O futuro da memória (II)

“A people without the knowledge of their past history, origin and culture is like a tree without roots. Our greatest glory is not in never falling, but in rising every time we fall.”

Marcus Garvey

A Europa tem, portanto, um grave problema de memória, mas nunca deve esquecer o quanto os seus problemas estão enraizados na história, o quanto sempre teve de enfrentar tanto inimigos internos (Ugo Foscolo, na sua “Lettera apologética”, via no conluio interessado dos intelectuais com o estrangeiro o perigo supremo) como inimigos externos (nunca ninguém quis que uma península colocada no centro do Mediterrâneo tivesse demasiada autonomia geopolítica, por exemplo).

O paradoxo é que a Europa, que é tida em consideração no estrangeiro precisamente devido à profundidade do seu património histórico, tem enormes dificuldades em se reconciliar com o seu próprio passado. A nossa atitude é esquizofrénica. Instituímos um grande número de dias comemorativos, o que, em abstracto, é muito bonito, mas, na prática, coloca o problema de que cada um desses dias recorda alguma coisa, mas desvia a memória de outra e escusado será dizer que nenhuma escolha comemorativa é politicamente inocente e corre o risco de dar origem a divisões e controvérsias.

A questão é que na Europa se faz pouco esforço para compreender o passado. O problema insistimos, é a enorme dificuldade de contextualizar o passado, a mesma dificuldade que está também subjacente à chamada “cultura woke”, cujo objectivo é tentar promover formas de igualdade, mas sem perceber a dimensão progressista e histórica da igualdade.

O que a “cultura woke” e a “cultura cancell” promovem é, de facto, uma espécie de igualização neutralizadora, que elimina o contexto histórico e apela a práticas consideradas francamente absurdas, como (entre muitas outras) a demolição, por racismo (não importa se real ou imaginário), das estátuas erguidas em honra de Abraham Lincoln. A consequência é a criação de um sentimento de culpa no coração do Ocidente, a ser alimentado não só em regimes ou Estados, mas até em indivíduos. Um verdadeiro suicídio do Ocidente, que convida à pergunta se é realmente razoável odiarmo-nos tanto uns aos outros?

O discurso sobre o tema das culturas de anulação, que também está a emergir na Europa como uma tendência que não é passageira, é objecto de diferentes leituras. Poder-se-á definir a primeira visão como “catastrofista” e autores como Stefan Rebenich ou Edith Hall defendem que ela conduzirá a uma destruição sem remédio da história, com o objectivo de elidir uma certa visão do nosso passado, suprimindo-a ou reescrevendo-a.

A segunda, por outro lado, com Giusto Traina entre outros, tende a redimensionar o fenómeno, contextualizando-o, o que seria uma moda (o woke) puramente americana, com influência limitada na Europa. Além disso, acredita-se que dado o classicismo próprio da nossa história e memória nunca poderia afirmar-se na Europa. Há ainda uma terceira via, uma opinião que defendemos que segundo a qual é preciso manter um elevado limiar de atenção.

O fenómeno está a estabelecer-se na Europa mais lentamente por várias razões, mas a nossa sensibilidade às tendências do exterior coloca-nos certamente em risco. A nossa sociedade, embora marcada por tensões de vária ordem, não é caracterizada por um passado recente e um presente de conflitos à excepção das duas guerras mundiais, discriminações e marginalizações. Se, os nossos antepassados tivessem escravos negros a trabalhar nas suas plantações e os seus descendentes vivessem nos países europeus, as suas estátuas também estariam em risco.

Como afirmaram estudiosos do departamento de Estudos Clássicos em Princeton, uma universidade muito atenta às minorias, nos Estados Unidos, um primeiro problema diz respeito ao papel da cultura clássica na justificação do domínio da “cultura ocidental” (europeia e americana) no resto do mundo (basta pensar na utilização de Aristóteles ou Cícero para justificar o fenómeno da escravatura).

Outra ordem de problemas é a necessidade do estudo das línguas antigas para quem se quer inscrever nos cursos clássicos e como nem o latim nem o grego são ensinados nas escolas secundárias, se quer atrair estudantes, é preciso apresentar os textos em tradução e ter em conta as sensibilidades daqueles que, enquanto minoria (não brancos, mulheres), se sentem discriminados na possibilidade de aceder ao conhecimento das matérias clássicas, dado que os requisitos de entrada nos cursos foram decididos, regra geral, por homens brancos.

Normalmente, aqueles que entram na universidade sem terem frequentado escolas de elite talvez com uma bolsa de estudo têm de ser de alguma forma aproximados dos clássicos. Apresentar esta disciplina de uma forma próxima da sensibilidade destes estudantes e de uma forma simplificada (por exemplo, com traduções dos textos em inglês), poderia induzir um maior número de estudantes a inscreverem-se nos cursos de Estudos Clássicos.

Esta tendência não é nova e regra geral, os americanos traduzem as fontes e raramente citam directamente o original grego ou latino. Deste ponto de vista, portanto, os professores americanos do ensino superior tendem a redimensionar as tendências extremistas do politicamente correcto ou, pelo menos, o papel e as responsabilidades da universidade a este respeito. Na verdade, a situação é bastante preocupante, porque desencadeia um círculo vicioso, pois para aceder ao estudo da Antiguidade, ou mais genericamente ao estudo da História, é preciso simplificações (textos antigos traduzidos, resumos cada vez mais sucintos das matérias em exame).

Mas a simplificação reduz a possibilidade de contextualização e de compreensão, o que implica que os futuros professores estarão cada vez mais distantes do seu objecto de estudo e progressivamente incapazes de transmitir aos seus alunos a complexidade e o fascínio dos temas históricos e da antiguidade. Daí a progressiva despreocupação em os pôr de lado. Se, pelo menos na Europa, estivermos mais atentos às nossas raízes, o risco de simplificação (considerando também a complexidade da aprendizagem do latim, do grego e da aquisição de um sentido da história) está longe de ser remoto.

(continua)

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