Entrevista MancheteDiogo Cardoso, autor de “Os efeitos da covid-19 na transformação da Health Silk Road”: “Covid zero teve custos muitos elevados” Andreia Sofia Silva - 27 Abr 202327 Abr 2023 Acaba de ser lançado, com a chancela da editora brasileira “Novas Edições Académicas”, o livro “Os efeitos da covid-19 na transformação da Health Silk Road”, resultado da tese de mestrado do doutorando Diogo Cardoso, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa. O trabalho conclui que a China teve melhores resultados na chamada diplomacia da máscara do que na da vacina, além de que o país é ainda “incipiente” na liderança mundial na área da saúde Uma das conclusões do seu estudo é que a chamada “diplomacia da máscara” teve bons resultados no país, mas a “diplomacia da vacina” não tanto. Em que sentido? Dividi a pandemia em quatro fases. Numa primeira fase, no início da pandemia, alguns países mobilizaram ajuda, com o envio de máscaras e materiais médicos para ajudar a China quando ainda se pensava que a covid seria um problema interno do país. A segunda fase foi marcada pela diplomacia da máscara e, depois, a terceira fase com a diplomacia da vacina. A quarta fase, que desenvolvo menos no livro, é a do pós-covid, com a política de covid zero e a guerra na Ucrânia. A diplomacia da máscara foi um conceito para descrever a ajuda que a China prestou a todo o mundo, e surge pela escassez que existia de materiais médicos e ventiladores, que, em grande parte, eram produzidos no país. Esta diplomacia da máscara acabou por ser mais desenvolvida do ponto de vista bilateral com os países. Ao invés de multilateral. Para compreendermos a questão da diplomacia da máscara é necessário ir além das duas posições antagónicas em que, por um lado, temos algumas pessoas que falaram em propaganda da parte da China e, por outro, pessoas mais cépticas que falavam em oportunismo por parte do país. A diplomacia da máscara deve ser vista, a meu ver, como uma adaptação das práticas diplomáticas contemporâneas que, em conjunto com a pandemia, deram à China uma oportunidade para o país provar as suas capacidades de mobilização e cooperação internacional. Permitiu também provar a flexibilidade da Rota da Seda da Saúde. Deve-se reconhecer, neste período, todas as conquistas conseguidas pela China no que diz respeito à rápida activação de todos os actores envolvidos [no processo de ajuda durante a pandemia]. Como é que se passou depois para a diplomacia da vacina? Posteriormente, quando já não havia escassez de materiais, dá-se a transição de necessidades para a tal diplomacia da vacina, com a produção e entrega de vacinas como um bem de saúde pública. Este é um campo onde a China tem vindo a dar cartas de forma positiva, com apoios e desenvolvimento de campanhas internacionais em vários países. Segundo alguns dados públicos, até Março de 2021 a China produziu 170 milhões de doses e em Junho desse ano havia fornecido mais de 350 milhões de doses a mais de 80 nações e exportando para 40 países. Apesar da falta de alguns dados públicos, as vacinas chinesas ofereciam diversas vantagens para os países em desenvolvimento, com fornecimentos da Sinovac e Sinopharm prontamente disponíveis, numa altura em que as alternativas ocidentais eram escassas. Falamos de uma altura em que os EUA saem temporariamente da Organização Mundial de Saúde (OMS), em que os líderes pedem vacinas como bens públicos globais, mas, de forma egoísta, compraram mais vacinas do que necessitavam, dando origem a um vazio que a China consegue preencher. Nesta fase, houve uma grande fragmentação nas respostas na diplomacia global da saúde, como, por exemplo, os mecanismos de saúde da União Europeia (UE) ou a venda prioritária da venda de doses da Pfizer e Moderna. Com a chegada da variante Ómicron percebe-se que, no caso das vacinas chinesas, a imunidade passa para valores demasiado baixos, o que faz com que alguns países que tinham adquirido vacinas chinesas passem a fazer o reforço com uma vacina ocidental. Na diplomacia da vacina questionou-se, da parte de alguns países ocidentais, a eficácia das vacinas chinesas, mas a UE acabou por aprovar o licenciamento da Sinovac. Os laboratórios chineses vão, um dia, liderar mais neste campo? Vale a pena realçar que a diplomacia da vacina diz mais respeito à ajuda humanitária, em que a vacina é vista como um bem de saúde pública global. Além disso, a China já está envolvida nas questões da saúde global desde os anos 60 quando o país começou a enviar equipas médicas para África, o que, na altura, foi uma prática inovadora para fomentar a cooperação Sul-Sul, e em 1963 foi enviada a primeira equipa para a Argélia. A abordagem chinesa à cooperação mundial na área da saúde tem vindo a evoluir no sentido positivo. O envolvimento da China na diplomacia da vacina não é algo novo, mas com a pandemia foi reavivado. A menor eficácia das vacinas chinesas em relação às novas variantes da covid foi o factor que desencadeou estes desenvolvimentos na diplomacia da vacina chinesa, que surgem no período covid, e que fizeram com que a China, em parte, tenha perdido algum do espaço ganho neste período. O país tem