Cinestesia V. Infinitivos

[dropcap]O[/dropcap]s infinitivos: “vestir”, “despir”, “mergulhar”, “enxugar”, “adormecer”, “acordar”, “andar”, “correr”, “sentar”, “deitar”, “levantar”, “adoecer”, “convalescer”, “trabalhar”, “descansar”, “alterar”, “ligar”, “desligar”, “crescer”, “envelhecer”, “amar”, “nascer”, “morrer” dizem o “ser” da vida humana. O ser da vida humana não é uma substância matemática e inerte, infinitesimal ou infinita, interior ou exterior, mas é uma actividade dinâmica, implica-nos na mudança, altera, transforma, mesmo quando tudo se mantém inalterado. O fluxo da consciência pode correr à velocidade da luz, quando olhamos para alguém que se encontre ao pé de nós, mas o espaço em que nos encontramos está inalterado, pelo menos aparentemente. O mesmo acontece quando revisitamos os sítios da nossa infância que não sofreram processos agressivos de urbanização. Tudo pode permanecer inalterado. E, contudo, a última vez que lá estivemos pode ter sido há décadas. Nós não somos definitivamente os mesmos. Basta invocar uma lembrança de uma situação ocorrida há mais de quarenta anos para perceber que não somos os mesmos, ainda que os sítios possam parecer os mesmos. Entre as duas apresentações podia só ter decorrido um instante, um dia ou uma semana. Mas, não, passaram-se décadas. Talvez que as próprias coisas também se tivessem alterado debaixo da lente transparente do tempo. De facto, a divisão da casa em que me encontro era a sala de estar da casa dos meus avós. Já cá não estão sofás, nem a velha telefonia, nem a pesada mesa de jantar com cadeiras de madeira negra à volta, nem armários, nem os avós. Agora, a divisão serve de quarto de dormir e de gabinete de trabalho. O tempo enxertado entre a memória da sala de jantar com toda a gente viva e a percepção do espaço agora é de mais de quarenta anos, mas podia ser de um só dia ou do tempo que demorou a transformar o conteúdo de sala de jantar no conteúdo quarto de dormir e gabinete de trabalho. Os infinitivos exprimem acções. Para percebermos os seus conteúdos temos de invocar-nos a nós como seus protagonistas: vestimo-nos, despimo-nos, mergulhamos, enxugamos, etc., etc., ou então temos de ver alguém a executar as acções expressas por eles: alguém adormeceu, acordou, anda ou corre. A gramática antiga fala de “nomes de acção”. Como o no poema de António Machado se escuta que não há caminho, que o caminho se faz andando ou caminhando. O que aí está enunciado é que o caminho não é asfalto ou terra batida, nem pedras da calçada nem alcatrão nem nenhum dos materiais que revestem ruas, estradas e calçadas. O caminho implica saber fazer-se ao caminho a pé ou de meio de transporte, implica uma intervenção determinada. É isso que nos leva do ponto de partida ao ponto de chegada, da partida à meta. O ser humano está espalhado por todo um sem número de acções. Ser é agir, ser humano é já em acção. As acções podem parecer as mais simples que existem: respirar, ver e ouvir, levantar-se e ir-se embora ou deslocar-se com um determinado fim em vista. Sou sempre eu o protagonista de todas as acções. Podemos também agir em proveito próprio ou com prejuízo, reflexivamente ou passivamente. Podemos estar expostos à acção de terceiros, agentes da passiva a que nos expõem. A doença adoece-nos, a saúde convalesce-nos, o trabalho cansa, somos levantados e deitados, vestem-nos e despem-nos, como fazem as avós na infância. A percepção que cada um tem de si próprio não permite perceber que há limites estanques em cada uma destas acções, ainda que as consigamos compreender num horizonte de limites opostos. Vestir é o contrário de despir, adormecer de acordar, nascer de morrer, etc., etc.. Mesmo aqui se percebe que somos protagonistas de acções contrárias uma da outra. Sou eu quem adormece e que acorda, quem se veste e despe, que se molha e enxuga, anda, para, senta-se, deita-se, levanta-se. Tudo sem nos apercebermos do limite estanque, das fronteiras temporais e espaciais complexas que se erguem entre cada uma das acções. Nós compreendemos que antecipamos acordar no dia seguinte quando vamos para a cama dormir e quando nos levantamos, depois de acordar prevemos sem pensar nisso que vamos dormir à noite ou quando estivermos com sono. Antecipamos o sítio onde descansar depois do almoço para recuperar com a sesta para a travessia da tarde, o dia inteiro de manhã com todas as tarefas a desempenhar, funções a exercer. Sou eu no fim do dia que traz consigo como uma cauda do cometa ainda muito próxima da sua cabeça todo o dia que passou, até um fim de semana inteiro, umas férias, um ano lectivo ou os anos da vida. Ser eu, o sou implicado no ser da minha vida, está distendido para lá dos limites que se estabelecem de forma abstracta entre início, começo, princípio e fim. A percepção que cada um tem de si próprio, a propriocepção excede todas as acções, mesmo acções paralelas a decorrer em simultâneo e a coexistirem, desde sempre já e até à hora da nossa morte. Todas as acções estabelecem um hiato entre si mesmo quando se repetem. Quantas vezes adormecemos e acordamos, mergulhamos na praia e nos secamos, adoecemos e convalescemos, começamos a trabalhar e descansamos? E somos sempre nós a fazer transitar acções para o interior de outras acções, iniciá-las e terminá-las deixar decorrer em simultâneo, deixar para o dia seguinte, interromper provisória ou definitivamente. Nascer aproxima-se mais do sentido do ser enquanto a acção originária, a proto acção ou a arqui acção no interior do qual decorre tempo. Nós próprios somos passivos relativamente ao nosso nascimento. Precisamos de pai e de mãe ou de engenharia genética. Não nos fazemos a nós próprios, não nos fazemos nascer a nós próprios, mesmo que muitas vezes renasçamos ou ressuscitemos como se fosse a partir desses momentos que tudo começasse a ser a sério, como quando amamos e somos amados. E, mesmo assim, diz o poeta que “aqui não se pode amar senão deixar-se amar”. E mesmo que se diga no nosso idioma: “temos virão”, temos a a percepção do tempo, a percepção de si próprio a sermos sempre a passar de forma ininterrupta, descobrimo-nos a crescer em diversas fases, quase aos solavancos, os pelos púbicos e a barba, o cabelo que cai e o rosto que envelhece. O tempo passa irreversivelmente. Somos o tempo que passa no tempo que vem sempre para passar a partir da sua própria essência. Por defeito existir é ser o tempo que passa. O tempo começou a passar desde o primeiro instante. Desde o princípio que somos suficientemente velhos para morrer. Ser no tempo é ser a morrer. Não se morre nunca apenas na hora da nossa morte senão a partir do primeiro instante, logo ao nascer.

 

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