Jorge Figueira, arquitecto e académico da Universidade de Coimbra: “As relações heróicas” de Macau

Há muito que escreve e pensa a arquitectura, e desde vez Jorge Figueira, arquitecto, académico da Universidade de Coimbra, fá-lo em Macau. Depois de uma sessão esta semana em que destacou o antigo complexo de habitação pública do Fai Chi Kei, de Manuel Vicente, Jorge Figueira aborda hoje na Fundação Rui Cunha o legado de Nuno Portas

 

Participa hoje na conferência “Nuno Portas: da Arquitectura ao Urbanismo, do Homem à Cidade”. Que legado deixou este arquitecto português?

Nuno Portas é alguém que já no final dos anos 50 tem uma actividade crítica que é totalmente inovadora e pioneira no contexto português. Depois, já nos anos 60, teve uma actividade mais internacional, tendo sido o primeiro a divulgar a obra de Siza Vieira. Foi aí que teve os primeiros contactos com arquitectos espanhóis e italianos, fundamentalmente. Também nesses anos escreveu dois livros que também eram invulgares, como “Arquitectura para Hoje”, em 1964, e “Cidade como Arquitectura”, de 1969. Foram também uma forma extraordinária de tentar apanhar o que se passava em termos de correntes internacionais na arquitectura. Mas depois teve também uma [importante] actividade como arquitecto ao lado de Nuno Teotónio Pereira, nomeadamente na obra da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Lisboa, e numa casa em Vila Viçosa. Depois, com o 25 de Abril de 1974, foi nomeado secretário de Estado da Habitação e Urbanismo e lança o SAAL – Serviços de Ambulatório ao Apoio Local, um programa de habitação social completamente revolucionário, de acordo com o espírito da época. Depois Nuno Portas dedicou-se mais às questões do urbanismo e não tanto da arquitectura. Esteve ligado ao início da Expo 98. Acaba por ser alguém que nos últimos 20 anos do seu trabalho passa a ter preocupações mais científicas e sociológicas, e menos artísticas. É algo que teve desde o início, mas depois passa a ser o cento da sua actividade.

Nuno Portas teve alguma relação com Macau?

Penso que as relações não seriam tão intensas em comparação com outros arquitectos e contextos, mas sabemos que Nuno Portas esteve em Macau a convite do Governo para uma conferência, entre 2001 e 2002. É interessante porque dessa passagem temos ecos daquilo que aconteceu, como a surpresa dele ao descobrir o orfanato Ellen Liang de Manuel Vicente, que não conhecia. Foi a primeira obra de Manuel Vicente em Macau, dos anos 60, e sabemos que Nuno Portas ficou emocionado ao visitar essa obra, sobretudo a pequena capela que existe no orfanato. É interessante porque não havia uma relação directa entre Manuel Vicente e Nuno Portas, são figuras em pólos muito diferentes, e até opostos. Há também uma referência interessante e positiva ao plano do Siza [Vieira, Plano de Expansão da Cidade de Macau (Areia Preta e Porto Exterior, de 1982], e que quando Nuno Portas visita Macau está a ser construído. É interessante que tenha comentado esse plano porque nos anos 60 e 70 a relação entre Nuno Portas e Siza Vieira já não era a mesma, e o facto de ter feito referências elogiosas a Siza é muito interessante.

Foi aluno de Nuno Portas. Que outros aspectos da sua carreira ou personalidade pode destacar?

Também trabalhei com ele. Ele era um homem culto, muito inteligente e com uma memória avassaladora. Era alguém que gostava de provocar, mas no bom sentido, de discutir, de contrariar. Tive a sorte de manter um diálogo com ele de décadas, e será esse meu conhecimento pessoal que irei transmitir. Também reparo que era um homem muito próximo do poder de Lisboa, dos partidos, mas sempre muito independente. Era amigo pessoal de Jorge Sampaio, foi secretário de Estado, mas nunca teve grande protagonismo político. Por um lado, isso deve-se à sua independência, mas por outro ele era uma figura tão controversa e inteligentemente inquieto, que penso que o poder também se assustava com ele.

Esta semana falou também na conferência “Lisbon, Porto, Macau, Maputo: Heroic Collective Housing from the 60s & 70s”. Como descreve os projectos de habitação pública de Macau nesses anos?

