Um mergulho no abysmo

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stamos conectados com o mundo. A nossa vida estende-se desde sempre já até ao presente e ao futuro. A ideia que temos de privacidade é complexa. Somos invadidos na nossa própria casa. O nosso passado não mora lá atrás. Nunca ficamos imunes ao que aconteceu. Está sempre à nossa espera. Somos assaltados com as lembranças do passado. Kant chamava-lhe auto-afecção nos escritos do espólio. Sem saber bem como, nem quando, nem onde chegam até nós do passado imagens e cenas de memórias antigas, inaugurais. Pode ser uma fragrância. Pode ser um sentimento que nasce de novo em nós não se sabe bem por quê.

Não estava a falar da nossa exposição a nós próprios. A nossa vulnerabilidade é tremenda. Desde sempre estamos expostos à fragilidade do tempo. Podemos seguir em frente e ultrapassar amores perdidos, histórias passadas. A vida infeliz é absolutamente interessante e a solidão é o elemento complexo onde há telepatia e canalização para outros mundos, para os mundos dos outros que ficaram no passado, ainda com vidas ou com os mundos dos outros que ficaram vida fora. A trama da nossa existência é feita com as vidas de todas as pessoas que conhecemos, com quem deixamos de falar, mas também com as vidas dos outros que nos deixaram. Sentimos a sua presença. Reagimos às suas vidas interrompidas. Não são meras possibilidades inertes. São realidades.

Mas há recantos onde não conseguimos ir. Situo-os no fundo talvez do mar que há em mim. Como quando dizemos “naquela altura” para nos referirmos “àquele tempo”. O acesso ao passado é feito por mergulho, como se nadássemos por cavernas mergulhadas em águas profundas e fossemos como enguias visitar os tesouros que lá se encontram. É sempre escuro e de pouca visibilidade e as memórias são memórias nocturnas de noites de inverno. O que está lá escondido e nunca assoma à superfície são histórias de encontros com pessoas. São épocas de séries de filmes com episódios onde nos encontramos todos nós lá a viver a vida sem saber no que vai dar.

Não temos roteiro, não temos itinerário, vivemos hora a hora sem saber como responder à vulnerabilidade e à nossa exposição ao outro. Estou a falar desse único outro que nos fez sair de nós próprios, da nossa redoma, da nossa solidão, da nossa ilha desconectada de tudo. Estou a visar esse outro em nome do qual todas as nossas preces se convertem em súplicas e o seu rosto é o rosto do amor que irradia por toda a nossa vida e transforma metamorfoseando tudo pelo seu olhar. São episódios avulsos em que este outro, o outro, entra. Estão conservados sob um manto gigantesco de água oceânica. O outro está mergulhado no recanto mais recôndito da caverna mais arredada onde ainda chega a água oceânica do tempo. E mergulhamos até lá por vezes. E lá está tudo como se tivesse sido ontem, como a entrega foi tão absoluta que nunca mais nos reavemos.

Vivemos devolutos mas nunca inteiramente livres. Nunca ninguém fica livre do amor e tal quer dizer da sua possibilidade seriamente encarada. Não sei se sou eu puxado por águas subterrâneas, correntes subliminares até esses mares escuros onde está mergulhada a minha vida. Não sei se as cenas do passado com todas as suas impressões se despregam do local onde estão fechadas a sete chaves e assomam à superfície. Sinto-me sempre embargado e vou sendo puxado para baixo, sem haver nunca senão o precipício sem fundo, o abismo dos abismos. Nunca sei onde fica a superfície porque para onde quer que eu olhe é escuro, não há fundo, nem forma. E vejo um rosto que me olha e um corpo que me toca. Não é já o rosto que encarava próximo do olhar à beira do abraço. É outra coisa. Como aquela tortura de que Aristóteles fala feita pelos piratas etruscos aos seus prisioneiros. Eram unidos rosto como rosto, corpo com corpo, apertados num único abraço com cadáveres. E é assim até ao fim da vida.

Os cadáveres são aqueles outros de quem sentimos falta, nunca mais serão substituídos, nunca mais haverá aquele outro. A nossa vida é a solidão descarnada da ferida exposta. Habitualmente aguentamo-nos. Mas, às vezes, vem das profundezas das nossas existências de novo aquele sonho que dormimos acordados. Parece real. Parece possível. E mergulhamos de novo até ao fundo dos tempos.

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