Os amigos não podem ser para as ocasiões

Em todo o mundo existem amigos, apesar de alguns conhecidos afirmarem-se, hipocritamente, como amigos. Portugal não foge à regra e penso que toda a gente tem amigos, refiro-me aos verdadeiros, naturalmente. O que não me passava pela cabeça é ter lido uma estatística onde se informa que em Portugal 80 por cento dos amigos zangam-se. Ui, é muito. Pensei que as zangas radicais entre amigos englobassem um número diminuto.

Isto, fez-me lembrar uma história verdadeira de dois amigos que conheci em Leiria e que me chocou profundamente pelo seu teor de injustiça. Eram dois jovens que frequentaram a mesma escola primária e o liceu. Um deles era filho de empresário abastado com várias casas e quintas. Os dois passavam o tempo sempre juntos. Mas, o outro era pobre, muito pobre. A sua mãe dedicava-se à limpeza de lojas e o pai era ajudante de carvoeiro.

O amigo rico levava o pobre a todo o lado, dava-lhe roupas e quando a sua empregada vinha cheia de produtos do supermercado tirava logo umas quantas iguarias para oferecer ao pobre. Cresceram e fizeram o serviço militar juntos, sendo até mobilizados para as colónias, no entanto, para territórios diferentes.

Quando regressaram a amizade parecia ter aumentado e o rico continuava a ajudar a família do pobre com produtos de vária ordem. Nunca deu dinheiro ao amigo pobre. O rico tinha uma máxima que ninguém acreditava, dizia ele que o seu pai lhe tinha ensinado que nunca emprestasse dinheiro a ninguém porque perdia o dinheiro e o amigo.

Ora, isso não é verdade porque conheço dezenas de amigos que tendo uma vida folgada emprestam dinheiro ao seu amigo em dificuldades vivenciais, e o mais desprotegido paga a dívida, após o que ficam muito mais amigos. Portanto, o amigo rico, diga-se em abono da verdade, era muito altivo, um pouco peneirento, arrogante e gostava de mostrar que era rico frequentando os melhores restaurantes de Lisboa quando visitava a capital, pois tinha adquirido uma vivenda na linha de Cascais, mas gorjetas aos empregados não era com ele.

Como amigo do pobre tinha um grande defeito: convidava o pobre para almoçar para os tais repastos luxuosos, mas o pobre começou a desconfiar ao fim de mais de 40 anos de relação amistosa, que o seu amigo rico convidava-o para mostrar aos outros convivas que era um benemérito e que ao fim e ao cabo o que estava a fazer era a dar uma esmola ao amigo pobre, que entretanto, se tinha reformado com uma pensão de apenas 300 euros.

Num belo dia, o amigo rico no seu carro luxuoso dos mais caros do mercado ia tendo um desastre fatal para ambos. O rico ia a guiar completamente embriagado e o pobre ao seu lado conseguiu puxar o volante de modo a que o carro não embatesse de frente num camião. A gravidade da embriaguez era tanta que o acidente mortal já podia ter acontecido por diversas vezes. Só para que tenham uma ideia o amigo rico bebia uns seis whyskis após a refeição onde já tinha bebido uma garrafa de vinho.

O amigo pobre contactou com a mulher do amigo rico e com os filhos dando conhecimento do que se andava a passar e a propor que devido à sua riqueza o melhor seria que o pai passasse a ir para todos os repastos com um motorista privado. A mulher achou uma boa proposta, mas não tinha voto em nenhuma matéria lá em casa.

Um dos filhos, que sempre se armou em mandão e vaidoso das suas motos de topo de gama e dos seus carros desportivos chegou a casa dos pais e contou a proposta do amigo pobre. Foi o fim do mundo. A discussão foi grande. O filho vaidoso aldrabou os familiares dizendo que possivelmente o amigo pobre é que embriagava o pai e que o mais natural seria ele vir a dar uma sova no amigo pobre por andar a levar o pai para maus caminhos que podiam acabar em acidente rodoviário mortal.

O pai, o tal amigo rico, no dia seguinte, logo pelas oito da manhã telefonou ao pobre e deu-lhe uma descasca de caixão à cova. Insultou-o de tudo, disse-lhe que não lhe admitia que o pobre se metesse na vida dele criando um mal-estar no seio familiar que até poderia levar ao seu divórcio e ao fim da relação com os filhos. Coitado do pobre, lavado em lágrimas após o telefonema ficou atónito a pensar no sucedido e decidiu que a sua grande e profunda amizade de décadas pelo rico teria terminado.

