Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasJames Joyce | Metalinguagem, autobiografia e romance de iniciação Manuel Afonso Costa - 27 Abr 2017 Joyce, James, Retrato do Artista Quando Jovem, Difel, Lisboa, 1989 Descritores: Romance, Literatura Irlandesa, Autobiografia, Tradução e Prefácio de Alfredo Margarido, 269 p.:23 cm, ISBN: 972-29-0031-5 Cota: C-10-7-36 [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]enso que modestamente fiz a descoberta que se impunha para tratar este tema, ao inclinar a minha propensão para a obra de James Joyce, O Retrato do Artista Quando Jovem. Até porque por via de um pequeno pormenor que é contudo de uma relevância substantiva. É que o texto converteu-se imediatamente na abertura para uma dupla exposição, por que a personagem central do Retrato vem a ser também uma das personagens centrais da obra maior de Joyce, o Ulisses, ou seja nem mais nem menos que o alter ego do escritor, o incontornável Stephen Dedalus. Harold Bloom chega mesmo a considerar que é ainda Stephen Dedalus o narrador de alguns contos da colectânea, The Dubliners (em português, Gente de Dublin). Eu estava em Aix-en-Provence em 1989 e inscrevi-me numa cooperativa de cinema de arte e ensaio, das poucas ainda remanescentes em França depois do grande surto dos anos sessenta e setenta e um dia vi anunciado o filme de John Huston, The Dead, em português, Os Vivos e os Mortos. O filme baseava-se no último conto e seguramente o mais famoso de Dubliners (Gente de Dublin). James Joyce tinha 25 ou 26 anos quando o escreveu, na mesma época em que se dedicava à criação da versão inicial do seu romance de formação, que só seria publicado, depuradíssimo em 1916, com o título Um Retrato do Artista Quando Jovem. Os quinze contos de Gente de Dublin foram publicados dois anos antes. Se Stephen Dedalus, o herói, ainda resultava informe, e o texto ainda frouxo enquanto narrativa, os contos daquela época mostravam um Joyce que poderia ficar na história como um dos grandes do género, independentemente da sua reputação futura, Esta reputação e já o disse algures tem sido sobretudo calculada com base na capacidade de ruptura e na ousadia formal. São muitos os grandes escritores que nunca se renderam ao génio narrativo de James Joyce a começar pela sua conterrânea e contemporânea, Virgínia Woolf. Eu, com toda a modéstia também não. Entretanto ainda em França, segui pela televisão uma entrevista a Margarite Duras numa época em que a sua doença fatal estava já adiantada. Foi provavelmente a sua última aparição em público. Lembro-me bem do sentido global da entrevista que glosava uma das suas obras mais emblemáticas, L’Écriture (Escrever), mas lembro-me sobretudo que a dada altura e a propósito de cinema ela ter confessado no seu estilo radical e truculento que não conseguia ver um filme até ao fim, tal a decrepitude e indigência da Sétima Arte, à qual ela esteve sempre ligada, não o esqueçamos, quer como guionista, quer mesmo como realizadora. Como guionista não posso deixar de referir o Hiroshima meu Amor, realizado por Alain Resnais e o incontornável Moderato Cantabile, com Jean Paul Belmondo e Jeanne Moreau, realizado por Peter Brook. A par disso foram muitas as novelas que escreveu que passaram ao cinema, a mais conhecida terá sido O Amante, realizado por Jean-Jacques Annaud. Enquanto realizadora contam-se 19 obras entre curtas e longas metragens. Seria também uma injustiça não referir L’Homme Atlantique. Mas o que me trouxe a Marguerite Duras foi o facto de nessa entrevista ela ter referido que tinha aberto uma excepção, tinha ido ao cinema e tinha visto um filme até ao fim, e esse filme tinha sido justamente The Dead de John Huston baseado no conto homónimo de James Joyce da colectânea Dubliners, como já acentuei. Gostei tanto do filme que já o vi inúmeras vezes, que depois deste facto enchi-me de coragem pela segunda ou terceira vez e ataquei primeiro o Retrato do Artista Quando Jovem e mais tarde o Ulisses mas nunca o Finnegans Wake, que é ao que parece simplesmente ilegível. Voltemos agora ao Retrato e a Stephen Dedalus. Stephen Dedalus apresenta uma importância múltipla como chave de acesso à biografia de James Joyce, o facto de ser, como já disse, o alter ego de Joyce, o facto de ser uma das metamorfoses narrativas ou mesmo da narratividade literária do autor, o facto de ser também uma personagem, neste caso, com a responsabilidade de ser o protagonista e finalmente o facto ainda de se assumir muitas vezes como uma espécie de anti-herói mostrando o lado obscuro e quem sabe recalcado do artista. É em qualquer dos casos uma personagem complexíssima e rica, homóloga, no mínimo, do universo complexo e perturbado do próprio James Joyce em todo o seu processo formativo. E por falar em formativo, é o momento de não esconder e muito menos negar que o carácter de bildungsroman de O Retrato do Artista Quando Jovem também me apareceu muito atraente e sugestivo, pois as biografias devem começar pelos balbucios informes e quiçá ainda inconscientes do artista, justamente naquela fase