Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasPinturas de Batalhas António Cabrita - 6 Abr 2017 02/04/2017 [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]erá a altura de revelar aos amigos de Macau que a mais atrevida representante da literatura feminina luso-macaense viveu vários anos em Lourenço Marques, nos anos 40 e 50, e provocou escândalos porque, além dos seus poemas serem incandescentemente eróticos, era publicamente suspeita de se ter entregado biblicamente a dois irmãos, Duarte Galvão e Bruno dos Reis. Assinava a diva Lee Li-Yang e radiografou em poemas licenciosos o seu amor, sobretudo por Duarte Galvão, um poeta com uma voz à James Mason e propenso ao dom juanismo, e que despertava nela a sensualidade e a paixão mas igualmente a ira, o ciúme, a crueldade ou a ironia – provocados pela infidelidade dele. E tudo isto se grafa nos poemas. Estes versos que, com escândalo, saíram em vários jornais e revistas da época foram finalmente compilados em livro em 2009 numa edição que prefaciei e foi publicada pela Escola Portuguesa de Moçambique, intitulada Meu Mar de Tochas Líquidas. Devido ao seu erotismo foram, de novo, motivo de desconforto. Eis breves excertos da sua pintura de batalhas, que explicam o embaraço: “É nua sobre a cama que te espero noite/ e enquanto o diabo me não liberte/ não se perca e me perca este fito –/ meu frágil coração de anjo e bruxa/ reclama a quatro patas teu vendaval/ de carícias e saques os teus/ clarins de guerra.”; “Na minha extrema e endiabrada/ vulva de prazeres e contrições/ convulsiva vulva de frémitos/ redivivos e onde de luxúria e raivas/ vi nascer e morrer deus e o diabo/ vergas de sal cegas de furor/ geografias do infame do insólito/ e gemas do mais familiar decoro modulei os diapasões e/ fiz do impossível/ meu perdão”; ”Sei que no antes/ a meio e no final/ de cada assalto serei eu/ quem te estrangula e/ serás ínfima expressão do teu/ cadastro enquanto vista de cima eu sou/ o mastro e tu por baixo/ a vela”. Lee-Li Yang foi um heterónimo do poeta moçambicano Virgílio de Lemos, tal como os outros dois nomes mencionados (os seus amantes); um raro heterónimo no feminino, como posteriormente só me lembro com a Marichiko, uma jovem poeta japonesa que, em 1978, o americano Kenneth Rexroth (depois de ter feito várias antologias de poesia clássica japonesa) inventou, ou, em 1998, ou com Violeta C. Rangel, a prostituta espanhola que cavalgou uma centena de poemas do andaluz Manuel Moya. 02/04/17 Fascinam-me as pinturas de batalhas. Nos anos 90, vi uma enorme exposição de pinturas de batalhas no Prado, da qual nunca me arrependi o suficiente por não ter comprado o catálogo. Procurando na net por um dos magníficos do género, Alphonse de Neuville, descubro que um dos seus quadros mais célebres, La Bataille du Cimetière Saint-Privat, é propriedade do Musée des Invalides, em França. Fascina-me este humor, igual só o das térmitas quando sabem a família em férias. 03/04/17 Assinei contrato para o meu terceiro livro de ficção a ser editado no Brasil, mas noutros países nada. Afinal, o que são e como são os leitores da estranja? Não me imagino lido em inglês. Uma vez recebi um postal de Miami onde apenas constava, redigido em espanhol, “Me ha gustado mucho!”, e assinava um Chris (desconheço quem seja, se é macho ou femea), que não sei se me encontrou na esquina de um verso se nuns lavabos, e após anos a matutar, tanto a jusante como a montante, o meu sono ficou mais inclinado. Bom, e escreveu-me um professor de Oxford, “full of urgency”, ou algo semelhante. Quando lhe respondi, a carne aparatosa do silêncio impôs-se. Também em francês os meus castanheiros nunca floresceram. Falo dos bonsais que cultivei em vários poemas e que já me saem em ramadas pelos bolsos, sem que um gascão se apiede e traduza. Fazia grande empenho em ver como se traduzem os meus bonsais na língua de Voltaire, mas continuo interdito, desde que o meu tio Manuel Domingues, emigrante, se perdeu no metro de Paris, estonteado pelo tufo de pêlos que uma normanda exibia nos sovacos e a minha tia amaldiçoou toda a família por várias gerações. Adoraria que me calhasse em francês (como ao italiano Sanguinetti) um tradutor com o apelido Marchand-Kiss. Em flamengo tive fortuna e parece que foram muito elogiosos mas o meu entendimento da língua é uma locomotiva a vapor e antes de 2023 não conseguirei elucidar-me. Em espanhol quis casar com a tradutora e o marido puxou da faca na liga. O outro tradutor, que soube depois ter um lábio leporino, não se mostrou tão dedicado. Já o que me aborrece nos meus leitores chineses é que estejam sempre a descobrir vidraças rachadas nos meus poemas. Uma vez escrevi: “na China, as gotas que se formam na boca das torneiras são quadradas”. Também não é preciso acreditar em tudo o que um homem escreve. Recebi um milhão e meio de cartas, tive de mudar de casa. De outra vez, num artigo, lamentei que na China nenhuma saia se levantasse até ao ilíaco, pois na altura em todas as representações as chinesas vestiam as calças do grande timoneiro – afinal, quantos pares de calças tinha Mao no seu guarda-fatos? –, e foi um “suhyung xiravirá”. Conhecem a expressão? Significa: uma gestão seca de uma explosão de fluxos, e foi a única expressão que me ensinou uma rapariga de Macau, que me engomou uma camisa num hotel em Braga e que voltei a encontrar em anos recentes como empregada do café Nicola, em Lisboa. Bonita. Ou será “hai’ti schirati’ctin”? Já me falta a lembrança? Em brasileiro saí muito e por felicidade minha nunca me mexeram na sintaxe nem me meteram os móveis no tecto, como já vi a alguns autores e em outras pinturas de batalhas. Não tenho tido muita sorte com as traduções mas se pensar que a minha amiga Maria Velho da Costa nunca foi traduzida (há maior crime?), aí dou-lhe um bigode. E, como garantia Montale, ”é possível amar uma sombra, sombras nós próprios”. Ah, isto consola-me!