Via do MeioA imagem como o grande cesto materialista da arte Rosa Coutinho Cabral - 9 Abr 2025 “ Não é que o passado lance sua luz sobre o presente ou que o presente lance sua luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação” (Walter Benjamin) Tentando salvar a história das suas grandes tradições, para a fenomenologia, Heidegger não escapa a um resíduo idealista, como se as coisas do mundo lhe pertencessem a ela, à história e ao seu curso de uma só direcção, diz-nos Bragança de Miranda. Para Benjamin, na sua busca de uma superfície tangível dos objectos contaminados pelo tempo, o que lhe interessava era seguramente a perfuração háptica que encontramos em Caravaggio e em Fontana – o último trazendo ao objecto artístico um gesto claramente performativo e – como em tudo o que acontece no aqui e agora – capaz de recriar ou inspirar o caos nas coisas ditas artística. Coisas que já não se oferecem num curso harmonioso e não pertencem – nem à história, nem à estética, mas ao mundo como as pedras ou as palavras que nos saltam da boca. Superando de algum modo o punctum barthianao, a imagem dialéctica de Benjamin escapa à “historicidade” que se oferece como um altar sagrado onde as coisas da arte se eternizam – teleologicamente – num outro mundo onde as condições do mundo não se fazem sentir – onde é suposto que nada se perca, estrague, ou transforme na essência das coisas, e das obras, neste caso da obra de arte. O que interessa a Benjamin ecoa perturbadoramente em Duchamp, porque no vaivém entre o passado, o presente e o futuro, as coisas feitas seres que captam no acto de fazer a sua potência , é que possibilidade de pertencimento a um tempo determinado, se expande no gesto em que a obra afecta a sua própria historicidade, e pode ser lida em qualquer momento. Indicia a possibilidade do seu tempo e a potência da sua recepção em qualquer momento. É um boomerangue kronotópico e anmórfico. Infixo desde o momento em que se fixa. Como Benjamin dizia, apoderar-se de alguma coisa, no momento em que o perigo brilha, é fatal. Referia-se no entanto à potência do mito, que aqui prometeicamente pertencem aos que se aventuram a roubar o fogo aos deuses – o castigo é a esventração e o canibalismo dos outros, podendo, nestes outros, ler-se no mundo, no universo, no todo que existe e que não sabemos os limites, se bem que os possamos adivinhar. Para Benjamin, por isso, as coisas e obras feitas por artistas só podem ecxistir numa imagem que cintila como uma estrela, que se vê conforme as condições e os meios, e que faz parte de uma rede, um puzzle, ou, melhor, aproveitando a sua própria metódica ensaísta – numa constelação. Eu adoro lembrar a geometria do céu para saber onde se encontra a ursa maior e a ursa menor. Olhar o céu, este enorme ecran de imagens moventes, imagens que aparecem e desaparecem na enorme pele do mundo, porque mais não vemos para além dela, mesmo sabendo que existe mais. Que existe um universo inteiro de possibilidades. Nós, os que fazem e os que vêm, tocam ou usufruem da performatividade e efeitos do fazer, somos – como dizer – entranhas dentro deste enorme corpo que é o mundo. E desejamos repeti-la nos nossos pequenos gestos de artistas, e termos tanto impacto como o extraordinário espectáculo do céu, das sombras, do mar… E como o fazemos? Procurando criar imagens que expressam o tempo no seu espaço, sem se contaminarem por ele. Deixando-o à solta. Permitindo-nos duvidar dos nossos actos que já não são eternos nem pertencem da História, mas fazem parte de um arquivo incrível de possibilidades: todos podemos fazer, mas nem todos temos o efeito de afectar o mundo e, de algum modo, causar transtorno. Do acervo de possibilidade, do arquivo de todos os tempos e espaços, de todos os sonhos e modos de fazer, de todas as sensibilidades vem o objecto inflamado de originalidade – aquele cuja forma ainda não reconhecemos, aquele que re-arranja , desarranja, altera… aquele que convida um tempo a sentar-se para jogar xadrez com outro tempo. E a tal partilha do sensível, de que nos fala Rancière, é difícil. Tão difícil como temos a mesma imagem do mundo. Creio que estas coisas – que poucos vêm porque não reconhecem o novo aspecto, e que contemporaneamente na imensa libertação de normas excludentes, pode ter qualquer forma, nos conduz a uma inversão da teoria da Gestalt: já não é possível partilhar nada – nem mesmo o mundo e a sua grandiosa pele, o céu azul de Bataille. O grande mal de Ricoeur devora os olhos dos cadáveres e a imagem possível é a de um kit de sobrevivência perante a eminência de uma pavorods guerra nucleara à escala mundial. Como Agamben nos alerta, o gesto contemporâneo parte da urgência de responder. Que resposta nos trazem as imagens de todos os tempos se acreditarmos que não há kit de sobrevivência para a arte? Ela está sempre a mudar – tocada pela graça da aparição, ela está em decomposição como tudo o que está dentro do mundo. Como a luz… que hoje arrancamos à máquina e à técnica numa agónica comoção estética para ainda ver quando o mundo regorgitar a existência. O que fica, para já, é à martelada, ao arrepio do tempo, sem a iníqua verdade, muito nietzschianamente agourando que todos tentamos faze a nossa parte, sabendo da morte olharuda que tudo vê. Cada vez mais consciente que as coisas da arte não lhe podem escapar depois da brusquidão do seu nascimento, em perturbantes objectos que cada vez mais interferem performativamente com o estado das coisas, lembrando um maravilhoso filme de Wenders, os artistas autores, aqueles que afectam e alteram a aparência da aparição da obra de arte, como Duchamp, são viajantes imóveis que largam objectos-imagens que falam. Gritam. Lutam. Voam para o céu. Caem e explodem politicamente a terra onde vivemos onde tudo o que existe é imagem – sendo esta a constante matéria que emana do acto de fazer coisas – artísticas ou não.