O Despertar Estratégico da Alemanha (I)

(Continuação do artigo publicado na edição de 13 de Novembro)

Após anos de promessas não cumpridas, a Alemanha leva agora o assunto a sério. E, de repente, o rearmamento alemão, aos olhos dos mesmos aliados que durante tanto tempo exigiram a sua necessidade absoluta, parece pouco tranquilizador. Sorrisos e apertos de mão em público, preocupação nos bastidores, pois percebe-se em palavras fora de lugar, em decisões aparentemente injustificadas e até na expressão dos rostos. Caso contrário, seria difícil explicar por que razão, em Setembro de 2022, Varsóvia decidiu formalmente pedir a Berlim reparações pelas perdas humanas e materiais sofridas durante a ocupação nazi, estimadas em cerca de 1.300 mil milhões de euros. Preço de amigo, claro.

Muito mais directo foi Trump durante o encontro com Merz na Casa Branca em Junho de 2025 ao afirmar que “Estão a gastar mais dinheiro na defesa, e isso é bom. Não tenho a certeza de que o general MacArthur pensasse o mesmo, … percebes o que quero dizer? Ele disse: ‘Nunca deixem que a Alemanha se rearme’. … Eu acho que é positivo, mas só até certo ponto. Vai chegar o momento em que vos direi ‘Por favor, parem de se armar, se não se importam’.” Seguiu-se uma palmada amigável na perna do chanceler alemão dizendo: “Vamos ficar atentos, eu trato disso.” O episódio terminou, para alívio de Merz, com uma risada forçada. O sentimento de incerteza não se sente apenas em Washington e Varsóvia, mas também nos círculos governamentais de Londres e Paris, onde certamente não foram esquecidos os avisos de Margaret Thatcher e François Mitterrand entre 1989 e 1991, aquando da queda do Muro e da reunificação alemã. Por exemplo, entre os responsáveis alemães é convicção generalizada que a proposta do presidente francês Emmanuel Macron de estender à Alemanha o arsenal nuclear francês é, na prática, uma manobra para controlar a sua trajectória, preservar o primado militar francês na União Europeia e, ao mesmo tempo, garantir os vastos recursos financeiros do outro lado do Reno.

Não exactamente um gesto de solidariedade entre aliados. Surge então uma pergunta de por que razão o Ocidente incentivou durante anos o reforço das capacidades militares de Berlim, para depois, pelo menos em parte, arrepender-se? Esta incongruência obedece a alguma lógica? Para responder, ajuda a recordar um leitmotiv que circula em Washington há pelo menos uma década, sobretudo desde que Barack Obama apresentou o chamado “Pivot to Asia” (que foi uma estratégia de política externa lançada pelo presidente Barack Obama em 2011, que marcou uma mudança significativa do foco dos Estados Unidos do Médio Oriente e Europa para a Ásia-Pacífico. O objectivo era reforçar a presença diplomática, económica e militar dos Estados Unidos na região diante da ascensão da China) de que para os Estados Unidos, é imperativo transferir para terceiros os custos de contenção das ambições russas na Europa, pelo menos no plano convencional.

E neste quadro, o contributo da República Federal, primeira economia do continente, parece inevitável. O problema é de quem pode garantir que Berlim, depois de desenvolver as suas capacidades bélicas como solicitado por Washington, as utilizará de forma coerente com os interesses americanos? É fácil controlar quem é frágil e indefeso, muito menos quem está armado até aos dentes. Em suma, as capacidades humanas e industriais da Alemanha são indispensáveis, mas deixá-las nas mãos dos alemães assusta e não pouco. Nada de novo no bloco ocidental pois estamos perante a mesma contradição que, no início da Guerra Fria, levou os Estados Unidos a construir o seu império informal na Europa. Uma arquitectura pensada, em boa parte, para manter os alemães “subjugados”, segundo a célebre fórmula do primeiro secretário-geral da NATO, Lord Ismay.

Inimigos sentados à mesa dos amigos. Nenhum americano, na segunda metade dos anos de 1940, teria consentido na reintegração da Alemanha (ainda que dividida) na “família das nações ocidentais” se não a considerasse estritamente necessária. Aliás, antes do fim das hostilidades, o presidente Franklin Delano Roosevelt defendeu abertamente que os alemães deveriam enfrentar custos “tão impressionantes que hesitassem antes de iniciar uma nova guerra”. Aos seus olhos, a Alemanha seria “menos perigosa para a civilização se dividida em 107 províncias”. Também por isso, em Setembro de 1944, durante a conferência de Québec, Roosevelt aceitou ratificar com Winston Churchill um projecto que previa a transformação do inimigo num “país de carácter predominantemente agrícola e pastoril”. O plano, desenvolvido nos meses anteriores pelo então secretário do Tesouro Henry Morgenthau com o título evocativo de “Programa para Impedir que a Alemanha Inicie uma Terceira Guerra Mundial” previa, na sua essência, retirar aos alemães “todas as suas indústrias pesadas”.

Subscrever
Notifique-me de
guest
0 Comentários
Mais Antigo
Mais Recente Mais Votado
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários