Ai Portugal VozesOs amigos não podem ser para as ocasiões André Namora - 5 Dez 2022 DR Em todo o mundo existem amigos, apesar de alguns conhecidos afirmarem-se, hipocritamente, como amigos. Portugal não foge à regra e penso que toda a gente tem amigos, refiro-me aos verdadeiros, naturalmente. O que não me passava pela cabeça é ter lido uma estatística onde se informa que em Portugal 80 por cento dos amigos zangam-se. Ui, é muito. Pensei que as zangas radicais entre amigos englobassem um número diminuto. Isto, fez-me lembrar uma história verdadeira de dois amigos que conheci em Leiria e que me chocou profundamente pelo seu teor de injustiça. Eram dois jovens que frequentaram a mesma escola primária e o liceu. Um deles era filho de empresário abastado com várias casas e quintas. Os dois passavam o tempo sempre juntos. Mas, o outro era pobre, muito pobre. A sua mãe dedicava-se à limpeza de lojas e o pai era ajudante de carvoeiro. O amigo rico levava o pobre a todo o lado, dava-lhe roupas e quando a sua empregada vinha cheia de produtos do supermercado tirava logo umas quantas iguarias para oferecer ao pobre. Cresceram e fizeram o serviço militar juntos, sendo até mobilizados para as colónias, no entanto, para territórios diferentes. Quando regressaram a amizade parecia ter aumentado e o rico continuava a ajudar a família do pobre com produtos de vária ordem. Nunca deu dinheiro ao amigo pobre. O rico tinha uma máxima que ninguém acreditava, dizia ele que o seu pai lhe tinha ensinado que nunca emprestasse dinheiro a ninguém porque perdia o dinheiro e o amigo. Ora, isso não é verdade porque conheço dezenas de amigos que tendo uma vida folgada emprestam dinheiro ao seu amigo em dificuldades vivenciais, e o mais desprotegido paga a dívida, após o que ficam muito mais amigos. Portanto, o amigo rico, diga-se em abono da verdade, era muito altivo, um pouco peneirento, arrogante e gostava de mostrar que era rico frequentando os melhores restaurantes de Lisboa quando visitava a capital, pois tinha adquirido uma vivenda na linha de Cascais, mas gorjetas aos empregados não era com ele. Como amigo do pobre tinha um grande defeito: convidava o pobre para almoçar para os tais repastos luxuosos, mas o pobre começou a desconfiar ao fim de mais de 40 anos de relação amistosa, que o seu amigo rico convidava-o para mostrar aos outros convivas que era um benemérito e que ao fim e ao cabo o que estava a fazer era a dar uma esmola ao amigo pobre, que entretanto, se tinha reformado com uma pensão de apenas 300 euros. Num belo dia, o amigo rico no seu carro luxuoso dos mais caros do mercado ia tendo um desastre fatal para ambos. O rico ia a guiar completamente embriagado e o pobre ao seu lado conseguiu puxar o volante de modo a que o carro não embatesse de frente num camião. A gravidade da embriaguez era tanta que o acidente mortal já podia ter acontecido por diversas vezes. Só para que tenham uma ideia o amigo rico bebia uns seis whyskis após a refeição onde já tinha bebido uma garrafa de vinho. O amigo pobre contactou com a mulher do amigo rico e com os filhos dando conhecimento do que se andava a passar e a propor que devido à sua riqueza o melhor seria que o pai passasse a ir para todos os repastos com um motorista privado. A mulher achou uma boa proposta, mas não tinha voto em nenhuma matéria lá em casa. Um dos filhos, que sempre se armou em mandão e vaidoso das suas motos de topo de gama e dos seus carros desportivos chegou a casa dos pais e contou a proposta do amigo pobre. Foi o fim do mundo. A discussão foi grande. O filho vaidoso aldrabou os familiares dizendo que possivelmente o amigo pobre é que embriagava o pai e que o mais natural seria ele vir a dar uma sova no amigo pobre por andar a levar o pai para maus caminhos que podiam acabar em acidente rodoviário mortal. O pai, o tal amigo rico, no dia seguinte, logo pelas oito da manhã telefonou ao pobre e deu-lhe uma descasca de caixão à cova. Insultou-o de tudo, disse-lhe que não lhe admitia que o pobre se metesse na vida dele criando um mal-estar no seio familiar que até poderia levar ao seu divórcio e ao fim da relação com os filhos. Coitado do pobre, lavado em lágrimas após o telefonema ficou atónito a pensar no sucedido e decidiu que a sua grande e profunda amizade de décadas pelo rico teria terminado. E nunca mais telefonou ao rico, nem aceitou mais nenhuma “esmola” do rico. Este, passados dois anos, cheio de remorsos, tentou fazer as pazes e pedir desculpa ao pobre convidando-o para almoçar. A resposta foi negativa e afirmou ao seu ex-amigo rico que a sua pobreza ao longo da vida sempre teve dignidade e seriedade. Pela minha parte, sempre gostei dos pobres com dignidade. São amigos verdadeiros.