E nunca mais telefonou ao rico, nem aceitou mais nenhuma “esmola” do rico. Este, passados dois anos, cheio de remorsos, tentou fazer as pazes e pedir desculpa ao pobre convidando-o para almoçar. A resposta foi negativa e afirmou ao seu ex-amigo rico que a sua pobreza ao longo da vida sempre teve dignidade e seriedade. Pela minha parte, sempre gostei dos pobres com dignidade. São amigos verdadeiros.

5 Dez 2022

O quarto

[dropcap]C[/dropcap]rescente, minguante, ou simplesmente o quarto. Escuro. Que se teme como se tem em casa. O pavor do desconhecido que nos invade e está para além daquela porta. Que se abre sozinha num chamamento. Do lado de lá, ou do lado de cá. Quarto crescente, dizia-se, era o tempo de cortar o cabelo para que crescesse melhor. O que significa melhor? Mais rápido ou mais forte. Mas nunca as duas coisas. De acordo com as fases da lua. Mas é sempre a renovação. Tempo de mudança em catadupa ou em profundidade. A pedir paciência e distância para ler em longitude. Não tenho cortado. Há qualquer coisa impensada e ancestral, que me apetece, nisto. Talvez estranho. Se não será estranho tudo o que somos nos outros.

Um bom jogador calculava a mão do adversário. Novas cartas de jogar, de marear. Mesmo as de avião chegavam com cheiro a maresia. Rasto de nuvens ou aroma de terra. Vindas sobre o mar a olhar para baixo e a contar milhas. Dias, até chegar a continente. Cheias. Mesmo se de pequenos faits divers. Palavras trazia-as o vento. Mas aquelas ficavam para sempre coladas amorosamente, com a discreta cola que une os pigmentos à folha, num para sempre que para sempre se podia revisitar. Saborear.

Escrever é bom. Que pena perder-se o prazer das cartas. Não as de jogar, talvez mais sedutoras, mas de escrever. Ao outro, mesmo o outro de nós. Numa confissão de coexistência pacífica. As cartas são sempre uma emoção ao ponto de subir aquele nó. São tempo, tão tempo. Ultrapassado com tempo e com o tempo necessário. Dantes muito, hoje menos. O necessário para a ponte. O tempo parado, refeito remodelado. Um registo físico que se apertava nas mãos e prometia. E a caligrafia laboriosa, estilizada de quem se vestiu bem pela manhã para chegar ao outro.

Tive um amigo. R. De há muitos anos e há muito retirado. Era apelido. Que parecia nome e era. Nunca tive tempo de passar a tratá-lo pelo primeiro nome. Pareceria uma outra pessoa. Vivia antes num quarto apertado, meticuloso e escuro, em que o visitámos – lembro – perto do antigo aquário. Um mundo recolhido.

Como se a sofrer de tonturas e enjoo da trepidação do mundo. Mais tarde numa casa com luz.
Tinha uma colecção de copos antigos. Delicados e lapidados, que guardava num móvel retro que abria com aqueles gestos lentos a orquestrar poesia. A voz, os olhos transparentes e as palavras repletas. Ao ponto de ser parte de um teatro e no medo de dizer coisas rudes e sem a deixa certa. Uma performance de zelo e o desafio da capa poética do tempo a passar, nessa escultura aprimorada para a memória. E um pé de rosas pequeninas e claras num vaso, que se dispôs a deixar partir porque deveria podar as raízes como os delicados ramos. São difíceis as rosas. Ou talvez não fosse isso, mais do que o que me ficou na memória ficcionada. Talvez naquele dia ela estivesse, a roseira mínima, por ela própria, simplesmente de partida. E ele, por um desses mecanismos de negação do inevitável, a iludir o destino da roseira cruzando-o com o seu. Bebeu demais naqueles copos, uma certa desistência do mundo como a dor da desistência da rosa. Da sua.

Abalou, na soberba convicção da sua estranheza máxima. E da sua inviabilidade face ao mundo. Tornar-se ilegível e invisível. Para não ver a sua invisibilidade descontrolada. Uma ilusão de poder. Esta gestão do invisível poético. Retirou-se pelo caminho mais curto. Da face visível, vista daqui. Da sua face ao mundo e deste, na sua impraticável relação com a estranheza. Mas cada um a sua. E desapareceu de qualquer mapa. Espero que esteja por aí.

