A Grande América (I)

“There is a Providence that protects idiots, drunkards, children and the United States of America.”
Otto von Bismarck

 

A América em “Primeiro Lugar” tem a ver com o despertar do orgulho de um povo conhecido por ser um farol de humanidade, hoje inclinado à auto-piedade ou à vingança. Fragmentado em dezenas de afiliações mentais e sociais entrincheiradas em perímetros repelentes. Cada um com o seu “poder”.

Estranhos uns aos outros. O excepcionalismo de Trump é territorial. A América como lar. Espaço preservado por Deus para o benefício do patriota cristão branco. A ideia não é suficiente para o que resta dela. Alvo da “Grande América” proprietária do semicontinente americano. Protegida por direitos e tarifas. Fortaleza impenetrável.

Daí a guarnição da imensidão árctica, ameaçada pela penetração chinesa que avança coberta pela Rússia ao longo da rota setentrional, o curto trajecto entre o Extremo Oriente e a América, em breve emancipado dos gelos impeditivos.
Washington quer alargar a sua soberania ao Canadá, a ser comprado, e à Gronelândia, a ser tomada pela força se a Dinamarca resistir. Finalmente, uma fronteira de defesa para os Estados Unidos imperial, entre o Árctico e o Rio Grande/Bravo.

Além disso, o exclave do Panamá a curta distância entre os dois oceanos, para protecção contra intrusos. Núcleo com recursos suficientes para dominar os rivais, desde que não sucumba à tentação de os eliminar ou, pior, de os converter. Pax Americana que Trump, monomaníaco de acordos, pretende estabelecer um após outro. Arma em cima da mesa.

Nada de novo sob o sol. Grande parte do território federal foi adquirido através de acordos com o Estado cedente, por vezes recompensado com gratificações em dinheiro, muitas vezes persuadido pela força ou pela ameaça.
Transacções imobiliárias. A cessão da Louisiana de Napoleão aos Estados Unidos destaca-se de todas as outras. Mais de dois milhões de quilómetros quadrados, incluindo a estratégica bacia do Mississipi, que teria feito da França a superpotência mundial.

Comprada por quinze milhões de dólares em 1803, o equivalente a quatrocentos e vinte milhões actualmente. Nem sequer um décimo do valor médio de um clube da NBA (4,6 mil milhões). A falta de continuidade territorial na “Grande América” segundo Trump. Entre a selva desgrenhada de Darién, a barreira entre o Panamá e a Colômbia, onde o asfalto da estrada pan-americana que liga o Alasca à Argentina dá lugar, ao longo de cento e cinco quilómetros, a trilhos intransitáveis percorridos por migrantes a caminho do El Dorado e o Rio Grande/Bravo estão os Estados da América Central e o gigante mexicano.

Na lógica da fortaleza, pareceria natural secar este pântano infectado, para o descrever no jargão trumpiano. Pelo menos, tomar o México. Mas não. A razão é que os cento e trinta milhões de mexicanos violam o cânone racial americano.

Os hispânicos de credo e tom católico, misturados com os remanescentes ameríndios, se adicionados aos quarenta milhões de companheiros anteriormente entrincheirados nos Estados Unidos, formariam um bloco inassimilável pelas “Vespas” em declínio. As fronteiras da “Grande América” são estabelecidas primeiro pela raça, depois pelos imperativos estratégicos. Sem uma demografia homogénea suficiente não há nação e sem uma nação dominante não há império. A raça desenhou o país, decreta Daniel Immerwahr, historiador da “Grande América”. O perfil megamericano é ocultado pelo mapa do logótipo que reduz os Estados Unidos ao continente. Dissimulação.

A América é geopoliticamente correcta, portanto falsa, útil para difundir a imagem de uma república continental, sem o Alasca, o Havai ou a infinidade de territórios oceânicos que pontilham o império em negação.

Um império que não se pode revelar a si próprio, porque os seus cidadãos não têm o tique imperialista criado pelo antigo senhor britânico, herdado nessas antigas colónias apenas por uma combativa minoria político-militar inspirada por visionários febris. A “Grande América” é um império disfarçado de nação. Dá prioridade à coesão dos seus habitantes, decidida pela raça, no sentido cultural do termo. Confirmando que Trump tem um fraquinho por Platão, descobre-se na “República” (IV, 423b-c) o preceito socrático que modula a sua verve expansionista que é “Aumentar o Estado até que possa, à medida que cresce, permanecer uno”.

Daí o Canadá, como país de brancos suficientemente anglo-saxónicos, embora com manchas de francófonos e católicos. A Gronelândia também, porque está meio vazia (uns insignificantes cinquenta e sete mil seres humanos, na sua maioria nativos interessados no estatuto e no dólar) mas é rica em recursos naturais, bases e instalações militares incluindo túneis subterrâneos construídos desde que Roosevelt tratou a maior ilha do mundo como propriedade nacional durante a II Guerra Mundial para evitar que caísse nas mãos de Hitler.

O México não o faz. Excluído por ser um portador de indesejáveis. A ser mantido sob controlo através da ameaça de expedições punitivas à caça de imigrantes ilegais. Justificado pela intenção de atingir os cartéis de droga que traficam fentanil e outros opiáceos sintéticos cujos precursores químicos vêm da China segundo afirma Trump para todos os Estados, por isso, considerados “organizações terroristas” por Trump.

Como corolário, o México é um Estado que encobre os terroristas. Justificados pela doutrina Bush, proclamada após o 11 de Setembro, os militares americanos que patrulham a frente Rio Grande/Bravo estão habilitados a efectuar rusgas antiterroristas num México pouco soberano. Finalmente, o subtexto racial da expansão evoca a “Anglosfera”, uma apresentação geopolítica rap de fascínio antigo que os círculos trumpistas cantam império exterior da “Grande América”.

Uma confederação entre os Estados Unidos com o Canadá, a Groenlândia e o Panamá anexados, o Reino Unido, a Austrália e a Nova Zelândia. Um branco deslumbrante, quase totalitário. Uma família unida pela língua, pela história e pela familiaridade. Fundada na confiança mútua. Já estruturada como uma burocracia intergovernamental em termos de inteligência e muito mais. Uma conclusão pouco gratificante para nós, europeus.

Esta América de combate está interessada em nós como ferramentas, não como parceiros. Trump quer uma América americana, não uma América ocidental. Num sentido geopolítico e cultural. A Europa está fora do radar. Somos responsáveis por esta desvalorização. A Europa está fora de contacto com a história. Pior ainda, não quer conhecê-la. Tapa os olhos e os ouvidos para se iludir de que existe. De que vale a pena. Mas, à margem do mundo moderno, dominada e dividida durante cinco séculos pelos seus impérios, continua a sonhar consigo própria como a dona da humanidade. Paradigma supremo. Ilha sofisticada do “Bem” no arquipélago caótico e bélico do “Mal”.

O Homo europaeus nunca admitirá, como Carl Schmitt que “Sou um vencido. Duas guerras mundiais perdidas, duas”. A inércia da glória, um dia conquistada nos campos de batalha, transcende a pretensão de ser um modelo universal. Tendo renunciado à profissão das armas, a nossa pretensa grandeza reside em irradiar a ordem da paz, de que nos damos o exemplo. Com desprezo pelo ridículo.

Como o cavaleiro de Orlando Enamorado escrito por Matteo Boiardo e publicado em 1495, afirmando que “não se apercebeu do golpe, mas continuou a combater, e estava morto (…) e fez morrer de riso os que o viram”. Ou talvez nós, europeus, estejamos a viver uma dessas experiências de quase-morte sobre as quais os neurocientistas se debruçam. Auras de serenidade descritas por aqueles que saem do coma e recordam a vida depois da morte, luz no túnel da inconsciência. Milagres de um tempo suspenso que comprime as dificuldades de uma vida em momentos de êxtase. Praticamos, sem dúvida, a eliminação bem sucedida da realidade.

O psicanalista e psico-historiador, Franco Fornari em “ The Psychoanalysis of War” consciente de que são os códigos afectivos que movem a história, estudou o sono da Europa há quase meio século para determinar que sonhos continha.

Descobriu os pesadelos. Rimos se através da síndrome da insensibilidade emocional da mesma forma que um camponês que trabalha com as mãos desenvolve calos na pele, também a pessoa que recebe continuamente informações desagradáveis é induzida a desenvolver calos no cérebro. Trata-se de uma forma de defesa. A síndrome dos calos emocionais desenvolveu-se paralelamente à expansão dos meios de informação e comunicação de massas. Diagnóstico tópico. Para não ver o caos dentro de nós e à nossa volta, somos tentados a abandonar o excesso de “informação” que inunda o nosso psiquismo. Com o risco de uma alienação emocional que nos protege dos factos.

E, portanto, do dever de os interpretar. A história cai na prescrição. E com ela a nossa responsabilidade. Somos como Neo no Matrix, chamados a escolher entre a pílula azul e a pílula vermelha.

A pílula azul, sedativo, permite-lhe convencer-se de que as más experiências que viveu são alucinações, para se adaptar à pseudo-realidade da Matrix. A vermelha fá-lo regressar à terrível realidade. Ao contrário de Neo (Keanu Reeves), que escolhe lidar com o seu mundo do próximo século tal como ele é no filme e talvez venha a ser na realidade, humanos em guerra contra a inteligência artificial que se virou contra ele, o europeu das últimas três gerações prefere a pílula azul que o prende à ficção matricial.

Será que a azul é a cor da Europa virtual? A graciosa União Europeia (UE), que, não por abreviatura, baptizamos de “Europa”. Com todos os valores, o peso histórico, a pretensão pedagógica que o “Continente” se atribuiu. Se a Europa, em vez de ser um mito, fosse um actor geopolítico, o trauma de Trump deveria trazer-nos de volta à realidade. Fora da tagarelice do “projecto europeu” de que ninguém conhece o texto, a irrupção da terrível simplificação deveria recordar-nos o lema do ex-boxeador americano Mike Tyson de que “Todos têm um plano até levarem um murro na boca”. No nosso caso, o risco é não levarmos esse murro salutar porque para Trump nem mais nem menos nós existimos.

Tal como teme Zelensky, o mundo poderia “continuar sem a Europa”. Não porque será cancelada. Porque não há, nem nunca houve, um sujeito da Europa, como atesta a leitura de qualquer atlas histórico (será também por isso que já quase não se publica nenhum?). O arranhão de Richard von Metternich como “expressão geográfica” aplicar-se-ia melhor à Europa. Aqueles que, como Napoleão e Hitler, estiveram mais perto de ocupar todo o espaço, que um curioso cânone francês quer estender do Atlântico aos Urais, consideraram-no, de facto, o tema do seu tema. Expansão do seu próprio Estado.

Foi preciso um império inventado na América por europeus em fuga para englobar no seu arco hegemónico a quase totalidade da geografia do continente. Quanto ao império russo, estamos na “Frente Asiática”. Cauda peninsular da “Grande Mãe”. A UE vê Trump como o diabo. Porque, uma vez removida a máscara do internacionalismo liberal, a América revela a face pouco apresentável da ficção comunitarista. Subverte as suas premissas, expõe as suas traições e os seus limites macroscópicos.

A falta de legitimidade democrática, impossível sem um povo europeu; a tentativa (mal sucedida) de abrir as fronteiras internas sem assegurar as externas; a exigência de que os novos membros da Europa Central e Oriental, expressão de nacionalismos exasperados pela longa subjugação a impérios hostis, se adaptem às “normas da UE” que esses mesmos etnicismos gostariam de liquidar. Paradoxo extremo, reivindicar a “soberania” europeia sem um soberano. Os sujeitos da UE continuam a ser os seus fundadores; os Estados. Cada um com o seu próprio estilo, empenhado em utilizar os recursos comunitários para os seus próprios fins. Por isso, falar de “defesa europeia” sem um Estado europeu, pertencente ao império americano na sua versão militar (OTAN), não faz sentido. Ignoramos que na origem do “projecto europeu” está a América, interessada em estruturar a sua vanguarda na Eurásia. E que nós, europeus, não só aceitámos como quisemos o “Pacto Atlântico”, cada um em seu benefício. De tantas aporias, o nascimento do “bom monstro de Bruxelas”.

Arquitectura em permanente progresso ao estilo da “Sagrada Família” que, aliás, se anuncia concluída em 2026 uma espécie de ONU regional com características marcadamente tardo-soviéticas. Em suma, uma construção quase jurídica, sem alicerces nem alma política. Definitivamente inacabada. Portanto, estéril ou, pior ainda, explorável para os interesses de outros. Um motor do caos, tudo menos a ordem. Até ontem, o barco europeu estava a flutuar. Hoje, sob a pressão da dupla revolução geopolítica e tecnológica, a “potência suave”, acena sem bússola.

Margaret Verstager, antiga Comissária da UE, confessou: “A Europa diz-se uma superpotência reguladora. Mas podemos regular coisas que sabemos. É muito difícil regulamentar o que não se conhece”. Acrescentaríamos e que nem sequer vos pertencem. Para aqueles de nós que se sentem europeus como nacionais dos diversos 27 Estados, e não vice-versa, o advento de Trump é apocalítico no sentido original do termo, revelador.

Uma oportunidade para reflectir sobre o lugar que ocuparemos na reestruturação do império americano, se este sobreviver. E, sobretudo, sobre o papel que desempenharemos nesse esforço. Prefácio, fora da Europa, quase ninguém acredita que a conquista de territórios deva seguir regras, antes pelo contrário.

Nem que seja reservada aos Estados. Os grandes oligarcas americanos têm o poder de fogo financeiro para comprar África ou a América Latina. Desistir da retórica do ius publicum europaeum. Reentrar na constituição material da política internacional. Agora que nos descobrimos nus, para reagir temos de responder a três perguntas: porque é que estamos confusos na auto-ilusão de ser Europa; como é que os Estados Unidos nos vêem; o que é que isso significa para nós, europeus?

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