Vozes24 anos – Are you entertained? Carlos Morais José - 5 Set 2025 Hoje o nosso jornal atinge a temerária idade de 24 anos. Mas não se assustem os leitores que não os vou brindar com uma apurada reflexão sobre a passagem do tempo, os malefícios da sorte e do destino ou os deleites da experiência adquirida. Pelo contrário, o que realmente pretendo é fincar resolutamente os pés no chão, olhar o presente à volta e, timidamente, sobriamente, delicadamente, especular sobre o que o futuro nos reserva. E são pinças o que precisamos para levantar as camadas de pele infectada que hoje nos ofusca o que poderíamos considerar a realidade. Finalmente, chegámos com clareza (pois, afinal, já lá estávamos) ao ponto em que nenhuma palavra, nenhuma afirmação, nenhum discurso, carregam em si mais que o seu valor performativo. Quando se pensava viver num mundo sustentado pelo valor do discurso – pois não é ele parte sine qua non da democracia? –, torna-se evidente o moribundo valor do que é dito, que rapidamente se esvai de encontro ao que é efectivamente feito. Nunca a distância entre palavra e acto foi tão pornográfica. E por quê? Porque, para os valores predominantes, isso não tem importância. No Ocidente teme-se, timidamente, o regresso do fascismo. E, enquanto se teme, ele cresce. Há uma única razão para esta permissão para crescer, para infectar, propagar o mal e a iniquidade: os neo-fascistas não pensam, não lhes passa pela cabeça, mexer no modelo económico e, por isso, eles não são um perigo para o sistema. Veja-se em Itália o caso Meloni. O seu rearranjo é cosmético, de bufões circenses, destinado a limitar as possibilidades de transformação social que a tecnologia hoje permite, pela imposição das restrições político-morais, mas nunca uma alteração dos pressupostos económicos, nem na via através da qual a riqueza escorre para os bolsos de alguns. Do ponto de vista económico, os neofascistas são neoliberais, pois eles sabem que o mercado desregrado provocará a concentração nas mãos de uns poucos e eles lá estarão para regrar os outros. O neoliberalismo também é adepto da força e da implacabilidade para os mais fracos. No seu mundo ideal, sobrevivem os fortes e os fracos não merecem sequer um lugar à sombra, que não seja à sombra da corporação, enquanto a sua presença motivar algum lucro. Ouvimos Jeff Bezos dizer que gostava dos seus empregados com “medo”, todos os dias, a todas as horas. Isto exprime bem o que é o mundo ideal do neoliberalismo, em que nem todos têm direito à plena humanidade e só aos que potencialmente são capazes de produzir lucro é outorgado o estatuto de próximo de humano. E assim chegamos a um momento em que a tecnologia nos permite outro tipo de relações laborais e em que o trabalho físico encontra cada vez menos espaço para existir. Mas é com este vector mental – egoísta, bélico, assente na competição e na destruição do Outro – que vamos abordar este admirável mundo novo? Provavelmente. E enquanto andamos indignados a tentar salvar conquistas que julgávamos inalianáveis, o actual sistema económico neoliberal, que desgraçou o bem-estar da classe média europeia e americana, não é posto em questão. Pelo contrário, face à torpeza dos políticos no poder, tomam-se caminhos diversos: primeiro, vota-se na extrema-direita que surge como falsa oposição a décadas de desvario neoliberal e corrupção; segundo, retirada para a “montanha” de onde se observa com nojo o desenrolar dos acontecimentos sem pretender tomar qualquer parte neles; terceiro, submersão total nos universos das redes sociais, onde hoje reside o entretenimento. E, já agora, are you entertained? Deves estar porque se não estiveres, farás scroll até de novo dares com algo que fixará a tua atenção nos próximos 30 segundos. Depois passarás para outra e assim sucessivamente, plenamente entertained. Are you entertained?, berrava o gladiador do filme para a audiência, depois de aviar uns quantos colegas nas areias de um qualquer coliseu. Olhem para as pessoas, olhem para vós próprios, e como vos é difícil não procurar constantemente esse entretenimento. Como a vossa atenção está subjugada ao telemóvel e ao incessante fluxo de …. (cada um preencherá com uma ou mais palavras de seu alvitre) que por ali desfila. Este facto é mais saliente na geração que já nasceu de telemóvel na mão e sob os olhos, fazendo da sua percepção do mundo algo de rectangular. Pão e circo: foram sempre as duas faces da moeda da opressão, pois o poder sabe que não vivemos sem um, nem sem outro. E assim nos vão dando, à medida das necessidades do mercado, ou seja, das necessidades dos que o controlam. Mas não se aflijam os caros leitores que o entretenimento não há-de faltar. Entre milhões de outros, nós também cá estaremos para vos entreter com informação, cultura e outras coisas. Como de costume, na medida das nossas impossibilidades, cuja dimensão é um colosso, capaz de fazer corar de vergonha o seu irmão de Rodes, infelizmente há longo tempo desaparecido nos abismos azuis do Mediterrâneo. Tende cuidado com os animais.