursa Menor a Estrela Polar. O Norte, a orientação suprema, irmã da Maior, onde se firma o trono do Imperador Celestial (上帝Shàngdì).

Portanto, o Panda da terra está ligado aos seus ancestrais astrológicos, as Ursas, que conferem a orientação correta a seguir nos céus, mas como firmamento e terra pertencem a um mesmo cosmos, este animal pode e dever conferir o caminho a seguir no nosso planeta, onde foi eleito modelo filosófico existencial pelos chineses, sobretudo quando os protagonistas dos nossos dias surgem um tanto desnorteados, à procura de uma guia, como é o caso da narradora de “Ursa Maior”, um conto de Macau contemporâneo na voz artística feminina de Mong Shi “O tempo em que eu via a Ursa Maior parece-me agora completamente remoto (…) Escondo-me na colina do Monte, escondo-me debaixo das árvores desta pequena cidade, com os olhos enevoados, com os olhos perdidos, oriente, ocidente, sul e norte, todas as direções em confusão; mas continuo a guardar o hábito de erguer os olhos no céu à noite à procura da Ursa Maior, a constelação que tenho no meu coração…” (Mong: 1998: 183/4).

Por que razão o Panda é ainda modelo existencial na China? Antes de mais, porque nos primórdios, tal como os outros mamíferos da espécie, era carnívoro, mas progrediu em direção a uma nutrição vegetariana, alimentando-se essencialmente de bambu. Tal significa no oriente chinês um caminho de vida mais simples e despojado, revelando ainda grande tenacidade e adaptabilidade na luta pela sobrevivência. Além disso, é um importante símbolo de preservação da biodiversidade nesta nova era do socialismo ecológico chinês. Quase em vias de extinção, aquele que um dia andou por terras asiáticas e muito recentemente só podia ser encontrado na China, estava a perder-se não fosse o esforço constante da nova política verde assumido pelas autoridades políticas e científicas do país.

É ainda um excelente representante zoológico da cultura chinesa pela configuração cromática. A aliança entre o preto e o branco no seu corpo transporta logo a dois dos principais símbolos da filosofia chinesa, o Yin (阴 Yīn) feminino e Yang (阳 Yáng) masculino, que vemos também representados no emblema do Taiji (太极 Tàijí ), o “Supremo último” com que o país se exporta em termos de Soft Power pelo mundo. Ora o emblema, que surgiu no âmbito da Alquimia Interior, revela a via espiritual para obtenção do autodomínio, controlo espiritual, longevidade e até imortalidade. Um dos representantes mais destacados da escola alquímica foi Chen Tuan (陈抟, c. 906-989), o autor do Taiji (Alves, 2007:81), que ao simbolizar o autodomínio, se cruza não apenas nas cores com as características atribuídas ao urso chinês.

Se o panda adulto representa o homem, é natural que os chineses encontrem grandes semelhanças entre as crias de pandas e humanas, o que de facto sucede, sobretudo no que respeita a emissão de sons vocálicos. Mas podemos ir mais longe nas analogias em termos filosóficos. O modelo existencial encarnado pelo panda aproxima-o do estilo de vida proposto pelos taoistas. Ele é ingénuo, brincalhão, porém, ao mesmo tempo, alerta na sua espontaneidade. Oferece-se à existência despojado de artifícios. O seu vegetarianismo remete-nos para os três tesouros taoistas: a compaixão, a frugalidade e a simplicidade (《道德经•67》我有三宝 /持而保之/ 一曰慈/ 二曰俭/ 三曰不敢为天下先). E a maneira de estar na natureza deste mamífero recorda o modelo de recém-nascido oferecido pela experiência biográfica de Laozi (老子), inspirando assim silenciosamente os que o quiserem seguir, a partir do capítulo 20 do Clássico da Via e da Virtude (《道德经•20》), de cuja segunda parte apresento a minha tradução:

众人皆有余

Todos têm em excesso

而我独若遺

Só a mim me falta tudo

我愚人之心也哉

Sou completamente idiota!

沌沌兮

Tão obscurecido

俗人昭昭

As pessoas vêm claro

我独昏昏

Só eu sou confuso

俗人察察

Os outros são perspicazes

我独闷闷

Eu retraio-me

澹兮若海

Ondulante como o mar

恍兮若无止

Numa deriva sem fim

众人皆有以

Todos têm utilidade

而我独顽似鄙

Mas eu que estúpido e desprezível

我独异于人

Sou diferente dos outros

而贵食母

Alimento-me do seio da Mãe

Tal como um panda gigante, remato, rolando e vagueando pelos bambuais, agarrado ao seio da Mãe Natureza e ao sopro vital da terra, bamboleando-se redondo e pacífico.

Bibliografia

Alves, Ana Cristina. 2007. A Mulher na China. Lisboa Editorial Tágide.

Eberhard, Wolfram. 1986. D Dictionary of Chinese Symbols. Hidden Symbols in Chinese Life and Thought. Tradução de G. L. Campbell. Londres e Nova Iorque: Routledge.

Graça de Abreu, António. 2013. (trad.) Laozi. Tao Te Ching. O Livro da Via e da Virtude. Ed. Bilingue. Lisboa: Nova Vega.

Steens, Eulalie. 1980. Dictionaire de la Civilization Chinoise. Du neólitique au début de la dynastie Qing (XVIIe siècle). Prefácio de Alain Decaux. Editions du Rocher.

Mong Shi. 1998. “A Ursa Maior”. Sete Estrelas. Antologia de Prosas Femininas. Trad. Maria José Trigoso. Apresentação de Tong Mui Siu. Macau: Instituto Cultural de Macau.

Wang, Alves. 2009. Mitos e Lendas da Terra do Dragão. Lisboa: Caminho.

Webgrafia

形容熊猫的成语有哪些 (Quais são os provérbios descritivos do panda?). Baidu. https://zhidao.baidu.com/question/1179336365885654819.html

南宫问天2019熊猫的故事 The Story of Panda Taotao

IPanda- 《你不知道的大熊猫故事》大家的成就 (Sabes qual é a história do panda Chengjiu?) | CCTV纪录https://www.youtube.com/watch?v=DcEG2FxoDos

7 Dez 2023

Além da Grande Muralha

I Um Pouco de História

A Grande Muralha (长城 Chángchéng), estendendo-se por mais de cinco mil quilómetros entre Jieshi, Liaodong a Leste, e Lintao, atual distrito de Minxian em Gansu, a Oeste, nasceu em 214 a.C por ordem do Primeiro Imperador, Qin Shihuang (秦始皇), o unificador da China, que pôs termo ao período dos Estados Combatentes (战國, 476-221 a.C), fundando a dinastia Qin (秦, 221-206 a.C). Esta teve um propósito histórico-geográfico definido, separar os chineses, sobretudo os sedentários Han (汉), constituídos por uma população agrícola e pacífica, das tribos nómadas das estepes mongóis e da Manchúria.

Ergueu-se como uma enorme fortaleza, com tropas estacionadas em posições estratégicas. Muitos foram os chineses que pagaram com o seu sangue, a construção da muralha e por sinédoque do próprio país em cada guerreiro que caía no combate aos invasores vindos de além da Grande Muralha como os mongóis, que fundaram a dinastia Yuan (元, 1206-1368) ,e os manchus da dinastia Qing (清 1644-1911), apenas para citar os casos de invasão mais persistente.

