Sem abrigo

O texto que passo a escrever inclui conteúdos que demoraram três meses a recolher, em vários locais de Lisboa, nomeadamente no Parque das Nações, na Estação do Oriente, no Terreiro do Paço, no Cais do Sodré, na Avenida Almirante Reis, na Avenida 5 de Outubro, na Avenida dos Estados Unidos da América e na Avenida de Roma.

Isto, porque o número cada vez maior de sem-abrigo nas ruas da capital do país aumenta de mês para mês e constitui a maior vergonha para o apoio social estatal. Recordo que o Presidente Marcelo, a dada altura do seu mandato tentou, “sonhando”, acabar com os sem-abrigo. Visitou vários locais onde se abrigavam os despejados da sociedade, falou com eles, mostrou-se muito sensibilizado e após verificar as contrariedades para terminar com a vergonha, nunca mais se ouviu o Presidente da República falar em tal desiderato. Os sem-abrigo existem a dormir na rua pelas mais diversas razões.

Desemprego, morte ou abandono dos pais, droga, despejo de residência, divórcio e sequência de prisão. Conversámos, com muita dificuldade, com vários sem-abrigo e todos eles repetiram a mesma coisa: gostar de ter uma casinha. É o eterno problema da falta de habitação pública quando existem milhares de milhões para o absurdo aeroporto de Alcochete.

23:00 horas – Parque das Nações

– Boa noite!

– (voz arrastada) Boooa nooooite… o qué que quer?

– Você precisa de comida ou alguma bebida?

– Nããão…

– Posso saber a razão porque está aqui?

– Vooocê ééé bóóófia??

– Não, sou jornalista.

– Pooor acaaaso sãão uns gaaajos porreeeeiros…

– Você veio para aqui, por quê?

– Ora, pooorque quaaaando saí da prisããão prometeeeeram-me uma data de coooisas e afinal eeeera tudo aldraaaabice…

– Quer dizer que a tão falada reintegração dos reclusos na sociedade não é uma verdade, certo?

– Issooo de que falaaa é uma treeeta, é uma meeeerda…

– E quem é que lhe traz a comida?

– São umas senhoooras numa carrriiiinha que eu nem seeeei quem sããão…

– Oiça, porque é que arrasta a voz? Está doente?

– Não… é do álcool… já estouuu muita mal… bebo comó car….!

– Precisa de algum cobertor?

– Nããão… agora vem aíííí o calor e esta meeeerda melhoooora…

– Como é que se chama?

– Sou o Alfreeedo…

– Posso falar na Câmara Municipal em si?

– Ó amigo, se conseguir tirar-me desta meeeerda até lhe ofereciiiia uma banana…

22:40 – Terreiro do Paço

– Boa noite, amigo!

– Boa noite, ia a começar a dormir…

– Peço desculpa, eu sou jornalista e estou a fazer uma reportagem sobre a vossa situação…

– Fazes bem, meu!… Isto é um sofrimento que ninguém imagina…

– Por que é que está aqui deitado mesmo no meio desta gente toda?

– Eu quero que os gajos se fo…! Este chão é lisinho e dorme-se bem… eu estou aqui porque a minha companheira mandou-me de frosque só por que lhe disseram que eu andava com outra… ela tinha umas boas massas, um bom emprego, carro e eu vivia um pouco à custa dela…

– Então, acha-se culpado de ser sem-abrigo?

– Em parte, sim, fod.-..!… Mas sonho em ter uma casinha…

– Quem é que vem aqui dar-lhe ajuda?

– As senhoras da Câmara… são muito boa gente…

– Como é que se chama?

– Chamam-me o Docas… um nome do car….!

– Muita sorte para si e durma lá!

– Sorte, meu! Vai como o Deus…

05.30 – Avenida Almirante Reis

– Bom dia, amigo!

– Viva… o que é que se passa?…

– Nada de mal, apenas estou a fazer umas perguntas para um jornal sobre o vosso drama de serem sem-abrigo.

– Com vocês, falo… com a bófia nem sonhar!

– Eu sou o André e você?

– Os meus pais que não sei onde param deram-me o nome de Alberto…

– Não sabe dos pais por quê?

– Porque deram-me um pontapé e atiraram-me para fora de casa… eu comecei no chuto e a roubar-lhe as jóias lá de casa e eles, toma! Vai-te curar…

– A droga que compra é verdadeira?

– Eu sei lá?!… os gajos vendem e sei lá se é treta… se a gente refila ainda levamos porrada…

– E não há hipótese de deixar a droga?

– Nem pensar, meu! Tu sabes lá o que é uma ressaca… um gajo até quase que morre…

– E tem apoio de quem aqui?

– É uma associação de defesa dos drogados que nos vai safando…

– Não tem frio?

– Porra, isso foi em Dezembro… agora daqui a dois meses já temos aí o calor…

– Obrigado e desejo-lhe a maior sorte…

– Para ti, igual!

01.45 – Avenida de Roma

– Boa noite! Então está acordado?

– Tou e estarei!

– Eu sou o André e ando em reportagem sobre os sem-abrigo. Aqui na Avenida de Roma há muita polícia. Nunca o aborreceram?

– Não! Eles passam e são humanos, fingem que não veem e debandam… mas depois da meia-noite só andam de carro…

– Posso saber por que é que está aqui… como é que se chama?

– Marco… estou aqui porque a vida é uma merda… eu vivia num T1 com uma garina e quando eu comecei a juntar-me a uma malta que não interessava a ninguém, ela foi-se embora para Inglaterra e ao fim de seis meses de rendas em atraso, o senhorio mandou-me embora… a assistência social disse-me que havia mil pessoas em lista de espera para uma casota e aqui estou…

– Mas tem aqui um papelão que de um lado pede ajuda e do outro diz “Ajude-me que tenho fome”…

– É porque tenho… só vivo das esmolas e por acaso aqui as pessoas são muito generosas… e já me conhecem…

– Quer que eu vá buscar um hambúrguer e batatas fritas?

– Bem… isso era um banquete…

– Até já!

Percorremos outros locais e a tragédia humana obriga-nos a ter muita força anímica para ouvir certas passagens que nos abstraímos de vos transmitir para não chocar possíveis sensibilidades mais frágeis dos amigos leitores.

P.S. – Desejo ao Director Carlos Morais José e a todos os que trabalham neste jornal os meus parabéns pela passagem do 24º aniversário.

Subscrever
Notifique-me de
guest
0 Comentários
Mais Antigo
Mais Recente Mais Votado
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários