Giorgio Sinedino: “O domínio do idioma e a experiência de vida na China são indispensáveis”

Por Alessandra S. Brites, da agência Xinhua

 

Nos últimos tempos, as relações entre China e Brasil têm sido desenvolvidas com foco na aproximação e entendimento mais aprofundado de ambas as partes, em diversas áreas. Mas, no que diz respeito ao sector cultural e, especificamente, o literário, muito ainda necessita ser explorado, melhorado e consolidado. O sinólogo, professor e tradutor brasileiro residente em Macau, Giorgio Sinedino, responsável pela tradução de clássicos directamente do chinês clássico para o português, como “Analectos” de Confúcio, “Dao De Jing” de Laozi e o “Imortal do Sul da China” de Zhuangzi, em entrevista exclusiva para a Xinhua, abordou alguns dos desafios que a literatura chinesa ainda enfrenta para ser mais conhecida no Brasil.

“Acredito que existe um mercado, de nicho, que cresce em função do aumento da influência chinesa e de sua paulatinamente maior visibilidade. No entanto, tal como em outros países ocidentais, o nosso interesse pela literatura chinesa ainda é motivado pelo quadro político e geopolítico. Julgo importante tentarmos dar um valor autónomo para a literatura chinesa, deixando de lado outros problemas que não sejam o de simplesmente compreender a China e a sua civilização em si”, afirmou.

Sinedino, que neste ano vai lançar uma tradução de “Grito”, de Lu Xun, pela Editora 34, e planeia uma tradução comentada da “Arte da Guerra” de Sunzi para o ano vindouro, pela Editora da Unesp, diz ainda que entre os empecilhos para a cooperação no sector literário está a tradição intelectual e artística da China que se destaca fundamentalmente do mundo ocidental, local onde também é incluída a literatura brasileira.

“Alguns dos obstáculos são estruturais, difíceis de ultrapassar. Por exemplo, o facto de que a língua chinesa pertence a uma outra família, a sino-tibetana, sem parentesco algum com o nosso português. Na realidade, o chinês é uma colecção de dialectos. É uma família linguística que cresceu milenarmente para dentro, sem estar relacionada a qualquer outro idioma de qualquer outro país vizinho no mundo moderno”, argumentou o professor que enfatiza ser a tradução de obras clássicas chinesas, ainda que com os desafios apresentados, uma boa aposta para o mercado no Brasil.

Uma lição da literatura coreana e japonesa

Actualmente uma série de obras japonesas e sul-coreanas estão disponíveis em maior número no mercado literário brasileiro do que títulos de obras chinesas. Para o sinólogo Giorgio Sinedino esta questão ocorre não apenas em razão da presença de um maior número de imigrantes, no caso do Japão, mas também porque as culturas japonesa e coreana utilizaram meios de massa, a criação de estilos e de modas, para dar mais visibilidade ao que têm de característico em termos literários.

“Ambos aproveitaram um mercado cultural internacional, mediado pelas indústrias dos EUA, para se enraizarem globalmente no sector cultural. Quanto à literatura, esta beneficia-se e cresce no empuxo da vanguarda da cultura de massa. Hoje em dia, o meio literário tem forças limitadas para se projetar independentemente das artes multimidiáticas, pelo menos no que se refere ao grande público”, salientou.

A capacitação de futuros tradutores no Brasil

De acordo com Sinedino, o Brasil necessita constituir uma base sólida na capacitação de profissionais que venham a trabalhar com literatura e artes chinesas. “O domínio do idioma chinês e a experiência de vida na China são indispensáveis, o que infelizmente se constitui numa barreira económica proibitiva para muitos. Esses profissionais de ponta teriam os meios para desenvolver o ‘nicho chinês’, não só oferecendo traduções de qualidade produzidas sem intermediários, mas, sobretudo, sendo qualificados para educar o público leitor.”

Segundo o professor, antes de julgar as obras escritas em chinês antigo, é preciso conhecê-las e fazer as referências adequadas à língua e cultura das quais originaram-se, o que presume um certo conhecimento sistemático da literatura chinesa e das regras e padrões que segue.

“À medida que aliviamos a influência desses gargalos, podemos pensar em como organizar equipes de tradutores. É preciso também destacar pontos de apoio em instituições de ensino ou associações civis para mantermos o momento dessas obras, quem sabe através de departamentos académicos especializados, de instituições de fomento, de iniciativas como prémios”, diz o académico.

“Esse é o ponto de partida para falarmos sobre os desafios do tradutor de língua portuguesa. Ele não pode, não deveria, começar a trabalhar antes de enfrentar certas questões sobre a natureza do texto que tem diante de si. Por exemplo, o que é literatura, na trajectória do pensamento chinês? Qual a sua função social? Quais os critérios que separaram esta obra que está traduzindo das outras, como representativa do que há de melhor na tradição chinesa? O que os leitores originais apreciaram e apreciam nesse texto e como esses valores literários podem (se for o caso) ser reproduzidos numa tradução? A partir de um tal diagnóstico, o tradutor é capaz de planejar melhor o seu esforço de mediação cultural, demanda tão mais exigente, quanto mais antigo for o texto”, conclui.

Quanto aos desafios de traduzir obras da literatura chinesa moderna, Sinedino acredita que a falta de experiência por parte do leitor de língua portuguesa sobre o que significa ser chinês, viver na China e escrever sobre ela é um obstáculo difícil ainda de ser superado. Porém, à medida que o conhecimento aprofundado sobre China vai sendo mais difundido ao longo dos anos no Brasil, tais dificuldades começam a ser menos preponderantes.

Primeira parte do século XX: o encontro possível entre a literatura brasileira e chinesa

Como explica Sinedino, a história literária de ambos os países diferencia-se e muito, pois a literatura brasileira é uma ramificação das literaturas em línguas românicas, provenientes da literatura em Latim, a qual conta cerca de 1500 anos de desenvolvimento. “Já a literatura chinesa cresceu em torno de um conjunto de obras, os ‘Jing’ – Clássicos Ortodoxos relacionados ao Confucionismo, escritos em chinês antigo, uma língua artificial muito diferente do idioma falado”, explicou.

Contudo, a política de Abertura e Reforma impulsionou na China um grande movimento de tradução de literatura estrangeira, principalmente durante os anos 1990 e 2000, relatou Sinedino. “É possível encontrarmos pontos em comum desde as referências mútuas que os autores e leitores contemporâneos, brasileiros e chineses, fazem de suas influências. Falando um pouco mais especificamente sobre estilo e forma literária, a prosa chinesa do século XX é predominantemente de esquerda. Por tal motivo, aos nossos olhos, é uma contínua reiteração do realismo social. Não vejo erro em afirmarmos que há alguma margem de comparação entre essa literatura chinesa, crítica, sobre a vida no campo e a situação do campesinato, e a nossa literatura modernista regionalista de 1930-1945. No entanto, é sempre importante estarmos atentos para as diferenças, porque são elas que ensinam melhor sobre o que é a China e o que é a sua cultura. Creio que a leitura mais interessante de uma obra literária é a que dá destaque às diferentes experiências culturais e diferentes formas de pensar.”

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