Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasDa desinquietação. Pág. 19 Anabela Canas - 25 Mai 2021 Não me aparece o caderno há muitos dias. Aquele de apontamentos inquietos para ler que página seria esta. A desta sensação indefinida que se insinua por dentro a macular toda a paisagem do dia iniciado de fresco. Uma tão moderada sensação de desequilíbrio, que é difícil entender como, ainda assim, transforma irremediavelmente tudo. Tudo o que se avizinha e tudo o que em geral se constitui como o que será em frente. O conhecido e o desconhecido. Mas essa sensação que me revisita é como uma zona demasiado frequente no caderno que mesmo sem intencionalidade no gesto e na procura, tende a abrir sempre no mesmo lugar. O lugar da insatisfação, o lugar da depressão ou o da desilusão. Outra coisa é escolher o quê e sobre o quê ao abrir das páginas. Sobre que pensamentos e emoções desenroladas e aplainadas sobre a mesa como se com um desígnio de importância que as elege. Que injusto escolher. Como injusto é o dever cronológico e de adequação a um contexto ou um momento existencial, a uma ordem e a uma obsessão de rigor. O anseio á espreita, a aguardar futuro sentido que as reorganize, afaste para ver de longe, e costure de forma que uma realidade com outra verdade se modele da mole dessas frases que as descrevem. E a esta impressão. Acordo assim. Nesta sensação demasiado familiar. Perscruto-a em busca de uma falha, um erro. Peso-a e tento medir forças. O que fazer disto. Pergunto-me como se abrisse a gaveta onde se guarda para estes dias o caderno da inquietação, que não está lá, mas sim perdido algures na casa e seguramente numa quietude inquietante. Que guarda aquilo em que me detenho no dia de hoje e que tenho a certeza de já antes ter registado ali. Mas hoje vejo-me disposta a arrancar umas páginas. Essas, em que a inércia de um sentir a cristalizar, tendem a abrir por automatismo da lombada com um vinco de demasiado uso. Todo o dia e desde um início assim se iria desenrolar com esta sensação forte de fim de Agosto. Fim verão ou fim de férias. Do sentido. Da tirania do texto que a impressão vai elaborando ou lembra. Mergulhar em momentos que já não são e não tentar entendê-los. Aceitar as frases em construção. Como se de dentro tudo pudesse escorrer sem retorno. Pode-se habitar o mesmo lugar, acordar sempre a mesma pessoa e abrir as mesmas janelas a espantar rapidamente o sono da casa em cada madrugada, deixar entrar a luz, mas a luz, também é uma luz diferente todos os dias. O rio que me aparece na janela mais pequena é sempre um enclave diferente na cor, na aparência densa, como uma superfície leve, ou mesmo como um pedaço de matéria mineral sólida. Uma pedra opaca. Uns dias faz-se ver nesse pequeno fragmento, como um ponto de passagem, de um todo que sei de outras vistas e noutros como um objecto em si, uma parte do enquadramento da cidade, inalterado naquela janela, e como uma espécie diferente e pequenina de rio, sem nada que o ligue ao outro. Nem nascente nem foz. Qualquer coisa ali em si, presa mas mutante. E mesmo sem admitir que corre. Se o olhar como mais uma risca na paisagem como a da margem de lá, feita de outras mais elevadas, de diferente recorte e mais acima. E também elas de cor diferente todos os dias. Pode-se. Entrar no dia ao longo do acordar, como a abrir portas sobre o conhecido e o desconhecido. E pensar que esse conhecido que nos assalta de visita é o peso de todos os dias anteriores. E dele, o pior que se pode deixar entrar é um olhar magoado sobre as coisas. Ou a vida. Ou, implicitamente, na verdade, sobre as pessoas. Ferido de preconceito que não é mais do que o peso inútil do momento já passado a imiscuir-se no presente etéreo e de passagem. Despido dessa névoa de tristeza, que sendo ou não sendo um balanço justo sobre o dia de ontem, não pode ser deixada em frente. Aos olhos. A contaminar o desconhecido do dia. Que tem todo o direito a uma estreia absoluta, a uma roupagem nova e a um olhar limpo do passado. Ser o rio do momento. Como o que passa e simultaneamente está. Mas nunca, ontem ou amanhã.