A Grande Muralha tem o sentido figurativo imediato de inexpugnável, apesar de sabermos que não o foi. Representa ainda, pelo lado positivo, a heroicidade em louvor de todos os que contribuíram para este feito notável, que implicou a proteção da civilização e cultura chinesas por muito tempo, mas, pelo lado negativo, recorda quanto sofrimento e dor implicou a sua construção e a defesa da própria China. Por exemplo na expressão proverbial, aqui traduzida literalmente, “A Construção da Grande Muralha por Qin Shihuang será avaliada pelas gerações futuras” (秦始皇修长城-功过后人评Qínshǐhuáng xiū Chángchéng-gōngguò hòurén píng), surgindo este provérbio associado às lágrimas amargas da Menina Mengjiang (孟姜女Mèng Jiāng Nǚ), que protagoniza uma das mais belas e tristes histórias de amor da China.

Resumindo, a menina de nascimento mágico, já que vem ao mundo dentro de um melão, é partilhada por duas famílias vizinhas muito amigas, a família Meng e a Jiang, do Sul da China, de Songjiang (松江). Ostenta no próprio nome a junção das duas famílias, cresce feliz por entre carinhos e abastanças até certo dia se cruzar com um garboso rapaz, Fan Xiliang (范喜良), estudante dedicado que procurava escapar ao triste destino de recrutamento para trabalhar na construção da Grande Muralha, que já havia sacrificado muitas vidas, dadas as péssimas condições de trabalho. Foi recebido pelo casal Meng e em breve conquistava toda a gente da família, incluindo a Menina Mengjiang. Denunciado por um criado ambicioso que almejava à mão de Mengjiang, vieram os soldados que o forçaram a ir trabalhar para a Grande Muralha. Mengjiang viu-o partir inconsolável e, adiante, conseguiu convencer os pais a visitar o marido para lhe levar agasalhos, a fim de o proteger do agreste Inverno do Norte. Quando chegou à Passagem de Shanghai (山海关), contaram-lhe que o marido sucumbira aos trabalhos forçados, engrossando assim o número de mortos. O seu desgosto foi tal, que o Céu se compadeceu: “De repente, ouviu-se um enorme estrondo, a que se seguiu o desmoronamento de uma parte da muralha, numa extensão de 400 quilómetros, revelando o cadáver do noivo, entre muitos outros” (Wang, Alves, 2009:119). Enfim, o imperador ficou muito zangado com o sucedido, mas logo quis perdoar à donzela, ao ver a sua beleza, transformando-a em concubina. Ela não aceitou e acabou por se deitar ao mar, morrendo afogada.

Se a história nos fala de tanto sacrífico por amor ao país, o provérbio aponta também para uma outra dimensão, em que serão as gerações vindouras a julgar os aspetos positivos e negativos desta obra imperial, na qual os seres humanos são sacrificados à comunidade, ou melhor, ao labor em prol da colectividade. De acordo com a tradição da China, a Grande Muralha deu confiança aos chineses, sobretudo da maioria étnica Han, sentiam-se protegidos por ela, muito embora tivessem consciência do que era pedido a quem a construísse e aos que continuaram pelos séculos a defendê-la, pelo que ela se transformaria num dos símbolos fundamentais da civilização chinesa ao longo dos tempos: para os nacionais, ela representa positivamente a nação e a condição de possibilidade do próprio país; para muitos estrangeiros, figura negativamente a China como um espaço fechado, hermético, cujos habitantes são muito difíceis de entender.

2 Literatura relativa à Grande Muralha

Note-se o sentimento de muralha que nos é transmitido por Wang Wei ( 王維701-761) poeta, pintor, calígrafo, músico e eremita, traduzido por António Graça de Abreu em 1993. Na obra intitulada Poemas de Wang Wei, pode ler-se “Subindo à torre da muralha de Hebei”, um dos troços da Grande Muralha (Abreu, 1993: 46/47):

Na aldeia, sobre a falésia de Fu

o Pavilhão dos viajantes, entre bruma e nuvens.

Do alto da muralha, contemplo o sol poente,

o rio distante espelha as montanhas verdes.

Nas águas uma luz brilha em barca solitária,

anoitece, pescadores e aves de regresso.

Adormecem os espaços do céu e da terra

e meu coração em paz, como o grande rio.

登河北城樓作

井邑傅巌上

客亭雲霧間

高城眺落日

極浦映蒼山

岸火孤舟宿

漁家夕鳥遠

寂寥天地暮

心與廣川閒

A paisagem do alto da muralha transmite uma sensação de imenso bem-estar e paz ao poeta. Este sente-se bem e protegido, embora nunca utilize a primeira pessoa, como é de regra na poesia clássica chinesa, mas nós podemos intuir o seu sentir por meio dos traços que empresta à paisagem, ele é como a barca solitária deslizando suavemente pelo rio, e todo este cenário é recolhido, como que cuidado atentamente por aquele espaço fechado, onde até há lugar para os viajantes poderem descansar, eles próprios em movimento e transformação como o rio, que flui incessantemente sob o olhar fixo e vigilante das pedras que constituem a muralha.

Já Li Bai ( 李白,701-762), o grande contemporâneo de Wang Wei, também traduzido por António Graça de Abreu, prefere destacar o simbolismo guerreiro da Grande Muralha em “Lutámos a sul das muralhas” (战成南)1 (Abreu, 2021: 184/185) : a sua história de violentas batalhas, os Qin que a construíram, os Han e os imensos combates, o sangue dos soldados, os cadáveres, terminando com o pensamento, citação do capítulo 31 do Clássico da Via e da Virtude (《道德經》) obra fundante do Taoismo atribuída a Laozi (老子):

Para quê generais sem exército?

Abomináveis e cruéis as guerras!

O homem de bem só obrigado as faz.

(士卒涂草莽,将军空尔为。

乃知兵者是凶器, 圣人不得已而用之。)

Pela mesma linha vociferante contra guerras e muralhas se ergue Du Fu (杜甫, 712-770), outro dos expoentes poéticos da China, ainda traduzido por António Graça de Abreu, muito embora reconheça na Grande Muralha um dos principais marcos da civilização chinesa e por isso a refere, lingando-a a uma das grandes festividades do calendário lunar chinês, a da Pura Claridade em poema homónimo ( 清明 Qīngmíng), no qual o poeta se declara cansado, triste, velho, doente em viagem pela “Grande Muralha”, pelo “reino de Qin”, pelo “Império Han”. Neste poema, a imponente construção a simboliza a memória coletiva e a ligação aos antepassados, pelo que apresento a segunda parte do mesmo (Abreu, 2015: 464/465):

O regresso pela estrada da Grande Muralha púrpura,

Um dos meus acende o lume com ramos verdes do ácer.

Nas vilas do reino de Qin, pavilhões, pagodes entre flores e fumo,

No império Han montanhas e rios de brocado,

Chuva da Primavera, mais cheio o lago Dongting,

Claros os trevos de água, triste o coração do velho de cabelos brancos.

(旅雁上雲歸紫塞

家人鑽火用青楓

秦城耬閣烟花裏

漢主山河錦繡中

風水春來洞庭闊

白頻愁殺白頭翁

Foram rolando os tempos até chegarmos ao aforismo hoje por todos os chineses conhecido, aqui numa tradução direta: “Só é um verdeiro Han, quem foi à Grande Muralha” (不到长城非好汉Bù dào Chángchéng fēi hǎohàn). Este surge no poema de Mao Zedong (毛泽东) escrito em outubro de 1935, significando que um verdadeiro chinês, representado pela maioria étnica Han, tem espírito de luta, é herói, já que é capaz de percorrer passo a passo os cerca de cinco mil quilómetros de muralha, que se estende no Norte da China, sendo este e outros feitos de carácter sobre-humano que o distinguem, em prol de ideais maiores. Não é inocente a alusão à Grande Muralha, já que constitui historicamente o marco de uma nova era, a de uma China unificada.