Há muitos arquitectos sobre os quais poderia falar, mas concentrei-me na obra de Manuel Vicente em Macau, nomeadamente o complexo de habitação pública no Fai Chi Kei, que foi demolida e depois deu origem ao projecto de Rui Leão e Carlota Bruni. Não falei concretamente de arquitectos portugueses ou macaenses, também temos nomes como, por exemplo, José Maneiras. Até porque os arquitectos portugueses sempre foram poucos em Portugal, e a partir dos anos 50 existiam cerca de 150, aumentando depois muito em número. Mas fiz [na conferência], uma homenagem aos arquitectos portugueses que construíram nesse período, porque num território complexo e com as suas vicissitudes, diferentes das que existiam em Portugal, souberam fazer experiências arquitectónicas no campo da habitação pública extraordinárias. Tentei demonstrar o que estava a acontecer em Lisboa, Porto, Macau e Lourenço Marques, actual Maputo, de formas diferentes. Em Macau estabeleceram-se relações, que chamo de heróicas, no sentido em que foram relações de arquitectura experimental, em que as pessoas tiveram de se adaptar, ter um espírito próprio. Tratam-se de arquitecturas já com um pouco de história, pois passaram 50 ou 60 anos, mas continuam a ser marcantes os exemplos que encontramos nestas cidades.

Que projectos destaca destes anos?

Falei do empreendimento habitacional “Pantera Cor-de-Rosa”, de Gonçalo Byrne, em Chelas, Lisboa. Mostrei os “Cinco Dedos”, de Vítor Figueiredo, também de Lisboa, e o “Bairro da Bouça”, de Siza Vieira, no Porto. Mostrei o complexo do Fai Chi Kei, de Manuel Vicente, e um projecto de Pancho Guedes em Moçambique. Apesar de já serem longínquas no tempo, trata-se de arquitecturas que permanecem referências fundamentais dos pontos de vista cultural e arquitectónico. Há uma espécie de sorte narrativa de poder falar de sítios tão diferentes, e com arquitectos tão diferentes, e mostrar como tiveram esse lado heróico, experimental, comovente, até radical, que tinha a arquitectura desse período em particular.

Macau teve uma evolução positiva no que diz respeito à oferta de habitação pública?

Cheguei em Agosto e tenho visitado o território nos últimos anos, pelo que venho acompanhando um pouco esse processo. Macau é, obviamente, um território extraordinário e desde logo pela coexistência de culturas muito diferentes no que se refere à habitação, que aqui tem uma escala e expressão completamente distintas da portuguesa. Em Portugal há uma aversão às torres de habitação pública, sempre foi algo invulgar e os resultados que se conhecem não foram bem-sucedidos por razões diversas. Mas em Macau é exactamente isso que vemos, habitação pública em torres e com uma expressão muito forte. Isso tem a ver com as características do território e também com uma certa cultura da China e de Hong Kong. Isso não quer dizer que tudo o que está a ser construído em Macau seja bom, há torres e edifícios com soluções menos interessantes ou que decorrem de uma certa repetição. Mas não há nenhuma cidade que só tenha boa arquitectura ou boa habitação pública. O desafio está em resolver o problema da habitação em larga escala, algo que deve ser estudado e pensado. É bonito e avassalador ver que Macau é um território que cresce dia após dia e é excitante observar isso também do ponto de vista da arquitectura. É isso que estou a fazer, a trabalhar em projectos futuros.

Projectos de análise, ou académicos?

Sim, sou professor e investigador na Universidade de Coimbra e colunista do jornal Público, então o meu trabalho é muito analisar e investigar. Já publiquei muito sobre Macau e quero retomar algumas pontas que deixei para resolver, digamos assim. Estou muito estimulado com tudo o que tenho visto e as pessoas com que tenho falado, e se calhar vou aumentar o meu trabalho sobre o território do ponto de vista académico e no plano da investigação.

Numa altura em que Portugal tem um problema crónico de habitação, com falta de habitação pública, Macau poderia ser um exemplo?

De forma directa não, por causa da questão tipológica da torre habitacional. Poderia não ser um modelo bem-vindo no contexto português. Mas sem dúvida que Portugal precisa de aprender com outras experiências e outros territórios e precisa de encontrar soluções. Seguramente que o que se passa em Hong Kong e Macau são experiências que interessa muito conhecer, não para replicar, mas sim para perceber que se trata de um problema global [a falta de habitação].

Lembrar Nuno Portas

A Fundação Rui Cunha (FRC) recebe hoje, a partir das 18h30, a conferência “Nuno Portas: da arquitetura ao urbanismo, do homem à cidade”, com Jorge Figueira. Será tempo de falar de um percurso que o recém-falecido arquitecto iniciou em 1959, com um texto sobre a nova geração do Movimento Moderno em Portugal. Seguiram-se textos nos anos 60 e 70 com “abordagens científicas”, com Nuno Portas a deambular por entre a arquitectura e o urbanismo, sempre de forma reflexiva. Nuno Portas foi uma “figura multifacetada, mais conhecida por ter lançado o programa de habitação social SAAL, que ainda hoje é alvo de investigação e um exemplo”, descreve Jorge Figueira numa nota. O orador está ligado ao Centro Estudos Sociais e Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra.

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