O Papa Americano (III)

(Continuação da edição de 14 de Agosto)

O europeísmo brota de forma tangível do catolicismo euro-ocidental e começa a declinar quando, graças também ao impulso do papa polaco, os «dois pulmões» do continente atravessado pela cortina de ferro, unindo-se com a mão esquerda num casamento morganático, descobrem ser demasiado diferentes. Nacionalismos absolutos e particularismos mesquinhos afligem tanto o continente geopolítico quanto a Igreja na Europa, em balcanização pela ênfase em si mesmas das conferências episcopais individuais. Em busca do cada vez menor e, portanto, mais puro. Antítese do lema agostiniano escolhido por Leão XIV «In Illo uno unum (Naquele que é Um, nós somos um)». Não é uma constatação. É um acto de fé. Os mártires pré-constantinianos diagnosticariam hoje a Lua/Igreja em fase avançada de declínio, mas confiantes no próximo ciclo gerador, finalmente iluminador. Muito diferente do clima sombrio de hoje. Actualmente, os católicos de pouca fé ou excessiva racionalidade descobrem a Igreja morta na Europa. Justamente enquanto em várias regiões do «Sul Global», especialmente na África graças ao impulso demográfico e nas Américas, os católicos crescem também em termos de influência político-cultural.

Mas é lei física a que observa na dilatação espacial a diluição da coerência em qualquer colectividade ou instituição, no caso católico (Santa Igreja Romana) e laico (União Europeia). A difusão de liturgias inerentes ao genius loci específico expressa a heterogeneidade cultural que às vezes torna difícil para um católico reconhecer-se noutro católico. Se a Igreja europeia esgota a sua força propulsora, para o Ocidente é o golpe de misericórdia. Esta é, pelo menos, a tese do cardeal Christoph Schönborn, colosso da aristocracia clerical da Europa Central e teólogo dominicano, aberto à tradição durante os seus trinta anos como arcebispo de Viena, que terminaram em Janeiro passado por (prorrogação) do limite de idade. Na conferência de 3 de Fevereiro de 2010 na Catholic University of America, este íntimo de Ratzinger e depois cauteloso apoiante de Bergoglio revela as suas cartas já no título «Cristianismo, presença alienígena ou fundamento do Ocidente?». Resposta: «Ambas as coisas». De facto, «o cristianismo é uma das raízes da Europa». Mas «para muitos, é um elemento estranho num mundo determinado pela razão, pelo iluminismo e pelos princípios democráticos». Conclusão: «Esta Europa, e todo o mundo ocidental, não sobreviverá sem essa estranheza trazida pelo cristianismo».

No sentido explorado por Diogneto, antecipado pelo mandamento paulino na Carta aos Romanos «Não vos conformeis com este mundo» (Rm 12,2). Este príncipe inclassificável da Igreja inscreve-se na corrente do catolicismo dos Habsburgos, já bastião da reacção às «novidades francesas» denunciadas por Novalis no clássico “A Cristandade ou a Europa” ou seja, a Europa (1802), mas único império europeu a não se manchar com o pecado colonial a menos que se considere colónias o conjunto balcânico e centro-europeu pertencente a Viena. Neste contexto, emergem no século XX personalidades de elevada cultura quase morbidamente apegadas à ideia da Europa, como podiam ser logo após a Guerra Fria os «salvos» do segundo pulmão, forçados durante meio século na gaiola soviética e, por isso, rebaixados a «Oriente». Rede informal geopolítico-espiritual verticalizada com Karol Wojtyła de Wadowice, perto de Cracóvia, papa imediatamente santificado. O nome foi-lhe imposto pelo pai, que serviu no exército imperial-real, em memória de Carlos I, último Kaiser Habsburgo, beatificado em 2004 por João Paulo II.

Outro expoente notável dessa linhagem é o cardeal Péter Erdö, arcebispo de Budapeste e primaz da Hungria, em quem a ala conservadora minoritária, liderada pelo cardeal americano Timothy Dolan, arcebispo católico, da Arquidiocese de Nova Iorque e outros cardeais não apenas americanos, apostou como candidato de bandeira no conclave que convergirá para Prevost. Vice-papa virtual, à frente do cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado da Santa Sé, na votação final dos cardeais. Para ele, «sem a Europa, a Igreja perde o seu coração». Não sabemos se J.D. Vance, o extrovertido vice de Trump, ansioso por sucedê-lo, já visitou a basílica de São Francisco de Assis em Arezzo. Se não o fez, é de ousar sugerir-lhe que o faça. Aqui poderá espelhar-se no Sonho de Constantino, o maravilhoso afresco de Piero della Francesca. Quase amanhecendo nocturno no campo romano, no final de Outubro de 312. O imperador jaz sonhador sob a tenda do seu acampamento perto de Ponte Mílvia, onde está prestes a derrotar o rival Maxêncio. Envolto na luz mística cara a Piero, limiar entre a sombra moribunda e os raios nascentes de Cristo, um anjo estende a cruz cujo sinal Constantino vencerá. Origem da virada iniciada pelo imperador-bispo no Concílio de Niceia, do qual se comemora o décimo sétimo centenário.

Selado em 28 de Fevereiro de 380 por édito do imperador Teodósio I, que decreta a fé em Cristo como religião do Estado. Romanização do cristianismo e cristianização do império. Um anjo deve ter aparecido também a Vance, que, em analogia com Constantino, sonha com a americanização do catolicismo e a conversão da América à religião do papa Americano. O evangelho segundo J.D. é instrumentum regni. Suplemento de alma para a América pós-liberal, nostálgica dos “Roaring Forties and Furious Fifties”, idade augusta do império das estrelas e listras. À espera da parusia de Elvis. Na hipotética exegese vansiana do “Mysterium Lunae”, a América seria assimilada à Igreja «lunar», iluminada pelo Sol divino. Sobre a função estratégica desta visão converge a tribo católica em expansão entre os líderes MAGA. Exuberante ramificação do trumpismo que postula a fecundação recíproca entre o Estado e a Igreja para maior glória do primeiro.

Entre esses apóstolos, muitos convertidos, quorum Vance. Inspirados na encíclica “Longinqua Oceani” (1895) de Leão XIII, segundo a qual a Igreja Católica americana «daria frutos ainda mais abundantes se, além da liberdade, gozasse também do favor das leis e da protecção do público». O sonho de Vance é que Leão, o americano, possa celebrar as núpcias entre os Estados Unidos e a Igreja. Talvez por acordo. Rede a ser estendida a países consentâneos. Para uma Internacional dos nacionalistas, aberta ao Ocidente estratégico, do qual os Estados Unidos são o fulcro. E sensível à cor da pele, preferencialmente branca. Super MAGA que unirá as nações que quiserem aderir, seguidores da Lua com estrelas e listras. O neoconstantinismo com esteróides visa o equilíbrio de poder entre Estados em competição mutuamente legitimados a proteger os seus próprios interesses. Partidas a regular no mercado em que cada actor joga e troca cartas próprias com as dos outros.

É claro que são viciadas. É tudo um acordo. Trump tentou em vão explicá-lo a Zelensky no confronto na Casa Branca, em 28 de Fevereiro passado: «Não tem as cartas!». Entre os sócios fundadores da coligação vansiana destacam-se personalidades de ascendência neoconservadora, como o secretário de Estado Marco Rubio, o mais influente depois de Vance entre os nove expoentes da patrulha católica que anima o governo federal.

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