《清平乐·六盘山》

天高云淡,望断南飞雁。

不到长城非好汉,屈指行程二万。

六盘山上高峰,红旗漫卷西风。

今日长缨在手,何时缚住苍龙?

Eis a minha tradução:

Serenata à Alegria Pacífica na Cordilheira Liu Pan2

No Céu claro surgem nuvens auspiciosas,

à distância, vislumbram-se gansos rumo ao Sul.

Só é herói quem percorra de lés a lés a Grande Muralha.

nos picos altaneiros da Cordilheira Liu Pan,

Bandeiras vermelhas agitam-se ao vento Oeste.

Agora que a Revolução é tecida pelo Partido comunista,

não será altura de enrolar o Partido Nacionalista?

A Grande Muralha, símbolo da defesa do país, contra forças estrangeiras e/ou nacionais aliadas a estrangeiros, teve lugar de destaque durante o Maoísmo mais exacerbado. Hoje em tempos de Reforma e Abertura, que foram inaugurados por Deng Xiaoping (邓小平,1904-1997), o presidente da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês entre 1978 e 1983, lançou o plano de Reforma e Abertura da China (改革开放Gǎigé kāifàng), e manifestou uma vontade política muito diferente da expressa por Mao Zedong. Esta linha foi continuada por Xi Jinping (1953 -), nomeadamente no programa da Nova Rota da Seda (新丝绸之路 Xīn sīchóu zhī lù), que se viria a impor com a subida deste ao poder em 2013. É então introduzido um princípio directivo, “Uma Faixa, Uma Rota ” (一带一路Yīdài yīlù) que para se concretizar integralmente depende do sucesso de modernizações e de invenções, bem como da ligação entre a China e o resto do mundo, por onde se escoam pessoas e se comunicam conhecimentos, através de corredores terrestres e marítimos.

É neste novo tempo que o poeta Yao Jingming (姚京明, 1958 – ), cujo nome artístico é Yao Feng (姚風), nascido em Beijing, mas a viver há muitos anos em Macau, onde é professor catedrático da Universidade de Macau, se tem distinguido por uma vasta obra poética e pela ligação entre as culturas e línguas portuguesa e chinesa, o que lhe valeu prémios e distinções como a Ordem Militar de Santiago da Espada. Na sua poesia mostra-se filho de um novo tempo, porém sem esquecer a importância do peso da história para a civilização chinesa. Em 長城隨想及其他, obra traduzida para inglês em 2014 por Kit Kelen (客遠文), Karen Kun (管婷婷) e Penny Fang Xia (房霞), sob o título de Great Wall and Other Poems, dedica alguns poemas inteiramente à Grande Muralha, logo no início do livro, recordando a sua importância enquanto esforço coletivo, que exigiu tanto aos chineses enquanto pessoas, conduzindo-os ao sacrifício extremo de pagaram com a sua própria vida a manutenção do país. Após lembrar repetidamente o papel deste importante símbolo nacional na história, na guerra e como monumento vivo à união nacional, e ao sofrimento causado nos que o construíram e por ele lutarem, termina com um poema muito bonito, numerado a 8, sinal de prosperidade na China e de infinito em todo o lado, onde se coloca junto aos arautos do novo tempo, que ultrapassam a Grande Muralha rumo às portas abertas, à liberdade (Yao, 2014: 25) e ao sentimento de pertença ao mundo inteiro, sem muros nem quaisquer divisões:

太陽脫掉夕陽

再次升起

我醒来了

從群山中醒来

從石頭中醒来

從一個個夢境中醒来

從一個個“我”中醒来

我再次开始行走

沿着這條起伏的大道

向著山海關

向著東方

我要走出長城

我要走向大海

走向遼闊自由的世界

Aqui fica a minha tradução para este belíssimo poema

O sol deita-se

Para de novo se erguer

Eu despertei

De cada cordilheira acordo

De cada pedra acordo

De cada sonho acordo

De todos os eus acordo

E torno a avançar

Acompanhando as voltas do caminhar

Rumo à Passagem de Shanhai3

Rumo ao Oriente

Quero ir além da Grande Muralha

Quero ir em direção ao mar

E ao vasto mundo da liberdade

Referências Bibliográficas

Graça de Abreu, António (Trad.) 1993. Poemas de Wang Wei. Macau: Instituto Cultural de Macau.

__________________2021. Cem Poemas de Li Bai 李白诗一百首. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim.

__________________2015. Poemas de Du Fu 杜甫詩選. Macau: Instituto Cultural da R.A.E. de Macau.

Baidu. 2023. “不到长城非好汉

”https://baike.baidu.com/item/%E4%B8%8D%E5%88%B0%E9%95%BF%E5%9F%8E%E9%9D%9E%E5%A5%BD%E6%B1%89/3556008, acedido a 14 de novembro de 2023.

Wang Suoying, Ana Cristina Alves. 2009. Contos e Lendas da Terra do Dragão: Lisboa: Caminho.

Yao Feng (姚風).2014. 《長城隨想及其他》Great Wall and Other Poems. Tradução de Kit Kelen(客遠文), Karen Kun (管婷婷) e Penny Fang Xia (房霞) .

Respeita-se o registo escrito em que nos são oferecidos os poemas, de modo que este artigo apresenta poemas em chinês simplificado e tradicional, de acordo com os textos originais.

Cordilheira Liupan no Norte da China.

Passagem de Shanhai no Extremo Oriental da Grande Muralha.

2

21 Nov 2023

O mal

Existe o mal? Porque é que há gente má para si própria, para os amigos e para os outros em geral? Problemas como este diz-nos a filosofia pertencem ao domínio da ética. No oriente chinês os problemas éticos foram tratados com especial cuidado primeiro pelos pensadores confucionistas e numa fase posterior pelos neo-confucionistas.

Se Confúcio nunca se pronunciou abertamente sobre a origem do bem e do mal na natureza humana, já o mesmo não se pode dizer sobre os seus dois maiores discúpulos: Mengzi e Xunxi. Este último terá vivido, tal como Mâncio, durante o conturbado período dos Estados combatentes (475-221 aC), mas ainda é questão controversa as datas da sua biografia.

Estes dois filósofos são, e pela ordem exposta, o segundo e terceiro maiores filósofos confucionistas. Ambos elegeram, como não podia deixar de ser, sendo discípulos de quem eram, as questões ético-políticas para o centro das suas filosofias. Mâncio fez da benevolência o pilar da sua filosofia e, por isso, defendeu sempre que a natureza humana é boa. Nós possuímos duas virtudes universais, ou inatas, a benevolência e a rectidão ou justiça: “amar os pais é benevolência e respeitar o irmão mais velho é justo.

Só estas duas virtudes, a benevolência e a justiça, virtudes universais” (Mencius, Sinolingua, Jinxin, 1ª Parte, 11, 1999). Aliadas às duas virtudes surgem outras, quase em pé de igualdade: a propriedade ou os ritos, e a sabedoria, porque muito embora todos nós possuamos a virtude inata da benevolência, explica o filósofo, ela é como uma semente, que precisa de amadurecer para dar os seus frutos, ora o amadurecimento faz-se precisamente através dos ritos e da sabedoria (Gaozi, 1ª Parte, 19).

