Perspectivas VozesA ordem e o caos não existem Jorge Rodrigues Simão - 9 Abr 2025 (continuação da edição de 3 de Abril) A América, a China e a Rússia temem pela sua existência. Nestes graus de auto consciência, só se considera vivo quem é uma grande potência. Se formos reduzidos a um nível inferior, somos tentados a cometer suicídio (Experientia docet da União Soviética). Deixamo-nos ir. Daí a “Grande Guerra” em vários teatros, quentes ou mornos, que se não forem suspensos se transformarão em “Total”. A desordem abre buracos que convidam os ambiciosos. Antigos impérios já diagnosticados como estando em desarmamento irreversível (Turquia, Japão), antigas colónias que se redescobrem como Estados civilizados (Índia/Bharat), nações humilhadas e ofendidas em ascensão devido à infracção dos seus vizinhos (por exemplo, a Polónia). Enquanto os protagonistas de anteontem se debatem, desde da Inglaterra penúltima hegemonia ao falso casal França-Alemanha, confinados em “simul stabunt simul cadent”. As ondas do caos engolfam terras neutras ou negligenciadas reduzem as distâncias entre os “Três Grandes”, cotovelo a cotovelo nos mares da China, na Ucrânia, em breve no Árctico. A transição hegemónica flui da América para o caos. E aí permanecerá durante muito tempo. Um colosso sem rival não se dissolve de um dia para o outro, sobretudo se for capaz de arrastar o resto do mundo para o desastre. Quando chegar a sua hora, o seu último desejo será o de impedir que outros ocupem o seu trono. A América está em luta consigo própria. Conflito épico, ao qual se aplicam os versos esotéricos de Theodor Däubler, austríaco de Trieste, que afirma que “O inimigo é a figura da nossa própria matéria/ e ele nos perseguirá, e nós a ele, até ao fim ”. Na luta pela sobrevivência, a América sabe que o seu mal interior é curado em relação ao mundo, mas só depois de restaurada a ordem natural das coisas. Nós, Europeus à frente, os outros atrás ou contra. A nova combinação vencedora de elites pós-liberais e tecno-estrelas desinibidas, híbridos anarco-autoritários, está convencida disso, reforçada pelo entusiasmo vingativo das classes médias-baixas frustradas pela globalização, pela “invasão” de alergénios não assimilados no cânone Wasp e pelo declínio do seu próprio estilo de vida. Esta estranha aliança encontrou em Donald Trump o seu exuberante campeão. Profeta do “senso comum”. Brutal na lógica e nos gestos. Encarnação do “terrível simplificador”, o tipo ideal do demagogo violador de regras evocado com horror pelo historiador suíço Jakob Burckhardt no final do século XIX. Inspirado pela República de Platão diria que “A justiça não é senão o proveito do mais forte”. Baptiza-se a si como um “génio muito estável”. Escolhido por Deus, que desviou a bala com que o “Estado Profundo” satânico o queria liquidar. A história dirá. Entretanto, notemos que há génio nas suas acções terrivelmente simplificadas. Para levar à letra. O primeiro acto do segundo Trump, subversivo e homem da ordem, é muito cénico. Frenético. A doença da América requer curas perigosas. Um presidente de quase 80 anos, com apenas quatro anos de mandato pela frente partindo do princípio de que não vai acabar por reinterpretar a Constituição, inventando uma terceira tem de se preocupar. Ele parte de onde pode colher recompensas imediatas que é o mito americano. A sua narrativa exalta a vontade e, por conseguinte, a certeza de voltar a ser grande. Para Trump, querer é poder. Querer é sonhar e fazer sonhar. Revelar o “Destino Manifesto 2.0” aos seus compatriotas. Nova fronteira necessária. Objectivo operacional. Ergo, o domínio do Espaço para controlar a Terra e arrebatar o público com a lenda marciana contada por Musk; supremacia reforçada na IA para governar o ciberespaço, liderar a revolução tecnológica, reinventar a indústria sobre princípios inéditos, talvez fantásticos evitando descobri-los demasiado cedo para não alienar os operários; apagar os incêndios ucranianos e do Médio Oriente e preparar as guerras do futuro cuja aurora mal podemos vislumbrar. Possivelmente sem as combater, graças ao restabelecimento da dissuasão perdida. O alfa e o ómega desta narrativa são os anúncios rápidos através das redes sociais. As estrelas da tecnologia presidem aos capítulos do mito. São os generais que lideram as respectivas vanguardas nas frentes tecnológicas de valor estratégico. Poderes quase autónomos que Trump pretende explorar, controlar e dominar à medida que penetram informalmente nas estruturas em ruínas do Estado. Anuncia uma batalha entre tribos trumpianas por competências e poderes públicos e privados. Melhor, público-privado, dada a sobreposição de funções e responsabilidades. Jogo sem regras. Mais cedo ou mais tarde, o confronto entre Trump e Musk, o mais célebre e poderoso dos oligarcas da fronteira tecnológica, que o presidente mimou ou frustrou dia sim, dia não, parece inevitável. Um confronto decisivo, porque sem a estrela tecnológica o sonho trumpiano transformar-se-ia num pesadelo. Trump, o revolucionário, raro mas verdadeiro em que o sucesso ou o fracasso de um indivíduo afectará o destino da nação e do mundo. A prova de quão profundo e estrutural é o colapso emocional dos americanos. A revolta de uma corte de ricos imundos, entediados pelo dinheiro e energizados pelo poder, destruiu o exausto establishment centrista. Os hologramas da administração Biden estão a desfrutar de um descanso imerecido. Enquanto as burocracias federais e dos Estados azuis se envolvem numa guerra de guerrilha partidária com o apoio da linha dura. Uma guerra civil de baixa intensidade. O magnata nova-iorquino quer cortar o nó górdio que está a estrangular a América que é a incompatibilidade entre excepcionalismo e universalismo. Complexio oppositorum como chamou Jung por conter os opostos dentro de si e inscrito pelos Pais Fundadores no código genético das estrelas e riscas, que fez dos Estados Unidos um espécime único no bestiário das potências. Tornar a América grande de novo significa optar pelo excepcionalismo em vez do universalismo. Estabelecer-se de forma insuperável no topo do mundo tal como é, e não redimi-lo como deveria ser. Se quiserem reafirmar-se como o número um, mantendo os chineses à distância, não podem consumir-se em guerras intermináveis, muitas vezes perdidas e, na melhor das hipóteses, reprimidas. Nem transformar outras tiranias em democracias, violar tribos em nações, transmutar a miséria de outras pessoas em prosperidade à custa das suas próprias meias-vidas.