Uma vida inteira dentro de um só poema

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ue o título do primeiro livro de Rosalina Marshall – Manucure, Companhia das Ilhas, 2013 – seja o mesmo de um poema de Mário de Sá-Carneiro, não é um mero acaso. Para além dos títulos, livro (de Rosalina) e poema (de Sá-Carneiro), os títulos dos poemas do livro da Marshall são todos versos ou partes de verso desse poema maior de Sá-Carneiro. Por exemplo, “Os meus godets de verniz” é um meio verso do poema, e “Na sensação de estar polindo as minhas unhas” é precisamente o primeiro verso do poema de Sá-Carneiro. E o mesmo iremos encontrar nos poemas: “Os polidores da minha sensação”, “Inflexões de precipício”, “Triângulos sólidos”, “Rebordo frisado a ouro”, “Desgraciosidade boçal”, “Veloz faúlha atmosférica”, “Deponho as minhas limas”, etc., etc., etc. Pois aqui não se trata de uma interpretação minha, como irá acontecer com o resto do texto, é algo concreto, preciso, algo que deve ser assinalado como aquilo que a poeta quis que fosse visto, a ligação quase umbilical entre o seu livro e o poema de Mário de Sá-Carneiro, embora seja também – e aqui começa a minha interpretação – como se a Rosalina Marshall nos dissesse que a sua vida cabe toda dentro de um poema, do poema “Manucure”, desse poeta maior da Orpheu. Mais: é como se nos dissesse que uma vida, qualquer que ela seja, cabe toda num só poema. E se em relação ao poema “Manucure” talvez não haja tantos que ponham ali toda a sua vida, já no poema “Tabacaria”, de Álvaro de Campos, não teremos dificuldade em encontrar por lá vidas e vidas inteiras. Há, por conseguinte, ao longo dos poemas deste seu primeiro livro de poesia, enunciações de modos de participar na vida com semelhante inaptidão à que é cantada no poema de Sá-Carneiro.

Estamos diante de um livro de poesia assente numa hermenêutica, apesar do verso que diz “a hermenêutica fechou a porta” (p. 18). Nesta sua hermenêutica, Rosalina identifica no poema de Sá-Carneiro, não só a sua vida, mas o seu próprio modo de olhar a realidade. E, assim, Manucure é um pequeno livro de enunciação de falhas, de enunciação de falhas da realidade. A realidade está sempre errada. Havia em Portugal uma expressão antiga, de quando ainda a moeda era o escudo e não o euro, que dizia: estás-me a falhar como as notas de mil, querendo com isso dizer que alguém nos decepcionava. Ora, neste livro de Rosalina Marshall, a realidade falha-nos como as notas de mil. A realidade é uma máquina de criar decepções. Os poemas enunciam contínuas decepções, vindas da impossibilidade da realidade encaixar nas nossas vidas. E entenda-se realidade por aquilo que acontece. Para citarmos Wittgenstein, no início do seu Tractatus Lógico-Philosophicus: “O mundo é tudo o que acontece.” Entenda-se, aqui, mundo como realidade. Assim, os meus desejos chocam com a realidade. Aquilo que quero, que eventualmente me faz falta, choca com a realidade, como no poema “Os meus godets de verniz”, à página 16:

Eu queria chocolates

e davam-me peixe cozido

travessas e travessas

pratos atrás de pratos de peixe cozido

em vez disso agora como

o vidro do

o vidro do

o vidro do piano

Esta falha da realidade não se fica pelo conflito de interesses entre o que eu quero e o que acontece. Não. É apenas daqui que se parte. Aonde se chega, e é onde faz sentido falar acerca da decepção da realidade, é à memória. A memória é onde a realidade se esfuma. Tudo o que acontece não passa de nevoeiro, quando deixa de ser acontece para passar a ser aconteceu ou acontecido. E é nesta transmutação do tempo, na transmutação da realidade, que o livro ganha uma enorme dimensão metafísica, que já José Mário Silva havia assinalado, na sua resenha no Expresso, a 27 de Abril de 2013: “A escrita de Rosalina tanto se aproxima de Adília Lopes (“sinto um desconforto qualquer/ por usar soutien/ mas se não usasse/ era muito ordinária/ e os homens não gostariam de mim/ por ser demasiado fácil verem-me as mamas”) como da vertigem metafísica de Fiama Hasse Pais Brandão (“por trás dos manípulos das coisas/ escorrem fontes/ escorrem cisnes/ tudo em arco/ tudo em bandeira/ para o fluxo incontornável/ do rossio do universo/ onde permaneço desde a infância/ à espera de um táxi”).” É, aliás, a dimensão metafísica que sustenta os poemas deste livro, como sobressai no início do poema “Inflexões do precipício” (p. 34): “por trás dos manípulos das coisas / saem imperiais, cervejas, pints / por trás dos manípulos das coisas / escorrem fontes (…)”. Por trás das coisas há coisas. Por trás do que acontece há outro acontece. E a memória reivindica a sua própria realidade. O acontecido, que nos acompanha aqui e agora no a acontecer, que inclusivamente sustenta este a acontecer, pois o que me faz identificar-me numa foto quando era criança é a memória, o que nos confere identidade é a memória, e esta faz da realidade sua refém. O que aconteceu chega-nos em parte como quando era no seu acontecer, mas também nos chega em parte como um nunca ter acontecido. E é esta distorção da realidade, operada pela memória, que abre um precedente hermenêutico de indagação da realidade enquanto acontece. Escreve a poeta em “Os polidores da minha sensação” (p. 12):

quando abro a mala

o forro frio que já foi outro

surpreende-me sempre

inesperado odor

de cama de São José

onde me apalparam a perna

e disseram que não merecia levar gesso.

A distorção temporal levada a cabo pela memória opera também uma mudança axiológica. É através da memória que passamos a valorizar o que antes não tinha valor. Não é a passagem do tempo que opera essa transformação valorativa, é a memória. E por isso mesmo, nós voltamos sempre atrás, como ironicamente escreve a poeta, em “Obsessão débil” (p. 18): “a hermenêutica fechou a porta / depois de velha / gostava de lá voltar / e verificar as fechaduras”. E é o que na realidade estamos sempre a fazer, a voltar lá atrás e a verificar as fechaduras. Muitas das vezes não verificamos apenas, também trocamos as fechaduras do lá atrás.

O próprio poema é um ser híbrido, que acontece através do acontecido. Que nasce do real e da memória, que é, nunca é de mais repeti-lo, uma ficção, aquilo que faz aparecer continuidades em completos descontínuos. Por conseguinte, este Manucure, faz do poema de Mário de Sá-Carneiro, como se fosse possível habituar um poema, a morada de uma vida, isto é, faz da memória colectiva, que é a história, seja ela da literatura ou mundial, o lugar onde tudo acontece. A memória justifica-se pela história e um poema de outro é mais descritivo da nossa vida do que uma fotografia nossa antiga. Sem os outros somos nada ou, pelo menos, sem os outros não me reconhecia. Assim, o livro de Rosalina Marshall parte do poema “Manucure” de Mário de Sá-Carneiro, para enunciar a dificuldade de entender a realidade, a dificuldade de mastigar e engolir essa coisa chamada realidade. A realidade está para cada um de nós como o sabor a que sabe a cada um de nós a sua própria boca está para os outros. Escreve a poeta em “Loiras oscilações” (p. 31)

Oh! linda lisboa

no azul pela manhã

oh linda lisboa

tudo negro pela noite

ninguém sabe

a que me sabe

a minha boca

A realidade adjudica-se a si mesma pela história. Na impossibilidade de acedermos ao que seja a realidade, e devido ao facto de a memória reivindicar para si uma realidade própria, a realidade passa a ter um uso comum, passa a ser um território colectivo, que encontra na história a sua fundação. Em Manucure, a historia é o chão não só das palavras, dos poemas, mas da própria possibilidade de entendimento da própria vida. Num poema escrito há 100 anos (neste caso) pode estar a chave da minha vida. Antes de mais, este livro é uma enorme homenagem à poesia de Mário de Sá-Carneiro, no corpo do poema “Manucure”. Mas é também uma homenagem a todo e qualquer poema onde possa caber uma vida inteira. Antes de terminar com a voz da poeta, acrescento que este livro teve uma tiragem de 100 exemplares. Desconheço se houve ou não reedição. A não ter havido, deveria haver.

Na sensação de estar polindo as minhas unhas

sei que morrerei no dia do aniversário da minha morte

ainda há coisas certas na vida

o dia do aniversário da minha morte apresenta tamanha discrição

que nem dou por ele

portanto não mudarei de roupa

talvez passe o dia deitada

no displicente descanso

de não atender telefones

nem me levantarei para ir ver o correio

e se alguém se lembrar de me acender

as inconsequentes velinhas

deixarei que derretam e estraguem o bolo

no dia do aniversário da minha morte

nem me penteio

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