Obrigado, Nuno, muito obrigado

Faz hoje uma semana que perdemos o Nuno. Perdemos o seu olhar azul, enquadrado por um cabelo escuro, e a beleza, por vezes inocente, das suas convicções. Perdemos o seu bom humor, a sua crença na humanidade, no Direito e numa sociedade mais justa. Perdemos o homem bom, equilibrado e excelente companheiro. Eu, pessoalmente, perdi o amigo com quem, dos 14 aos 17 anos, partilhei a minha vida quase diariamente no Liceu Camões, nas praias da Costa da Caparica, nas primeiras festas, na vivência tímida dos primeiros amores.

Já nesse tempo o Nuno Fernando Correia Neves Pereira era um apaixonado por desporto, uma paixão que o acompanhou até ao fim. E era o melhor de nós quando tocava a jogar basquete ou futebol. Um predestinado, dizia-se. Depois veio o full-contact. Ainda o fui ver, no Coliseu dos Recreios em Lisboa, realizar um combate de exibição, na primeira parte de um espectáculo de luta livre do famoso Tarzan Taborda. À saída, confessou-me: “Passados 15 segundos já estava todo suado. Passados 30 já me sentia cansado. Nem imaginas como isto é difícil.” E era, mas as dificuldades não o faziam desistir.

Contudo, o destino não quis que ele se entregasse totalmente à paixão desportiva que o habitava, talvez porque aos 18 anos o trouxe até Macau. Aqui se formou em Direito, aqui se empregou na função pública como jurista, tendo chegado a Chefe de Departamento, aqui leccionou na universidade, aqui se apaixonou, casou e teve dois filhos: Nuno e Tatiana. Aqui o voltei a encontrar quando, anos depois, também desembarquei na Cidade do Nome de Deus.

Em relação ao Direito, o Nuno era um ardente estudioso, conhecedor e defensor do Direito de Macau e das suas especificidades. Fascinava-o a identidade desta legislação única, construída sobre a lei portuguesa e os costumes locais, sobretudo porque entendia ser o Direito local uma expressão da diferença desta terra e ser essa diferença um sinónimo de riqueza cultural. Nesta linha trabalhou, ensinou e uma coisa muito rara é certa: por todo o Macau, da boca de ninguém ouvi uma má palavra sobre o Nuno, o que também não espanta porque nunca ouvi da sua parte uma má palavra sobre alguém. Era assim o Nuno: as suas críticas nunca eram pessoais, mas sobre ideias, factos ou argumentos. Ou seja, como deve ser e tão escasso hoje é.

O Nuno não era apenas alguém interessado na sua profissão, porque tinha um amor antigo pela literatura e pelas artes. Lia muito e lia um pouco de tudo, dos calhamaços de Direito a José Saramago, passando por Jorge Amado e Fernando Pessoa. O seu interesse pela pintura também nasceu cedo. Aos 16 anos, sabendo da minha devoção pelos The Doors, ofereceu-me um belo retrato de Jim Morrison, pintado por ele a tinta-da-China, que eu pendurei no meu quarto. Recentemente, disse-me que, agora reformado, se voltaria a dedicar à pintura, afinal a paixão que também nunca o abandonara.

Mas o destino também não quis assim, porque o destino é cego e estúpido. De que outra forma poderíamos classificar quem nos roubou assim o Nuno, de forma súbita e bruta, sem um aviso, sem uma nota, uma ameaça ou um prefácio?

Pois é, Nuno: não te podias ir embora sem nos dares uma última lição sobre a nossa precaridade, sobre a vacuidade dos nossos planos face à risível sorte, sobre a necessidade de vivermos a nossa vida hoje, perante a incerteza do amanhã.

Era escusado, Nuno, mas obrigado. Não tinhas de ter partido assim tão de repente, de forma tão inesperada, mas obrigado. E obrigado por teres partilhado comigo parte do teu caminho e por todas as memórias (ó meu Deus, como elas me assaltaram durante esta semana!) que me deixas. Por tudo: obrigado, Nuno, muito obrigado.

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