uma grande parte dos ingredientes químicos e naturais necessários para as vacinas e cada vez mais investe em investigação. Não será de todo impossível que, com o passar dos anos, e com a China a demonstrar maior credibilidade neste campo, com mais tecnologias e equipamentos, que a UE não aprove novos medicamentos ou vacinas chinesas. As questões de saúde devem ser concertadas a nível mundial. Os resultados serão melhores se partilhados. O caminho, nas questões de saúde, é mesmo a globalização. O livro aponta que o papel da China na chamada “governança global da saúde” é ainda “incipiente”. O que pode ser feito para o país reforçar a sua influência nesta área? A retirada dos EUA da OMS e o facto de se ter isolado, em parte, para tratar internamente da pandemia, sem concertar uma resposta global, deu à China espaço para mostrar as suas capacidades e liderar, em parte, a luta contra a pandemia. O programa “Healthy China 2030” é muito abrangente, define metas de desenvolvimento para o sistema de saúde interno do país e é aqui que está a grande chave. Há notícias que referem o facto de o país já investir mais em investigação do que os EUA, e é aqui que percebemos que a China está a investir fortemente nas questões da saúde e na construção de um “agenda-setting” da saúde internacional. O país investe na ideia de que não basta apenas aplicar as melhores práticas, mas é necessário também ter um papel activo na definição dos padrões internacionais. O investimento na investigação e capacitação do sistema de saúde interno, bem como o papel que tem tido na definição dos padrões globais de saúde, podem preparar melhor a China para adquirir uma posição mais activa nesta área. Por outro lado, está a investir na dinamização da medicina tradicional chinesa que, em parte, pode alavancar uma diferenciação em algumas práticas médicas que outros países não têm. Outra das conclusões é que a pandemia permitiu à China mostrar uma posição de liderança numa primeira fase, mas depois revelou algumas fragilidades internas do país. Olhamos para a China e temos de perceber que em Portugal somos dez milhões, mas na China são 1.4 biliões de pessoas. Há uma escala populacional completamente diferente. Existiu, de facto, uma posição inicial de liderança, porque a maior parte dos materiais médicos era produzida no país. Muito rapidamente a China desenvolveu os trâmites de ajuda e os mecanismos de logística. Com os confinamentos, a covid estava controlada e a China mostrou ao mundo que era capaz de construir grandes hospitais em tempo recorde. Com a covid zero, [a situação] foi certamente muito complicada para a população chinesa, inclusivamente a de Macau. Teve custos económicos, políticos e sociais muito elevados. A economia chinesa pagou fortemente por isso. Fazendo uma ligação com as vacinas, falamos de uma enorme produção de doses tendo em conta a população chinesa. A capacidade de produção é grande, mas não infinita, e houve escolhas que tiveram de ser feitas. Diz que a Rota da Seda da saúde ganhou uma maior institucionalização nos últimos anos, com a criação de fóruns com diversos países, e estando mais global, com presença em novos mercados. É uma política que vai ter maior desenvolvimento? A iniciativa “uma faixa, uma rota” foi apresentada em 2013, e a Rota da Seda da Saúde foi-o em 2016 no Uzbequistão. Esta, antes da pandemia, já apresentava um bom nível de desenvolvimento, em grande parte devido às décadas de experiência da China no combate às doenças infecciosas e na posição que tinha no fornecimento de ajuda a países em desenvolvimento. A Rota da Seda pretende institucionalizar estes mecanismos não como uma alternativa à OMS, mas sim como um complemento. Com a pandemia, este mecanismo acaba por ganhar um novo ímpeto, e com a criação de alguns fóruns multilaterais com outros países a China pôde desenvolver ainda mais esta iniciativa diplomática. Acredito que, no futuro, estas bases lançadas desde 2016 possam alavancar ainda mais a Rota da Seda da Saúde com mais participantes, iniciativas e desenvolvimentos favoráveis a todo o mundo. Defende que deve ser dada maior importância à governança global da saúde com uma maior cooperação com a OMS e ONU, mas, ao mesmo tempo, a China deve desenvolver o seu sistema de saúde interno. A OMS e ONU estão dispostas a esta colaboração? Deve haver, de facto, uma maior concertação entre os actores envolvidos para eventuais respostas a emergências globais. Neste campo a China fez um óptimo trabalho e demonstrou, à partida, que queria que a Rota da Seda da Saúde estivesse ligada a todos os outros mecanismos existentes, como a OMS e a Agenda de Desenvolvimento Sustentável da ONU de 2030. Isso mostra que a China pretende continuar a integrar a ordem internacional liberal, onde participa activamente, e a Rota da Seda da Saúde começa a afirmar-se como uma iniciativa “win-win” [ganhos para as duas partes] que permite à China alcançar um lugar mais preponderante a nível mundial na área da saúde e a todos os outros Estados o desenvolvimento dos sistemas de saúde e práticas médicas. Parece-me que há vontade das instituições internacionais em cooperar com a China.