da vida em que o ser estrebucha por se descobrir, por se encontrar com o seu genius ou se preferirmos por achar a sua subjectividade, encontro esse que é muitas vezes fatal e decisivo. É que, deixem-me dizê-lo já com clareza, num romance de iniciação, e este não foge à regra, pode aparecer com toda a nudez não apenas o processo de descoberta existencial mas ainda toda a panóplia de questões que há-de perseguir o artista ao longo da vida: temas, possibilidades retóricas, modulações narrativas, idiossincrasias estilísticas, modos e modelos expressivos, preocupações metafísicas e ideológicas, etc. Ora, é justamente isso que ocorre em O Retrato do Artista Quando Jovem do então jovem James Joyce. Muitos dos caminhos da sua obra e concomitantemente os caminhos de muitas das correntes do modernismo, ao longo do século XX, possuem aqui o seu momento inaugural. E para nosso gáudio, mas também para nosso desespero, encontram-se aqui em dédalo, isto é embrionários, no seio de um verdadeiro labirinto. Ou pensavam que o erudito e classicista James Joyce teria escolhido para personagem principal do seu primeiro romance a figura de Stephen Dedalus de modo acidental. Dedalus, ou Dédalo, possui uma riqueza multissémica que não foi alheia à escolha e onde eu ainda assim evidencio para além da ideia de labirinto, as ideias de enredo e de complexidade, sendo que ao mesmo tempo Dédalo pode ser capaz de sair das complicações em que se mete pois é também rico em artifícios e capacidades construtivas. Dédalo é um ser complexo e ambivalente como é toda a obra de Joyce. Segundo Bakhtin (Julian Nazario) o Retrato do Artista Quando Jovem parece consistir, no plano da sua arquitectura estrutural, numa longa citação, embora apenas implícita, de A Divina Comédia, de Dante, quando narra os três momentos da vida do protagonista central, Stephen Dedalus: a sua infância, a sua adolescência e finalmente a sua maturidade, que corresponderiam respectivamente ao Inferno, Purgatório e Paraíso da genial obra de Dante. Esta, por sua vez glosa o cânone clássico da morte, descida ao inferno e ressurreição. Seja ou não assim, a verdade é que a alegoria é possível e é apenas enquanto alegoria que nos interessa. O texto, por essa via, assume a valência de possuir a dimensão de uma metalinguagem, que ao proceder à narrativa de uma história e ao proceder à narrativa de uma autobiografia, pelo facto de que o autobiografado é um artista e um artista experimental inovador e revolucionário, acabar por nos dar o laboratório alquímico da sua prometeica experiência. O próprio Joyce se referiu a isso quando ao referir-se à arte e ao artista colocou na boca de Stephen Dedalus o seguinte: “A personalidade do artista, no início um pranto, uma cadência, um estado de espírito, e depois uma narrativa fluida e ligeira, refina-se no fim ao ponto de não existir mais, torna-se impessoal, por assim dizer. A imagem estética na forma dramática é a vida purificada através da imaginação humana e, por força desta, re-projectada. O mistério da estética como o da criação material, está consumado. O artista, como o Deus da criação, fica dentro ou detrás, além, ou acima de sua obra, invisível, aperfeiçoado e alheio à existência, indiferente, aparando as unhas” (James Joyce versus Julian Nazario) Neste sentido o artista, verdadeiro rival dos deuses, demiurgo e criador de um mundo absolutamente novo, criado tal como na criação divina ex-nihilo, daria razão a Bakhtin, no sentido em que na fase final da sua obra teria superado todas as vicissitudes terrenas e infernais para, por pura purga ascendente, se alcandorar finalmente à dimensão do Olimpo, ou seja do paraíso dantesco. A ressurreição e a ascensão ao Olimpo é aquilo que o artista persegue através do sofrimento existencial mas também através do trabalho laborioso do alquimista que no seu laboratório põe em perigo a própria vida para um dia poder lograr o flogisto salvador do génio, avatar glorioso do divino. Há um texto de Alfredo Margarido, que não cabe citar aqui, mas que, numa brilhante síntese, resume a dimensão experimental e portanto metalinguística da obra de James Joyce no seu todo e onde ele designa por exílio o que eu designo por reino e Bakhtin por paraíso. Mas, em boa verdade todas estas palavras, no âmbito da criação artística possuem o mesmo significado enquanto arquétipos da busca solitária do caminho que conduz o artista à descoberta e à afirmação da sua voz. Porém, o reino dos artistas possui uma limitação, que é também a sua grandeza humanista, digamos assim, uma vez que o que se visa através da arte é um mundo que só se torna possível a partir da viagem iniciática da formação do artista. Mas essa viagem e esse caminho começam por ser a demanda de Si, a descoberta do Eu, e do Genius que o Eu alberga e só essa descoberta pode abrir as portas para a ‘transcendência’ e é por isso que o Retrato do Artista Quando Jovem “é mais do que uma obra autobiográfica. Ela é o relato da trajectória de um homem em busca do pleno conhecimento de si mesmo”, ou seja, da transcendência que o habita.