Via do MeioFilosofias de Morte dos Portugueses e Chineses Ana Cristina Alves - 23 Set 202523 Set 2025 Ana Cristina Alves – Coordenadora do Serviço Educativo do CCCM Nas suas filosofias sobre a morte, portugueses e chineses diferem nos fundamentos, sobretudo quando entra em jogo a matriz cultural taoista, mas concordam em alguns aspetos, quando a filosofia confucionista domina. Para estes últimos, bem como para os portugueses, a morte acarreta o luto, a tristeza, o sofrimento e a dor. Confúcio nos Analectos aconselhava um luto de três anos a todos aqueles a quem falecessem os progenitores e a morte era um assunto de consequências e gravidade extrema, já para os taoistas o passamento não era e não é mais do que uma transformação natural, num processo em que vida e morte se complementam e interpenetram de tal maneira que uma não pode ser perspetivada sem a outra, pelo que os funerais não devem ser espaço de pranto e dor, de modo a não interferir com o processo de transmutação do ser em questão. O filósofo taoista Zhuangzi (莊子, 369-286) relata no terceiro dos sete capítulos anteriores da obra homónima, um dos vários episódios de morte, relativo ao funeral do patriarca da escola, Laozi (老子), onde se repreende vivamente o modo como os discípulos se deixam entregar a manifestações sentimentais: Eles violavam a natureza das coisas ao se abandonarem ao sentimentalismo, nos tempos antigos era considerado ‘um crime de violação da natureza’. O regresso do vosso mestre à terra é atempado e a sua partida natural. Um regresso atempado e uma partida natural não têm nada a ver com a alegria ou a tristeza. Isto era considerado emancipação da divisão pelos antigos. As resinas e a lenha podem ser consumidas, mas o fogo continuará. Ninguém sabe quando o fogo termina. (是遁天倍情,忘其所受,古者谓之遁天之刑。适来,夫子时也;适去,夫子顺也。安时而处顺,哀乐不能人也,古者谓是帝之悬解。 指穷于为薪,火传也,不知其尽也。2 (Zhuangzi, 1999, 46-47) A morte é nada mais na filosofia taoista do que o movimento de retorno à grande Via, ao Tao (道 dào), como é bem explicado no capítulo 40 do Clássico da Via e da Virtude de Laozi ou, ainda, no hexagrama “Retorno” do Clássico das Mutações (易經), o clássico fundador de todos os outros, ou como lhe chamaram alguns sinólogos, a “bíblia” filosófica dos chineses. Este hexagrama do “Retorno” (復Fù), também denominado o “ponto de viragem” por Richard Wilhelm, é composto pelos seguintes trigramas, na base o Trovão (震 Zhèn), iniciador, e no topo a Terra (坤 Kūn), recetiva, afirmando-se no Juízo do Hexagrama que ir e vir é o movimento do Tao, este expande-se ou regressa, conforme a espontaneidade da sua natureza e, portanto, há sempre esta possibilidade de se iniciar um qualquer ponto de viragem ora para a vida ora para a morte. Este hexagrama encontra-se ainda associado à imagem de um raio ou de um trovão sobre a terra e ao solstício de inverno, período natural de grandes mudanças, no qual o sol começa a crescer no horizonte dos dias. E haverá maior mudança do que a da vida para a morte e desta para uma nova vida, se ao taoismo acrescentarmos os infernos budistas e a reencarnação nas várias dimensões do ser? Leia-se então o juízo do hexagrama do “Retorno” (Wilhelm, 1989, 97): Retorno. Sucesso. Sair e entrar sem erro Os amigos vêm o que não há nada a censurar. Para a frente e para trás é o caminho. Ao Sétimo dia regressa-se. É sempre bom ter para onde ir. (復,亨,出入无疾,朋來无咎,反復其道,七日來復,利有攸往) 3(張,1995,109) Pelo que fica dito, constata-se que nas filosofias autóctones chineses tão antigas como o Taoismo e mais remota, como aquela que vem exposta no Clássico das Mutações, não há cisão entre a imanência e a transcendência, a vida e a morte, há um processo fluído que corre sem fim, incansável e inesgotável, pelo que a morte não se afigura como um verdadeiro problema. Mas tal posição da filosofia mais erudita nem sempre coincidiu com uma filosofia popular, baseada em mitos e histórias reais da procura da imortalidade, porque embora não se supusesse uma verdadeira cisão entre a vida e a morte, sendo estas vistas como as duas faces complementares de um processo transformacional, a verdade é que os filósofos praticavam exercícios que, em primeira e última análise, os haviam de conduzir para lá da longevidade até à imortalidade e os governantes seguiam o afincado exemplo ao tentarem livrar-se do processo natural. A procura das pílulas da imortalidade era frequente não apenas nas divindades como o Divino Arqueiro Houyi (后羿Hòu Yì) e sua Consorte Chang´E (嫦娥Cháng’é), mas também em figuras mais humanas. O Primeiro Imperador Chinês (秦始皇 Qín Shǐhuáng), o grande unificador do território chinês, além de criar um sistema burocrático legalista e de fazer frente à sabedoria confucionista e aos letrados com a queima dos livros da escola, perseguiu o culto da imortalidade física através da busca de elixires que lhe haviam de permitir viver eternamente. Reza a tradição que terá apressado a morte com a ingestão de elixires feitos à base de mercúrio altamente tóxico. E a busca da imortalidade, ou pelo menos da máxima longevidade possível, continua a ser uma tradição no interior de uma filosofia popular que agora se define como sendo essencialmente laica, como foi reportado pela agência Reuters quando no início de setembro de 2025 os presidentes russo Vladimir Putin, Norte-coreano Kim Jong Un foram “apanhados” por um microfone que ficou inadvertidamente aberto a discutir questões de longevidade e imortalidade com o presidente chinês Xi Jinping (习近平Xí Jìnpíng). Os pêssegos da imortalidade do Paraíso da Rainha-Mãe do Oeste (西王母娘娘 Xīwángmǔ Niángniáng) e, sobretudo, os elixires fabricados pelo Coelho da Lua (玉兔Yùtù) competem nos tempos atuais com outras experiências mais científicas, que incluem a possibilidade de transplante de órgãos para a criação de seres ciborgues que poderão viver 150 anos, ou mais. Assim, também os chineses, dos antigos aos contemporâneos, e filosofias eruditas à parte, acreditam o mais popularmente possível que “o céu pode esperar”, pelo que quanto mais tempo viverem aqui na terra, melhor. No que respeita aos portugueses, escusado será dizer que assinam por baixo, e com mais ênfase esta posição da filosofia popular chinesa. Estes são os fiéis herdeiros de uma forte tradição cristã, mesmo quando se dizem não religiosos. Está-lhes no seu ADN cultural uma dicotomia radical entre o bem divino e o mal satânico, a imanência terrena, cheia de erros e omissões, e a transcendência repleta de bem-aventuranças. Pelo que não conseguem escapar às imagens, por muito metafóricas que as considerem, do céu, do inferno, do purgatório, etc. Afinal até os mais “evoluídos intelectualmente” consideram que “o diabo espreita”, “anda à solta” e, obviamente, se encontra do lado mau do mundo, aquele no qual habitam as trevas para onde os anjos do Apocalipse hão de enviar todos os que procederam incorretamente nesta existência. Haverá um juízo final ao qual só escaparão os bons e os justos, os que tiverem o coração puro como as crianças ou os que se forem “libertando da lei da morte” através das suas “obras valorosas”, à maneira do cântico camoniano. Mas entenda-se: as boas obras não livram da morte física, apenas da espiritual, só a honra e a sua fama permanecerão para todos os que deixaram a sua elevada marca neste mundo, como bem sugere o ditado da melhor filosofia popular “a morte com honra, desassombra”. Ora será interessante ver a correspondência chinesa, que é proporcionada por Monsenhor António André Ngan em Concordância Sino-Portuguesa de Provérbios e Frases Idiomáticas (1998, 216) 視死如歸 (Shì sǐ rú guī) , que significa numa tradução literal para chinês, “ver a morte como um retorno”, mas a verdade é que este regresso tem um sentido muito diferente na China, onde é encarado como algo de corpóreo, volta-se fisicamente à vida, enquanto que o “desassombra” para os portugueses significa sair do mundo das trevas espirituais para regressar também à vida, só que em espírito, a única forma possível para uma libertação da lei da morte. A morte e a vida formam um par de opostos não complementares nos portugueses. Quer dizer que a morte, “essa que não espera”, essa que “é sempre certa embora a hora seja incerta” não depende, em circunstâncias normais, do próprio, mas de Deus, pois “só morre quem Deus quer”, segundo a tradição Cristã. Só Deus e Jesus têm a possibilidade de resgatar da morte. Eles estão do lado da vida e da vida eterna, ao passo que a morte pertence ao reino das trevas e a satanás. No livro dos Provérbios, 8, 35-36 é claramente afirmado a propósito da sabedoria, “Quem me encontra, encontra a vida e goza o favor de Javé. Quem me perde, arruína-se a si mesmo, pois todos os que me odeiam amam a morte.” Note-se que a grande maioria os milagres realizados por Jesus e pelos santos da igreja católica prendem-se com curas milagrosas e a ressurreição dos mortos, podendo ser descritos como momentos em que a ordem sobrenatural intervém na ordem natural para a libertar da doença e da morte, rumo à vida, e estas ações extraordinárias não sucedem a todos, mas apenas àqueles que são justos e bons ou que foram possuídos por algum mal contra sua vontade, como no caso em que se expulsavam os demónios. Para os portugueses há então que escolher lados, através de uma postura sábia, quer dizer, agindo corretamente para que se fique do lado da vida de modo a que quando o fim dos tempos chegar, como é predito no livro do Apocalipse, cada um seja julgado conforme a sua conduta (Ap. 20, 13-14) e para que o fim da história anunciado neste texto do apóstolo João se possa transformar em vida: “ Nunca mais haverá morte” (Ap. 21, 4) e o texto encerra com a promessa de um Céu e uma Terra novas. A grande diferença entre as filosofias chinesa e portuguesa a respeito da morte é que aos chineses por tradição é permitida maior flexibilidade, a vida e a morte andam de mãos dadas, fazem parte de um mesmo processo, pelo que se a morte é certa, a vida também está garantida à partida. Têm os apetrechos conceptuais necessários para encarar o passamento com maior à vontade e naturalidade. Ainda que muitas vezes ao longo da história deste povo se tenha verificado uma coexistência de posturas, por um lado aceita-se melhor a morte e, em certas escolas, de teor taoista, até se aconselha a encará-la com gáudio, mas por outro, procura-se prolongar ao limite do possível a vida de olhos postos não numa imortalidade espiritual ao jeito português, mas física e concreta, seja no passado por meio da criação de elixires, seja no presente via as mais variadas experiências científicas que o mundo contemporâneo favorece. Já os portugueses, embora também muito confiem atualmente na ciência e nos médicos, veja-se e a título de parênteses a luta legítima por melhores serviços de saúde, e tenham uma linguagem centrada na “saúde”, sendo o proverbial “como tem passado?” o melhor dos exemplos disso, só muito recentemente têm vindo a despertar para os exercícios e práticas da longevidade, pelo que nesse aspeto os chineses possuem maiores vantagens no que respeita a posturas saudáveis e à “fabricação de elixires”; os compatriotas nunca perdem de vista a certeza de que “a morte não espera” e de que “morre quem tem de morrer”, ainda que por fim aqueles que possuem verdadeira fé acreditem na possibilidade condicionada a boas obras de uma vida eterna num mundo novo. Aos chineses sucederá o mesmo no que respeita às boas obras, que lhes permitirão de acordo com a filosofia budista atingir o nirvana, ou nas suas vertentes mais populares, alcançar um paraíso Buda, ou, em alternativa, regressar ao Tao, diluindo-se num presente eterno. Referências Bibliográficas Bíblia Sagrada. 1993. Lisboa, São Paulo: Edições Paulus. Evangelho Diário. 2025. Braga: Editorial Apostolado da Oração. Ngan, António André. 1998. Concordância Sino-Portuguesa de Provérbios e Frases Idiomáticas. 葡對照成語集. Macau: Associação de Adultos de Macau. Qin Xuqing (秦旭卿), Sun Yongchang (孙雍长) (Trad Chinês Contemporâneo),Wang Rongpei() (汪榕培Trad. Inglês). 1999. Zhuangzi 庄子. Vol I e II. Hunan, Beijing, Hunan People´s Publishing House, Foreign Languages Press. Reuters (red.). 2025. “discussing organ transplants and immortality” 5 de setembro de 2025. Disponível em: https://www.reuters.com/business/media-telecom/hot-mic-picks-up-putin-xi-discussing-organ-transplants-immortality-2025-09-03/ Wilhelm, Richard. 1989. I Ching or Book of Changes. Prefácio de C. G. Jung. Trad. Cary F. Baynes. London: Penguin Group. Wu Luxing. 1996. 100 Chinese Emperors. 中國佰帝.Trad. Wang Xuewen & Wang Yanxi. Ilus. Lu Yanguang. Singapore: Asiapac Books. 張中鐸(ed) 1995《易經提要白話解》台南市:大孚. Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo as opiniões expressas no artigo da inteira responsabilidade dos autores” https://www.cccm.gov.pt