Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasPara não ver claro António Cabrita - 26 Jul 2018 [dropcap style=’circle’] A [/dropcap] seis meses de fazer os sessenta sinto que continuo a não ver nada claro e que isso afinal é que me alimenta a curiosidade. Se associarmos a idade ao hardwire, como um circuito que não pode ser reprogramado porque ficou como soldado a uma conexão anterior, não sinto nada que aos estímulos novos queira antepor alguma perspectiva de controlo. Estou nos antípodas da velhinha da anedota que procura a moeda que perdeu debaixo do candeeiro onde está a luz, na ilusão de que o problema se situe num perímetro em que o possa controlar. Quando era novo actuava como um x-acto, fosse na crítica que exercia, fosse na vida, porque achava que tudo era questão de ver claro. E via tão claro que aterrorizei a minha mãe durante anos com a obsessão de que me suicidaria quando fizesse vinte e três anos. Quando fiz vinte e quatro ela acordou-me e disse-me, Venho dar-te os parabéns que mereces, e esbofeteou-me com um furor idêntico à crueldade com que a mortifiquei durante um lustro. Aos vinte e nove divorciei-me porque via claro e segundo me contaram amigos dez anos depois – eu tinha-me esquecido de todo – separei-me porque, justifiquei, “não consigo ser suficiente burguês para ter uma mulher e uma amante ao mesmo tempo!”. Dada a beleza excelsa da esposa rejeitada e a sua inteligência emocional, percebo que me precipitei como o cretino embriagado pela teia das suas próprias palavras e ainda a milhas de saber que a burguesia tem pelo menos a virtude de ter menos ilusões quanto aos seus próprios enganos. Mas o fito era ver claro, bovinamente. Felizmente retirei-me dos comandos de uma tão decapitadora luminotecnia e passei a aceitar que uma certa falta de controlo faz bem à vida e que muitas vezes não vemos claro e sobretudo não vemos em 360 graus, isto é com a lucidez exigível. Hoje fascina-me que o documentarista Joris Ivens aos noventa anos tenha partido para a China para tentar fazer “um retrato” de algo verdadeiramente impalpável, o vento, fechando com o mistério desse elemento a sua carreira tão marcada pelo factor político. Deixou de ter medo de não ver claro. Neste campeonato do mundo confirmei. Das coisas mais penosas na tv é a redundância dos comentadores de futebol. Precisamente porque eles querem manter a ilusão de que vêem mais claramente do que os outros. A bola é centrada para a esquerda e repete o locutor: “a bola é cruzada para a esquerda”, como se fôramos cegos. “Em quatro minutos dois penaltis. Incrível, penalti claro, levou a mão à bola”, ouço, e que acabámos de ver? Dois penaltis e num deles a mão na bola. É um trabalho que se pode fazer com um olho nas costas. Um trabalho mecânico, com escassíssimas inflexões. Como eles próprios, inexplicavelmente, não morrem de tédio com a vacuidade produzida, dado esse mistério são considerados especialistas. Especialistas da duplificação inútil das figuras, como se fosse uma revelação extraordinária anunciar “A múmia está morta!”. É trabalhinho que dispensa o raciocínio, chega um vocabulário de 300 palavras, e ter engolido um megafone para ensaiar de cinco em cinco minutos os efeitos da ênfase: a dramatização é um ver claro. O sonho do meu tio Isidro era fazer relatos de futebol. A Rádio Renascença abriu-lhe as portas. O meu tio Isidro prometia não gritar golo antes da bola estar reposta no centro do terreno para não haver enganos. E chegou o dia, uma partida para a taça, 16 horas à canícula: Freamundo-Casa Pia. O que a seguir se passou ficou nos anais do jornalismo: o meu tio dividiu o campo em quartas e quartos (ao todo, explicou-me ele mais tarde, em 128 divisões) como na rosa-dos-ventos, estabeleceu que as balizas eram os pontos cardeais e os cantos os pontos colaterais, e a bola circulava de leste para nordeste, enquanto o ponta-de-lança corria de sudoeste para norte, numa angulação de 75º graus, o guarda-redes defendia por se ter metido nos cornos do Bóreas – um vento dos antigos – enquanto um tiro frouxo de fora da área era comparado a um Zéfiro esmorecido. Não se entendeu nada do jogo, mas as pessoas tiveram bastas informações sobre como orientar-se com uma bússola. Os actuais comentadores de futebol, pelo contrário querem “ilustrar” o jogo e mostrar como vêem mais claro. Por isso é urgente lembrar que faz cem anos nasceu um dos génios do cinema, Ingmar Bergman, cujas personagens se debatiam no nevoeiro. Num dos filmes, o Persona, uma enfermeira conta uma história a uma actriz em crise e que deixou de falar. Ouvimos o relato duas vezes. Primeiro sobre a imagem de quem o conta, depois sobre a imagem da actriz que escuta. Perguntaram-lhe porque tal acontecia e ele explicou: a história que se conta nunca é igual à história que se ouve. Ou seja: existe o relator, o ouvinte e o intérprete. O intérprete é cada um que ouve o relato a partir do seu contexto e estória de vida, diferente para todos. E com isto Bergman descentra o espectador do eixo do filme para nos fazer descobrir que aquelas personagens existem para além do público, têm uma dignidade própria que ultrapassa a função de fazer passar informação para o espectador. É isto que falta a muitos personagens de hoje, seja no cinema ou na literatura: tridimensionalidade. Mesmo que para tal as personagens, que tanto falam, deixem de ver claro para se emaranharem ainda mais. Mas há nos seus filmes um respeito pelas personagens, pela sua veracidade, que não se compadece com o espectáculo mas antes adianta a ideia de que vivemos num mundo múltiplo, onde às vezes é difícil o contacto humano. Ou encontrar, apesar da loquacidade, clareza no discurso. Seria útil que os locutores de futebol percebessem que vivemos num mundo múltiplo e não uniforme. Talvez assim, sem saberem como chegar a todos, se calassem.