h | Artes, Letras e IdeiasPrimeiro acto – Cena 4 Gonçalo Waddington - 4 Mar 2021 Gonçalo levanta-se e vai até ao lava-loiças, pega num copo e bebe água da torneira. Na divisão ouve- se um copo cair ao chão e a desfazer-se em cacos. Gonçalo Parabéns! Valério [fora de cena] Obrigado. Valério abre a porta e quase que leva com o pano ensopado que Gonçalo lhe atira. Valério É um filme ou um livro? Gonçalo O quê? Valério “O Joãozinho Neo-Nazi vai à guerra”. Valério volta a sair pela porta. Ouvimo-lo limpar os cacos de vidro. Gonçalo volta para a sua cadeira e serve-se de mais vinho, terminando mais uma garrafa. Gonçalo Estás a trocar tudo! Valério [fora de cena] Peço desculpa, meu senhor. Você é tão prolífico que eu já não sei a quantas ando. Valério sai com os cacos embrulhados no pano, fecha a porta com o pé e aproxima-se do caixote do lixo por baixo do balcão. Passa o pano por água e torce-o. Lava as mãos e regressa à sua cadeira. Gonçalo O neo-nazi é o que encontra uma máquina do tempo. Valério Pois é! Gonçalo O que vai à guerra, ainda não sei quem é. Valério Mas é um filme ou é um livro? Gonçalo Ainda não sei… é uma imagem… uma cena que me tem surgido algumas vezes… parece-me interessante. Mas é igual a milhares de outras. Valério Por ser igual a tantas outras, vais desistir? [pausa] E é igual em quê? Uma situação de guerra? O tal êxtase no meio de tiros e explosões? Gonçalo Não vou desistir! Partilhei uma ideia que me anda às voltas na cabeça… nem sei se a vou começar. Valério Acaba lá a história do neo-nazi e da máquina do tempo… Gonçalo Não gostas no cenário de guerra. Valério dá-se conta de que o vinho acabou e lá vai ele à mesa abrir outra garrafa. Valério Já vais recomeçar!? Acabaste de dizer que é só uma ideia que te anda às voltas na cabeça… nem personagem tens. Gonçalo Está bem, mas eu partilhei-a… contei-ta para ouvir a tua reacção!! Valério E eu ouvi. e é uma boa ideia. E foi por isso que perguntei se era um filme ou um livro ou uma performance-instalação! Mas tanto pode ser o princípio, o meio ou o fim de alguma coisa… É ou não é verdade? Queres melhor terapeuta do que eu? Falas, falas… eu oiço-te, ajudo-te… mas há limites, caramba! Gonçalo Estás irritado porque o vinho está a acabar. Valério Não! Estou irritado porque tu esgotas a paciência de qualquer um com tanta insegurança. Quando o vinho acabar, vamos à garrafa de uísque que tens ali no chão, ao lado do caixote do lixo. Valério regressa à sua cadeira com mais uma garrafa de vinho e volta a encher os dois copos., cambaleando durante a operação. Senta-se e acende um cigarro. Oferece um a Gonçalo e dá-lhe lume. Os dois dão uma longa baforada e ficam em silêncio durante algum tempo. Valério Porque é que puseste ali a garrafa? Gonçalo Para não a bebermos. Valério És tão atencioso… Gonçalo Ele está lá deitado… os outros andam de um lado para o outro com os aparelhómetros… usam todos máscara e viseira… é difícil ver-lhes a… Valério [interrompendo] Isso na cena de guerra? Gonçalo Não…! Ai a minha vida. Valério Recomeças do nada…! Desculpa lá não ter tirado notas, meu anjo. Gonçalo Oh…! Valério “É difícil ver-lhes a cara…”, continua! Gonçalo Sim… e não é por estar de ressaca que ele não se consegue mexer. Valério Uau. Gonçalo Uau, o quê? Valério Porque é bom! Põe-nos logo a pensar… Estará fora do tempo, mas no mesmo espaço? Ou será ao contrário? Sente o corpo, não sente o corpo? Gonçalo Foste tu que escreveste a história?! Valério [rindo] Se tivesse sido eu, teria sido publicada! Valério desata a rir às gargalhadas quando se apercebe de que Gonçalo ficou ofendido com a brincadeira. Valério ‘Çalinho, ‘çalinho… Valério aproxima-se do amigo e dá-lhe um beijinho na bochecha e uma cotovelada no braço. Valério Vá lá, meu querido… continua. Gonçalo [contrariado] Ele sente o corpo! [pausa] Mas sente-o à distância… não muita… sente o corpo a uns metros… e em movimento… e dá-se conta de que alguns dos cálculos e medições estão também a ser feitos por ele próprio… quer dizer, ele está deitado, não se mexe, mas os números e as leituras aparecem-lhe como se ele estivesse em movimento. [pausa] Vê o que se está passar do ponto de vista de quem está deitado a um canto, como ele próprio está, naquele momento… mas vê também do ponto de vista de quem se movimenta pela estufa, olhando de um lado para o outro, lendo os aparelhómetros e anotando os números… Apercebe-se de que um dos cientistas que entrou na estufa, todo equipado, com máscara, fato, viseira e mais um par de botas… é ele próprio… mas no dia anterior. [pausa] O ele deitado vê o ele em pé no dia anterior… O ele em pé não vê o ele deitado nesse mesmo dia… Valério Repete lá isso! Gonçalo O ele deitado… [hesita] … vê o ele em pé no dia anterior. [pausa] O ele em pé… não vê o ele deitado nesse mesmo dia. Valério Escreveste assim? Gonçalo Não me lembro… [pausa] Acho que não. Valério É bom. Gonçalo [rindo] Então, acho que sim! Valério É bom, tendo em conta o contexto! A seco, parece poesia manhosa… [declama] O ele deitado… vê!… o ele em pé… no dia anterior… O ele em pé… não vê!… o ele deitado… nesse mesmo dia.