Muitos são aqueles que discordam desta teoria e, por isso, o filósofo vê-se forçado a defendê-la em vários passos da sua obra, como aquele onde explica o mal e compara da bondade natural do homem à natureza da água: “A natureza humana tende para o bem como a água tende para baixo. Não há natureza humana que não seja boa, assim como não há água que não corra para baixo. Claro que se batermos na água esta pode saltar até à nossa testa e se escoarmos a água ela pode correr em sentido contrário ou fluir até às montanhas. Mas até que ponto podem estes fenómenos ser atribuídos à natureza da água? A causa são as forças exteriores. O homem pode fazer mal porque a natureza, tal como a água, pode ser modificada por forças exteriores” (Gaozi, 1ª Parte, 2).

Para Mengzi, nós somos bons, não podíamos ser melhores. A bondade é, como tal, uma virtude inata, que nos acompanha desde sempre e que, correctamente desenvolvida, a saber através dos ritos e da sabedoria, prepara e fortalece o nosso ser interior, no combate que este se vê forçado a travar contra as forças exteriores: os outros, enfim, todos os menos bons, mas, especialmente, aqueles que voltaram costas ou recusaram cultivar-se, e, também, como é óbvio, contra as circunstâncias. Diz-nos o filósofo que em anos de crise estatal os jovens tendem a ser rebeldes e em períodos de bonança, preguiçosos, não por causa da sua natureza, mas sim devido a influências exteriores, agudizadas por um grande desleixo no desenvolvimento do bem, a semente que todos transportamos.

Como já tive oportunidade de referir num outro artigo, para qualquer filósofo que parta da defesa do bem inato ficará sempre por explicar a origem do mal, porque a tese das causas exteriores não justifica a entrada do mal no mundo. E a inversa também é verdadeira, quem parta da defesa de uma natureza humana má, tal como Xunzi, não conseguirá avançar com um argumento sólido para a origem e presença do bem entre nós.

Xunzi faz um ataque cerrado a Mâncio, no que respeita às características originais da natureza humana. Para este filósofo, como viria a suceder mais tarde com Hobbes, somos inatamente maus. Não há nada a fazer de início. Começamos egoístas e em estado de guerra permanente, pois só pensamos no nosso próprio umbigo ou benefício. Além disso, somos invejosos e odiamo-nos uns aos outros.

Por isso “quando cada um segue a sua natureza e liberta as suas inclinações naturais, a agressividade e a ganância desenvolvem-se. O que é acompanhado pela violação das distinções entre classes sociais e pelo lançar da ordem natural em anarquia, donde resulta uma tirania cruel” (Xunzi, Human People´s Publishing House, Foreign Languages, Press, 1999, A Natureza do Homem é má, 23.2).

São, portanto, necessários modelos, regras, leis, princípios e ritos estabelecidos pelos reis-sábios e bons professores para transformar a maldade inata em bondade adquirida ou social. Daí também que seja preciso um bom tirano, um sábio, claro, a quem todos devem obedecer incondicionalmente, para pôr ordem no mundo.

Chegamos à ordem social e política, aos princípios e valores morais pelo exercício da razão. Todos nascemos com uma matéria, que nos é dada através do corpo: os desejos e as emoções e com uma mente, ou poder formal, que tem a capacidade de criar modelos, regras ou leis tanto naturais como morais e, por isso, se define como a capacidade de distinguir entre o virtuoso e o baixo e, também, entre o certo e o errado.

Xunzi considerava que vivia num período onde reinava incondicionado o mal, porque faltavam professores sérios, ninguém seguia as boas teorias ou modelos dos reis-sábios, logo os homens portavam-se de um modo perverso, rebelde, desordenado. Poucos eram os que escapavam. Ainda assim havia alguns.

“Os homens de hoje que são transformados pelos seus professores e pelo modelo, que acumulam uma boa forma e aprendizagem e que são guiados pelo Caminho dos princípios rituais e pelo dever moral tornam-se homens de bem (junzi).” (A Natureza Humana é Má, 23.3).

O homem de bem de Xunzi é capaz de operar o milagre, com a ajuda do sábio, de transmutar uma matéria má numa obra boa, à maneira do oleiro, como adianta o filósofo, que faz do barro um bela vasilha por causa da sua arte (23.7), sem que isso signifique que possua quaisquer virtudes inatas.

O problema é essencialmente o mesmo que se coloca a Mengzi. Mas para Xunzi a pergunta é diferente: Como é que os primeiros modelos de bem surgiram no mundo? Ora esta pergunta só surge porque ambos os filósofos tentam explicar as origens daquilo que lhes interessa, a um, o bem, a outro, o mal.

Na verdade, é difícil explicar como começou o bem ou o mal na natureza humana. Pela minha experiência pessoal, posso garantir, que, ao nível meramente fenomenal, nunca lidei nem com os anjos de Mâncio, nem com os demónios de Xunzi. Somos todos mais ou menos e eu não me excluo do rol. Sem abandonar o critério da minha experiência, há pessoas com quem me dou melhor e que, por isso, tendem a desenvolver o meu lado virtuoso e há criaturas com quem me dou pior, essas provocam-me grandes alterações de humor, sabe deus, e a idade, controladas com que esforço.

Por isso, e abandonando a tentativa de explicar as origens do bem e do mal, ou refugiando-me numa perspectiva filosófica mais moderada, e mais à maneira do que sabemos que o próprio Confúcio defendeu, temos um corpo e uma mente, enfim, somos seres com faculdades, ou antes, acrescento, dotados de energia inteligente. Essa energia permite-nos, pela sua própria especificidade, desenvolver teorias, modos de ser, comportamentos quer bons, quer maus. Logo podemos sempre optar por praticar o bem ou o mal.

Se calhar, e voltando às origens – essa grande tentação metafísica – somos neutros à nascença. Daí que, em primeira e última análise, a responsabilidade seja nossa, porque acredito que temos liberdade para ser aquilo que quisermos e é essa liberdade, apesar de todos os condicionalismos, que nos dá o direito de optar, tornando-nos diferentes dos outros seres naturais.

16 Nov 2023

Contos, Histórias e Ecologia

Coordenadora do Serviço Educativo do CCCCM

Desde há muito nos habituámos a que a humanidade ocupa lugar de destaque na tradição cristã. Deus criou o homem (e a mulher) para que pudesse reinar sobre toda a natureza e ao sétimo dia descansou. Ao nível dos contos de fadas e populares mantém-se a mesma tradição. A estética coloca a figura humana como padrão modelar, assim através de contos como “A Cara de Boi”, “A Noiva do Corvo” ou o “Príncipe Bezerro” se transmite que os protagonistas com cara de boi ou de bezerro ou, ainda, corpo de corvo receberam castigos, foram amaldiçoados até se libertarem de um encantamento que os arrastou para uma posição degradante, negativa, mesmo má, da qual serão libertos por outras personagem cujas virtudes são inabaláveis, como a fidelidade, a bondade, etc., verdadeiros antídotos para a maldição que paira sobre as suas vidas.

Vejamos alguns exemplos. Em “A Cara de Boi” a linda menina de longa trança abandona a sua mãe, que a fechara numa casa alta e murada, sem qualquer porta, praticamente inexpugnável,- não fora a trança desta Rapunzel portuguesa, servir de acesso à mãe, mas ainda assim, quando foge com o príncipe é castigada pela velha maga, que lhe chama filha cruel e a acusa de a abandonar, enfeitiçando-a com cara de boi. Ela, depois de muito sofrer, casa com o príncipe e recupera a sua linda aparência humana, preparando-se para ser a futura rainha. Seria impensável o conto terminar com uma rainha com cara de boi.

A situação é semelhante com “A Noiva do Corvo”, aqui a menina é levada a casar com um corvo, o que lhe provoca grande tristeza. Pensou que o marido estaria encantado e, por isso, lhe chamuscou as penas, dobrando-lhe o encantamento, que apenas seria quebrado se ela rompesse sapatos de ferro, ou seja, se fosse de uma fidelidade absoluta à sua causa, que era encontrar o corvo entretanto de asa em fuga. Correu muito até romper os sapatos, finalmente conseguiu chegar a uma fonte perto da casa onde estavam muitas gaiolas com aves encantadas, ao libertar os pássaros, eles transformaram-se em príncipes. Ora entre eles encontrava-se o rei, já humano, que era o seu marido com o qual havia de viver feliz para sempre.

Em “O príncipe Bezerro” somos transportados até tempos muito remotos, onde vivem num reino poderoso um rei e uma rainha sem descendência. A situação faz com que a rainha em desespero profira o desejo de ter um filho “ainda que fosse bezerro” (Gomes, 2000: 53). Tal era a sua aflição por não cumprir as funções de mulher, de acordo com a mundividência tradicional, que já se sujeitava a ter um animal por descendência. A sua voz foi escuta e o desejo prontamente realizado. O príncipe crescia, e com ele a bondade e inteligência, mas não a formosura, já era considerado horrível por ter aparência de bezerro. Surge então em cena uma menina muito linda e boa, que não se importa de casar com o animal. Como recompensa descobriu que ele estava encantado e, na verdade, era um belo rapaz quando à noite despia a pele de bezerro. Ela seguiu então os conselhos precipitados da mãe, sendo levada a queimar na noite seguinte a pele do animal, o que viria a multiplicar o encantamento dele por muito tempo. O príncipe foi forçado a desaparecer não sem antes a advertir que ela teria de romper sete sapatos de ferro se o quisesse voltar a ver. A futura rainha, mergulhada em mágoa, correu mundo em busca do marido, até que a sua persistência e sincero arrependimento foram recompensados, colocando fim a um mau encantamento. O príncipe recuperou a figura humana, a melhor, a mais bela e digna, devido à bondade e amizade da sua igualmente humana mulher.

Situação idêntica pode ser observada em “O Príncipe Sapo”, cujos pais não tinham filhos, a mãe proferiu a heresia de ter descendência nem que fosse um sapo, pelo que foi imediatamente castigada com o nascimento de um batráquio. Este foi criado por uma menina muito boa, que viria a ser sua mulher. Também ele à noite largava a sua aparência animal, transformando-me num belo homem, pelo que os pais e a rapariga acabaram por queimar as vestes, encurtando, segundo acreditavam o tempo de feitiço, mas aumentaram-no, pelo que também a mulher teve correr mundo até chegar ao Rio Jordão, onde, após muita persistência, com um beijo, conseguiu pôr termo a um fado negativo.

Franz Kafka (1883-1924) em A Metamorfose explora o inconsciente coletivo ocidental chegando por absurdo à pior das transformações, a que sucede quando as vidas se tornam tão absolutamente desinteressantes e sem qualquer sentido lógico que conduzem à transformação das pessoas em animais repugnantes, de acordo com a narrativa, tal como sucedeu ao caixeiro-viajante, protagonista da história: “Uma manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco insecto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em rijos segmentos arqueados (…) As inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, comparadas com o resto do corpo agitavam-se desamparadamente perante os seus olhos.” (Kafka, 1975: 7)

No oriente chinês, desde os tempos mais recuados que existe uma íntima relação entre os seres humanos e os animais, digamos que assim sucedeu em muitas civilizações, incluindo o ocidental, só que a nossa cedo trocou as influências naturalistas pelas personalistas, logo acarinhando o ideal estético humano como o mais excelso, sendo todas as transformações em figuras animais, a menos que fossem animais imaginários, perspetivas como muito negativas. A tradição chinesa manteve a forte ligação à natureza, não esquecendo a sua ancestralidade totémica, na qual descendia de um dragão, ou melhor, de um imperador mítico meio humano, meio dragão. Se pensarmos no caso português, descendemos de heróis mitológicos, Ulisses, ou heróis mais próximos, o humano Viriato.

Também em muitos contos, incluindo populares e fantásticos, as mutações de humanos em animais são muito bem acolhidas, assim como os próprios animais quando penetram na esfera espiritual, revelam dons prodigiosos, inteligência, bondade e outras virtudes que raramente são concedidas a animais no mundo ocidental, se excluirmos o universo das fábulas de Esopo ou La Fontaine.

Recorde-se uma das mais belas histórias de amor do povo chinês, 梁山伯与祝英台 (Liáng Shānbó yǔ Zhù Yīngtái), conhecida no ocidente como “Os Amantes Borboleta”. Esta belo conto, a que muito chamam o Romeu e a Julieta da China, é na verdade um tratado de filosofia em versão condensada, portanto, ainda que se baseie numa relação amorosa, revela muito mais da mentalidade chinesa do que Romeu e Julieta o faz em relação ao ocidente europeu. Estes amantes contrariados mostram-nos uma protagonista extremamente decidida, Zhu Yingtai, pronta a disfarçar-se de homem por amor aos estudos, por volta do século V d.C, durante a dinastia Jin do Leste (东晋,317-420). Ela conheceria Liang Shanbo na escola, seriam companheiros de carteira, já que este último acreditava ter adquirido um grande amigo, que nunca revelou a sua verdadeira identidade, mas que se apaixonaria pelo colega. Um dia, a menina foi forçada a cumprir a palavra dada ao pai e teve de voltar à sua terra Natal para casar com um homem do seu nível social, como devia ser na China tradicional: os pais arranjavam os casamentos aos filhos procurando alianças ao mesmo nível social, ou até um pouco acima do seu estrato, de modo a receberem privilégios e a alargarem o seu património e zona de influências, como sucedeu com Zhu Yingtai que teria de casar com o filho do governador da terra, depois da interessante experiência escolar. Além disso, Liang Shanbo, de origem humilde, não era de modo algum elegível para consorte de uma filha única de uma família abastada de Zhejiang. Ele viria a morrer de desgosto quando percebeu que não podia casar com a menina e ela, a caminho do seu futuro casamento, pediu para parar na campa daquele que poderia ter sido o seu noivo se os tempos fossem outros.

É então que um fenómeno extraordinário sucedeu à beira do túmulo do amado, o céu escureceu, desencadeando uma imensa tempestade, por entre a qual se abriria o túmulo do rapaz. Ela aproveitando a ocasião, precipitou-se para dentro da terra. Logo, cessaram raios e trovões, o sol reapareceu e, antes da campa se fechar, escapavam duas borboletas, que rodopiaram livremente por entre as flores, uma branca, a força masculina yang, outra preta, Zhu Yingtai, a força feminina yin. Duas figuras libertaram-se da forma humana, numa transformação positiva em forças naturais, as borboletas, insetos que simbolizam a beleza, e muito mais, já que também indicam a transformação no sentido correto de bichos da seda em seres que voam e representam a evolução espiritual e a liberdade, além, de a partir desta história, passarem também a simbolizar o amor. “Quem eram elas? Sim, eram Liang Shanbo e Zhu Yingtai, metamorfoseados pelo amor” (Wang, Alves, 2009: 131).

É o sentido das transformações positivas que muitos animais sofrem, especialmente as raposas, enquanto espíritos encantados, que Pu Songling (蒲松齡, 1640-1715), um escritor e intelectual dos finais da dinastia Ming primórdios da Qing comunica, nos seus Contos de Fantasia Chineses (聊齊誌異), como revela Yao Feng na Introdução à obra. Esta, publicada na Editora Moinhos em 2022, foi traduzida pelos alunos do Curso de Mestrado da Universidade de Macau: Zhang Mengyao, Chen Qu, Xiong Xueying, Lou Zhichang e Zhou Qian e, ainda, teve a tradução e revisão da docente Ana Cardoso.

Como explica Yao Feng na introdução ao livro “Pu Songling introduziu nos seus contos cerca de vinte tipos de animais, tais como o dragão, o tigre, o lobo, o macaco, o cão, a galinha, a cobra, o grilo, o rato, a borboleta, a abelha ou o corvo, dos quais se destaca a imagem da raposa, que surgiu em cerca de noventa contos” (Yao, 2022: 8). Estas, esclarece o estudioso, metamorfoseiam-se em “raposas-humanas”, encarnando mulheres inteligentes, avançadas, corajosas, capazes de cortar com a tradição em nome de valores universais como o amor e a felicidade.

As “raposas-humanas” são animais que morreram e se transmutaram em espíritos encantados, mantendo as suas características essenciais do mundo animal. Vêm à terra para retribuir dívidas, favores, e auxiliar os humanos, normalmente muito conservadores e limitados. Em Xiao Cui – Uma raposa encantada retribui um favor ela casa com o filho de um mestre de cerimónias de um templo local, Wang Tai Chang. Ela era “incrivelmente bela” (Yao, 2022: 244) e aceita casar com o filho do mestre de cerimónias, Yuan Feng, que tinha fortes limitações intelectuais, dizia-se até que era retardado. A verdade é que esta filha do Imperador de Jade (Yao, 2022: 250), ou seja, do Imperador Celestial, equivalente a Júpiter na cultura chinesa, devolve a inteligência ao rapaz e promove toda a família, que lhe paga com a ingratidão habitual dos humanos, mas se ela aparece milagrosamente no seio daquela gente é para retribuir um favor, como explica quando é insultada por quebrar inadvertidamente um vaso: “Por que é que não podem mostrar alguma clemência? Para ser honesta, admito que não sou humana. A razão pela qual apareci para a sua família é que o seu pai protegeu a minha mãe quando ela fugia de uma tempestade, e eu quis pagar esta dívida de gratidão por ela.” (Yao, 2022: 252). A nobreza deste espírito de raposa é de tão elevado nível ético, que merece o seguinte comentário a Pu Songling no final do conto: “Até uma raposa encantada sabe pagar uma dívida de gratidão, apesar de ter sido protegida inadvertidamente. No entanto, Wang Tai Chang, que tanto recebeu de Xiao Cui, repreendeu-a duramente só por ter partido um vaso. Que desprezível era ele.” (Yao, 2022: 255)

Os contos e histórias aqui apresentados mostram bem que o espírito ecológico chinês vem de muito longe, ou melhor, nunca se perdeu. Os chineses mantiveram, através da sua literatura, um profundo respeito por toda a natureza, que se revela na atenção à diversidade natural. O universo é um cosmos interligado e inteligente, onde cada um ocupa o seu lugar e não deve sobrepor-se aos outros. Todos os seres comunicam entre si e podem transformar-se uns nos outros, porque estão imersos num universo animado, sempre vivo, eterno, ligados à mesma raiz. Quando os seres se metamorfoseiam tudo pode suceder, não o fazem necessariamente para pior. Umas vezes assumem formas positivas, outras negativas, consoante o grau da sua evolução espiritual. As transformações das pessoas em borboletas podem ser boas se os espíritos em jogo também o forem, assim como acontece com os das raposas ao assumirem a forma humana. Estamos imersos num todo manifestando infinitas potencialidades, que muito nos pode auxiliar se o soubermos escutar e respeitar, como nos ensinam as histórias tradicionais chinesas.

Bibliografia

Braga, Teófilo. 2000. Contos tradicionais do Povo Português. Frankfurt am Main: Texto Editora; TFM, Frankfurt am Main.

Coelho, Adolfo. 1995. O Príncipe Sapo. Contos Populares Portugueses. Prefácio de Ernesto Veiga de Oliveira. Lisboa Publicações Dom Quixote.

Gomes, José António (Org.)- 2000. O Príncipe Bezerro. Fiz das Pernas Coração. Contos Tradicionais Portugueses. Ilustrações de Danuta Wojciechowska. Lisboa Caminho.

Kafka. 1975 A Metamorfose. Mem Martins: Publicações Europa-América.

Wang Suoying, Ana Cristina Alves. 2009. Liang Sanbo e Zhu Yingtai. Mitos e Lendas da Terra do Dragão. Lisboa: Caminho.

Yao Feng (Org. ) 2022. Pu Songling. Contos de Fantasia Chineses. Belo Horizonte: Editora Moinhos.

7 Nov 2023

Etimologias médicas

Lê-se num artigo de Kan-Wen Ma, intitulado “Sun Yat-sen (1866-1925), a man to cure patients and the nation – his earlier years and medical career” a propósito do pensamento do médico, seguidor da medicina ocidental, que foi baptizado cristão, revolucionário e fundador da República da China, vindo a ser o seu primeiro presidente (1912), a seguinte defesa a partir de uma citação de um dos Clássicos, mais exatamente do Livro da História “O maior dos médicos cura primeiro a nação e depois o povo”.

Este revolucionário, cujo papel foi decisivo para a derrocada da dinastia Qing em Outubro de 1911, assumiu o cargo de primeiro presidente provisório da recém-fundada república chinesa, sendo rapidamente afastado do poder por outros mais ambiciosos do que ele, nomeadamente Yuan Shikai (袁世凱 Yuán Shìkǎi)

Sun Wen (孫文Sūn wén) ,nome de nascimento, que o liga à cultura e à escrita, sendo o nome de criança Di Xiang (帝象Dì xiàng) , que o relaciona com o poder imperial; teve como nome oficial, Sun Deming (孫德明 Sūn Démíng), que o caracteriza como virtuoso brilhante e, ainda, entre outros, os nomes literários começaram com Ri Xin (日新Rì Xīn), evocando um sol novo; e evoluíram para Sun Yat-sen, no registo de Cantão, ou Sun Yixian (孫逸仙 Sūn Yìxiān), na pronúncia do Norte, onde se alude a um transporte até à imortalidade ou, ainda, Sun Zhongshan (孫中山 Sūn Zhōngshān), com a carga geográfica da proximidade à sua terra natal na província de Cantão. Todos estes nomes descrevem bem a personalidade de Sun Yat-sen, o letrado revolucionário em busca da virtude e da imortalidade, com o corpo bem enraizado na sua terra natal.