Eu tinha aquele amigo. R. Escrevia cartas como ninguém. Adivinhava-as poéticas no seu hermetismo meticuloso. Que ele sabia. Porque as sabia para lá dos limites do legível. Há duas formas de abstractizar, mesmo na caligrafia. Uma, esse estender vogais e consoantes num gesto langoroso e largo que as dissolve numa linha que é quase um espreguiçar felino e sensual. Outra, esse retorno tenso e imbricado sobre si, em nós de brusquidão. Em cada haste um nó, em cada perna um cilício. Ou esse revirar a letra sobre si própria com um braço que se protege. Na caligrafia dele, tudo isto e a escala à beira do invisível. Do abismo. Que para ele seriam as palavras que só ele sabia como se despenhavam. Num pedido a serem lidas. Talvez, como se quisesse. E não nos seus limites. Angustia-me ainda, quando o lembro.

Aquelas cartas – poucas, quando eu vivia longe – encriptadas numa escrita minúscula, indecifrável também por outros requintes que não a escala, também na forma. Já não bastasse o conteúdo. Pior do que o Edge Rank com mais de cem mil variáveis. Há tantas formas de ilegibilidade. Quase só o desfiar de linha plena de nós apertados e finos. Tão finos que não havia unhas que os desenleassem. Era para ser assim. Uma teia de sedução muito aquém do visível. A ilegibilidade assumida do ser face ao outro. A fuga desesperada à leitura. Conseguida. Desesperante. Protegida.

Como um temor prévio de não ser entendido. Mas talvez maior, ainda, o pavor de ser entendido. Demais. E, não confiando no mundo, por defeito protegia as suas ínfimas flores nocturnas e exauridas. Ao ponto de as deixar ir. Quanto custa este envergonhamento de ser, de sentir, de ser sabido, sentido…

Ele retirou-se em quarto minguante. Mas colecionava copos com alma. Vindos de outras casas e de outras vidas. Poeta solitário, virou-se para a poesia e esqueceu as pessoas para que não o esquecessem a ele. Uma espécie de abrupto – afinal – mergulho de novo num talvez outro quarto escuro. Aliviado de todo o peso extra, terá talvez pousado a caneta de vez. Sem ninguém de quem se esconder. Ou não. Não sei, até hoje, que lua nova lhe veio depois. Que crescente surgiu dali. Mas entendo, agora.

20 Jan 2020

Frequência em mestrado para formar quadros qualificados para a Administração exige recomendação superior

[dropcap]U[/dropcap]ma carta de recomendação elaborada pelo superior hierárquico directo figura como um dos requisitos para os funcionários públicos que pretendam frequentar o novo curso de mestrado em Administração Pública. Segundo as regras de participação, publicadas ontem em Boletim Oficial, o candidato tem ainda de ser detentor de grau académico equivalente ao grau de licenciatura da China ou de habilitações equiparadas, bem como possuir três anos de exercício consecutivo de funções públicas na RAEM.

O curso, que se destina ao pessoal de direcção, chefia ou equiparado, a técnicos e a quem integra as carreiras superiores das Forças de Segurança, tem como objectivo “formar os trabalhadores que sejam recomendados pelos respectivos serviços ou entidades públicas e tenham potencial e melhor desempenho, para serem quadros qualificados de gestão pública do Governo”, diz o regulamento da participação dos trabalhadores dos serviços públicos no curso.

Os participantes têm direito nomeadamente ao pagamento das propinas e despesas de inscrição, da viagem de ida e volta entre a RAEM e os locais de aprendizagem e ao alojamento fora do território e a uma bolsa diária. Além disso, após a obtenção do grau de mestre, podem ser recomendados para participar “em projectos de formação de quadros qualificados e/ou respectivo programa de estágio ou intercâmbio, desde que sejam avaliados como excelentes no desempenho de aprendizagem e tenham potencial para exercer cargos de gestão”.

Já os deveres incluem, por exemplo, prestar serviço ao Governo da RAEM por um período de cinco anos consecutivos a contar do dia seguinte à emissão do certificado do grau académico.

O primeiro curso de mestrado em Administração Pública foi lançado em 2009, resultando de uma colaboração entre o Instituto Nacional de Administração, a Universidade de Pequim, o Instituto Politécnico de Macau e os Serviços de Administração e Função Pública (SAFP).

28 Dez 2018