Ai Portugal VozesSem abrigo André Namora - 8 Set 2025 O texto que passo a escrever inclui conteúdos que demoraram três meses a recolher, em vários locais de Lisboa, nomeadamente no Parque das Nações, na Estação do Oriente, no Terreiro do Paço, no Cais do Sodré, na Avenida Almirante Reis, na Avenida 5 de Outubro, na Avenida dos Estados Unidos da América e na Avenida de Roma. Isto, porque o número cada vez maior de sem-abrigo nas ruas da capital do país aumenta de mês para mês e constitui a maior vergonha para o apoio social estatal. Recordo que o Presidente Marcelo, a dada altura do seu mandato tentou, “sonhando”, acabar com os sem-abrigo. Visitou vários locais onde se abrigavam os despejados da sociedade, falou com eles, mostrou-se muito sensibilizado e após verificar as contrariedades para terminar com a vergonha, nunca mais se ouviu o Presidente da República falar em tal desiderato. Os sem-abrigo existem a dormir na rua pelas mais diversas razões. Desemprego, morte ou abandono dos pais, droga, despejo de residência, divórcio e sequência de prisão. Conversámos, com muita dificuldade, com vários sem-abrigo e todos eles repetiram a mesma coisa: gostar de ter uma casinha. É o eterno problema da falta de habitação pública quando existem milhares de milhões para o absurdo aeroporto de Alcochete. 23:00 horas – Parque das Nações – Boa noite! – (voz arrastada) Boooa nooooite… o qué que quer? – Você precisa de comida ou alguma bebida? – Nããão… – Posso saber a razão porque está aqui? – Vooocê ééé bóóófia?? – Não, sou jornalista. – Pooor acaaaso sãão uns gaaajos porreeeeiros… – Você veio para aqui, por quê? – Ora, pooorque quaaaando saí da prisããão prometeeeeram-me uma data de coooisas e afinal eeeera tudo aldraaaabice… – Quer dizer que a tão falada reintegração dos reclusos na sociedade não é uma verdade, certo? – Issooo de que falaaa é uma treeeta, é uma meeeerda… – E quem é que lhe traz a comida? – São umas senhoooras numa carrriiiinha que eu nem seeeei quem sããão… – Oiça, porque é que arrasta a voz? Está doente? – Não… é do álcool… já estouuu muita mal… bebo comó car….! – Precisa de algum cobertor? – Nããão… agora vem aíííí o calor e esta meeeerda melhoooora… – Como é que se chama? – Sou o Alfreeedo… – Posso falar na Câmara Municipal em si? – Ó amigo, se conseguir tirar-me desta meeeerda até lhe ofereciiiia uma banana… 22:40 – Terreiro do Paço – Boa noite, amigo! – Boa noite, ia a começar a dormir… – Peço desculpa, eu sou jornalista e estou a fazer uma reportagem sobre a vossa situação… – Fazes bem, meu!… Isto é um sofrimento que ninguém imagina… – Por que é que está aqui deitado mesmo no meio desta gente toda? – Eu quero que os gajos se fo…! Este chão é lisinho e dorme-se bem… eu estou aqui porque a minha companheira mandou-me de frosque só por que lhe disseram que eu andava com outra… ela tinha umas boas massas, um bom emprego, carro e eu vivia um pouco à custa dela… – Então, acha-se culpado de ser sem-abrigo? – Em parte, sim, fod.-..!… Mas sonho em ter uma casinha… – Quem é que vem aqui dar-lhe ajuda? – As senhoras da Câmara… são muito boa gente… – Como é que se chama? – Chamam-me o Docas… um nome do car….! – Muita sorte para si e durma lá! – Sorte, meu! Vai como o Deus… 05.30 – Avenida Almirante Reis – Bom dia, amigo! – Viva… o que é que se passa?… – Nada de mal, apenas estou a fazer umas perguntas para um jornal sobre o vosso drama de serem sem-abrigo. – Com vocês, falo… com a bófia nem sonhar! – Eu sou o André e você? – Os meus pais que não sei onde param deram-me o nome de Alberto… – Não sabe dos pais por quê? – Porque deram-me um pontapé e atiraram-me para fora de casa… eu comecei no chuto e a roubar-lhe as jóias lá de casa e eles, toma! Vai-te curar… – A droga que compra é verdadeira? – Eu sei lá?!… os gajos vendem e sei lá se é treta… se a gente refila ainda levamos porrada… – E não há hipótese de deixar a droga? – Nem pensar, meu! Tu sabes lá o que é uma ressaca… um gajo até quase que morre… – E tem apoio de quem aqui? – É uma associação de defesa dos drogados que nos vai safando… – Não tem frio? – Porra, isso foi em Dezembro… agora daqui a dois meses já temos aí o calor… – Obrigado e desejo-lhe a maior sorte… – Para ti, igual! 01.45 – Avenida de Roma – Boa noite! Então está acordado? – Tou e estarei! – Eu sou o André e ando em reportagem sobre os sem-abrigo. Aqui na Avenida de Roma há muita polícia. Nunca o aborreceram? – Não! Eles passam e são humanos, fingem que não veem e debandam… mas depois da meia-noite só andam de carro… – Posso saber por que é que está aqui… como é que se chama? – Marco… estou aqui porque a vida é uma merda… eu vivia num T1 com uma garina e quando eu comecei a juntar-me a uma malta que não interessava a ninguém, ela foi-se embora para Inglaterra e ao fim de seis meses de rendas em atraso, o senhorio mandou-me embora… a assistência social disse-me que havia mil pessoas em lista de espera para uma casota e aqui estou… – Mas tem aqui um papelão que de um lado pede ajuda e do outro diz “Ajude-me que tenho fome”… – É porque tenho… só vivo das esmolas e por acaso aqui as pessoas são muito generosas… e já me conhecem… – Quer que eu vá buscar um hambúrguer e batatas fritas? – Bem… isso era um banquete… – Até já! Percorremos outros locais e a tragédia humana obriga-nos a ter muita força anímica para ouvir certas passagens que nos abstraímos de vos transmitir para não chocar possíveis sensibilidades mais frágeis dos amigos leitores. P.S. – Desejo ao Director Carlos Morais José e a todos os que trabalham neste jornal os meus parabéns pela passagem do 24º aniversário.