Daí que não surpreenda que o pensamento deste médico, ao jeito ocidental, e cristão por nascimento, seja, quando expresso, bastante conservador, em busca da tradição chinesa, para que possam ser afastados certos males cosmopolitas, a fim de curar uma nação ferida por sucessivas levas de invasões estrangeiras, dos manchus às guerras do ópio e ao pensamento da Nova Cultura, refletindo valores ocidentais. Por isso, se por um lado, adere à necessidade de unir a teoria e a prática, bem como à defesa pragmática de que o bem e o mal se podem definir pelas suas consequências práticas, por outro num documento que serviu de base ao movimento nacionalista em 1924, na forma de uma série de lições, intitulado Os três Princípios do Povo, mais exatamente na Lição 6, defende o nacionalismo e a moralidade tradicional contra os valores “intoxicantes” da Nova Cultura: “Esta característica moralidade do povo chinês ainda não foi esquecida hoje. Primeiro vêm a lealdade e a piedade filial, depois a humanidade e o amor, a lealdade e o dever, a harmonia e a paz.” (Sun Apud Baskin, 1984: 650).

Aqui se assume a perspetiva do médico que tenta libertar o país e o seu povo de valores alienígenas, que adoecem ou contaminam os chineses, já que tão ou mais graves do que as maleitas do corpo parecem ser as do espírito.

Recuando uns bons séculos, mais concretamente, até por volta dos séculos V e IV a.C, vamos encontrar um dos quatro grandes médicos da antiguidade chinesa (四大名醫 Sì dà míng yī): ele é Bian Que (扁鹊 Biǎnquè), e tem nome de planta e pássaro, concretamente, de pega, um pássaro muito auspicioso, que une o mundo natural ao espiritual, às letras, a que pertence indissoluvelmente ligado enquanto componente do caractere tradicional da palavra “escrita” (寫 xiě), e lá está o pássaro na base, onde não vislumbramos a plumagem da pega, preta, branca e azul, mas acreditamos que sim, já que só uma ave tão palavrosa e conversadora poderia estar na origem do exuberante sistema escrito chinês. Especialmente relevante é o facto de a este médico do período dos Estados Combatentes (戰國 Zhànguó) serem atribuídos quatro métodos essenciais da Medicina Tradicional Chinesa (中醫 Zhōngyī): a observação (望診 wàngzhěn), a auscultação e o recurso ao olfato para a identificação dos cheiros (聞診 wénzhěn), a interrogação (問診 wènzhěn) e a medição das pulsações (切診 qièzhěn), sendo também a interrogação essencial no diagnóstico, ou melhor, a conversa de pássaro.

Um outro aspecto que desde muito cedo se distinguiu nos médicos chineses, e em Bian Que com grande destaque, foi a relação que estabeleceu entre ética e prática médica. Diz-nos Bai Jingfeng em Episodes in Traditional Medicine (1998) que o fundador dos quatro métodos de diagnóstico tinha preceitos muito rigorosos, que ficariam conhecidos como as seis regras (Bai, 1998: 69). Primeiro, não tratava aqueles que abusavam do seu poder, oprimindo terceiros; segundo, não tratava gente gananciosa e obcecada pela riqueza; terceiro, não se dispunha a colaborar com uma certa aristocracia dissoluta que se comportava extravagantemente; quarto, não recebia quem revelasse ter os princípios yin (陰) e yang (陽) em desequilíbrio; quinto, não procurava curar quem estivesse já demasiado fraco para receber tratamento; sexto, não tratava quem acreditasse em bruxarias.

Há uma história proverbial muito conhecida ligada à sua biografia, intitulada 《諱疾忌醫》(Huìjí-jìyī), que numa tradução à letra significa “evitar a doença para evitar a cura”, podendo encontrar uma correspondência pelo sentido em Português no provérbio “não há maior cego do que aquele que não quer ver”. A história ilustra na perfeição a aplicação da quinta regra, mas também algo essencial na medicina tradicional chinesa, como veremos adiante.

Resumidamente, o Rei do Estado de Cai (蔡國) , o Marquês Huan (桓侯) convida o médico Bian Que para o seu palácio. Bastou ao experiente médico observar a cor da pele do Marquês para logo lhe detetar o início de uma doença, apressou-se a avisá-lo, acrescentado, mas não se preocupe porque a sua maleita ainda está na fase inicial. O rei levou-a mal ao médico a franqueza do diagnóstico, recusando-se a admitir a doença: “Eu estou bem, não tenho qualquer doença (我很好, 没有病)” (北京语言学院编, 1984: 128), depois mal o médico virou costas, teceu comentários desagradáveis a respeito dele e sobre os médicos em geral. Passados dez dias, Bian Que voltou a encontrar o Marquês Huan, aconselhando-o novamente a que procurasse tratar-se enquanto era tempo, já que a doença tinha evoluído e estava então ao nível dos músculos. Passados mais dez dias, Bian Que voltou a cruzar-se com o rei, dizendo-lhe com um ar consternado que a doença se entranhara, estava então já ao nível dos intestinos e estômago, tornando-se muito perigosa. O Marquês voltou a ignorar os conselhos do médico. Houve ainda oportunidade para novo encontro, mais dez dias volvidos, mas dessa vez Bian Que já nada disse ao rei, voltou-lhe as costas e foi-se embora. Perante tal comportamento, o governante estranhou, mandando emissários para obter explicações. Ao que ele declarou já nada poder fazer pelo monarca. Houve um tempo em que o poderia ter salvo, quando a doença ainda era superficial, mas já era tarde demais, porque lhe tinha atacado a medula óssea. Passados cinco dias o rei sentiu-se mal, sem quaisquer forças, mandou então chamar o médico, que, seguindo o seu quinto preceito, nem sequer tentou curá-lo, aliás já nem se encontrava nos seus domínios.

Moral da história, não vale a pena “tapar o sol com a peneira”, procurando “enganar-nos a nós próprios” quando estamos doentes, porque tão má como a doença do corpo, ou até bem pior, pode ser a mental, que, mais ou menos conscientemente, nos leva a cometer erros muito graves que podem conduzir inclusive à morte, quando não das pessoas, das relações e das oportunidades. Há um tempo certo para tudo, mas saber reconhecê-lo depende da saúde do corpo inteiro, mente incluída. É essa ligação essencial e primordial entre o lado físico e o mental que tem conduzido gerações de médicos chineses a privilegiarem aquilo a que hoje chamamos diagnósticos diferenciados, dando relevo à observação de cada caso como uma história única, apenas captável através de um diagnóstico rigoroso que inclua a observação física atenta e a interrogação/conversa não menos concentrada, seja ao nível individual, seja ao nível dos estados, como bem viu Sun Yat-sen, pois de nada adianta a cura individual, quando não há uma transformação ética coletiva a acompanhá-la, já que quando países inteiros adoecem, serão poucos aqueles que conseguirão manter a sanidade mental.

Por fim, recorde-se a etimologia de “medicina e curar” (医 yī), no chinês simplificado é apenas constituída por uma seta (矢 shǐ) que se retira da aljava (匚 fāng) para atacar o demónio da doença; no chinês tradicional (醫 yī), conta também com o componente de vinho (酒 jiǔ), essencial na sua função de elixir.

O certo é que o médico só tem o poder de desferir uma seta certeira, aquela que realmente cura, com a ajuda do paciente, ou seja, quando este está em equilíbrio e revela abertura e disponibilidade para operar a transformação necessária que o conduza ao caminho da saúde. Se a mentalidade geral for adversa, se o paciente não quiser, ou se as circunstâncias não o permitirem nem vale a pena tentar atirar a seta, porque ela nunca acertará no alvo, já que este último é animado e comunicante e só existe em diálogo.

Bibliografia

Bai Jingfeng. 1998. Episodes in Traditional Chinese Medicine. Beijing: Chinese Literature Press
Baskin, Wade (ed) 1984. Sun Yat-sen. Classics in Chinese Philosphy. New Jersey: A Helix Book.
北京语言学院(编)1984《成语故事选》.北京:外文出版社.
Kan-Wen Ma. 1996. “Sun Yat-sen (1866-1925), a man to cure patients and the nation – his early years and medical career”. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/096777209600400309London: Journal of Medical Biography; 4, 161-170.

*Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM

5 Set 2023

A riqueza e os seus deuses

Desde os tempos mais recuados houve quem na China desprezasse a riqueza. Podemos encontrar entre estes os seguidores mais fiéis das filosofias confucionista, daoísta e budista. O cavalheiro confucionista ou o sábio daoísta pouco ligam aos bens materiais. Para estas filosofias, mais importante do que a riqueza material, são os bens espirituais, que cada um vai desenvolvendo como pode: os valores morais, no caso confucionista, e os existenciais, impregnados de espiritualismo, no caso daoísta. Também aos budistas interessa, sobretudo, a libertação dos desejos materiais, a fim de escapar à terrível roda das reincarnações.

Mas, o certo é que, desde os tempos mais recuados muitos, muitíssimos, mesmo, têm sido os que, entre os chineses, amam devotadamente a riqueza. Estes situam-se a um nível mais popular, são a grande maioria da população. Não obstante, neles se incluem muitos dos eruditos, capazes de suspender, no dia-a-dia, com admirável facilidade, os preceitos filosóficos que vão transmitindo nas aulas, conferências e outros momentos teóricos das suas actividades.

Enfim, para a maioria, a riqueza é um bem inestimável. Há até um deus, o da riqueza, ou vários, dependendo das versões, a que as pessoas prestam culto de modo a enriquecer rápida e prolongadamente.

A riqueza, na China, tem uma dimensão religiosa e, por vezes, até mística. Este povo adora com fervor religioso certos bens materiais, como o dinheiro, o ouro, e todos os metais preciosos, as pedras, também preciosas e, em suma, todos os objectos vulgarmente catalogados como tesouros materiais.

A relação dos chineses com a riqueza abre-nos as portas ao estudo de uma religião materialista, onde este mundo e os seus bens são o verdadeiro modelo para um mundo sobrenatural, que só é superior na medida em que copiar, sem quaisquer alterações, a ordem estabelecida na terra.

Nesta mundividência, há uma mensagem bem clara a reter: não basta actuar no mundo laico para se ser rico, é preciso ter fé e procurar o auxílio e a protecção das divindades ligadas à riqueza, caso contrário a sorte não será favorável.

O deus da riqueza, Cai Shen, desdobra-se, em muitas versões, em dois: um militar, representado por Guandi, também conhecido por deus da guerra, e um civil que, não raro, aparece representado pelo ministro da antiguidade, Bi Gan. Este no livro da História é descrito como um servidor leal e justo, que sofreu martírios inenarráveis às mãos de um monarca cruel.

O deus, ou os deuses da riqueza, são adorados com fervores redobrados entre os mais desfavorecidos, como é natural. São-lhes erguidos vários templos e altares, onde abundam oferendas, como vinho, frutas e bolos. As divindades são, também, muito apreciadas em zonas e cidades comerciais, como Cantão e afins.

O deus civil é venerado por pessoas ligadas a profissões, carreiras e negócios que nada tenham a ver com o mundo militar. Já o deus militar é o protector de todos os indivíduos que, de algum modo, se relacionem com a guerra, como cutileiros, ferreiros, militares…

Estes deuses vivem, como já se disse, segundo o modelo da existência terrestre. Têm mulher, família, riquezas sem fim e uma corte poderosa. Despertam um fervor intenso nos seus fiéis tanto eles, como os seus acólitos.

Entre estes, um dos mais conhecidos é Liu Hai, habitualmente figurado por um menino com um colar de moedas à volta do pescoço. O rapaz faz-se acompanhar por uma criatura fabulosa: um sapo de três pernas, que devora moedas. Liu Hai é muito importante, do ponto de vista simbólico, pois mostra bem como, para a mentalidade chinesa, se interligam os desejos de riqueza e descendência masculina.

Outros acólitos da divindade da riqueza são os gémeos da harmonia: He He Er Xian. Estes revelam mais uma característica importante da maneira de pensar dos descendentes do dragão – o espírito familiar. A verdadeira riqueza não surge com indivíduos isolados, mas em união e, especialmente, em família.

A história do par de gémeos chega-nos através de uma lenda. Esta fala-nos de dois irmãos, nascidos de pais diferentes (nessa altura ainda não eram gémeos!), que deitaram mãos à obra, lançando-se ao negócio. Fizeram uma grande fortuna. Com a riqueza a aumentar, acabaram por se desavir. Separaram-se e só na oitava geração os descendentes se voltaram a unir, recuperando todos os bens de que os ancestrais tinham sido senhores.

A harmonia e a união trazem a riqueza e, também, a longevidade e felicidade. Esta última é, muitas vezes, simbolizada num morcego, que congrega, por homofonia, a riqueza e a felicidade.

Associada aos deuses da riqueza e seus acólitos, costuma surgir uma panela preciosa, que terá sido pescada por um homem de Nanjing, no rio Yanzi. O pescador pensou que o utensílio vindo às redes, seria útil para fazer a comida do cão, de modo que resolveu ficar com a panela. Para grande surpresa dele e da mulher, o objecto era mágico, logo tudo o que se punha lá dentro multiplicava-se indefinidamente. Assim sucedeu com a comida do cão, mas, também, com o gancho dourado da mulher, que, inadvertidamente, lhe escorregou da cabeça.

Outros símbolos ligados ao culto da riqueza são: um cavalo precioso, provavelmente de origem budista, de cuja boca se escapam jade, moedas de todos os tipos e outros bens valiosos e que, além disso, transporta um taça repleta de jóias; um dragão-moeda, já que o seu corpo é formado por um longo cordão de moedas; uma carpa, que, por homofonia, representa a abundância, além de inúmeros cestos e caixas a transbordar de tesouros.

Este mundo religioso da riqueza, repleto de seres e objectos sagrados, dá acesso ao crente a todo o tipo de bens preciosos: lingotes de ouro e prata, pedras preciosas, árvores mágicas, donde também saem moedas, e riquezas sem fim. Um grande número de frases auspiciosas, de inegável eficácia mágica, remata e coroa este cenário.

Os possuidores das belas frases caligrafadas podem estar certos de obter o que elas indicam. Para citar algumas, “longa vida, riqueza e posição social”, ou, apenas, “riqueza e posição social, ou “a visita do Deus da Riqueza”…

Na China, e um pouco à semelhança do espírito que anima certas filosofias cristãs do Norte da Europa, para se ser rico há, antes de mais, que acreditar. Em seguida, deve-se cultivar, incessantemente, as relações com os deuses, seus acólitos e nunca esquecer de ter sempre à mão a vasta gama de amuletos aqui referidos. Estes tanto produzem efeito a duas como a três dimensões.

28 Ago 2023