Grande Plano MancheteEstudo | Governo relutante em legislar testamento vital Andreia Sofia Silva - 11 Fev 2025 Um estudo de Man Teng Iong, docente da Faculdade de Direito da Universidade de Macau, e Vera Lúcia Raposo chama a atenção para a ausência da “Directiva Antecipada de Vontade”, ou testamento vital, do ordenamento jurídico da RAEM. O documento permite que uma pessoa decida previamente se quer ou não receber tratamentos médicos na fase terminal da vida Há vários anos que em Portugal qualquer cidadão pode assinar uma Directiva Antecipada de Vontade (DAV), também conhecida como testamento vital, que permite a decisão consciente sobre o tipo de tratamentos médicos a receber em determinado contexto de saúde. Estando longe de constituir uma forma legal de eutanásia, o documento permite conhecer a vontade do paciente quando este, por motivos de saúde, não o poder fazer. Em Macau, o DAV não está legislado e as autoridades têm revelado sinais de relutância em avançar no processo. É o que conclui o estudo “Advance Directives in Macao: Not Legally Recognised, but. . .” [DAV em Macau: Sem Reconhecimento Legal, mas…”, assinado por Man Teng Iong, docente da Faculdade de Direito da Universidade de Macau (UM), e Vera Lúcia Raposo, ex-docente da mesma faculdade e actualmente professora na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. O estudo foi publicado recentemente pela Cambridge University Press, embora tenha sido o tema da tese de mestrado de Man Teng Iong defendida há uns anos. Os autores analisam o enquadramento jurídico da questão em Macau, concluindo que “até à data, o Executivo de Macau assumiu uma atitude de precaução em relação às DAV, aceitando (ou tolerando) estes instrumentos, mas não investigando este assunto com a força necessária”. “Tem sido reportado que, devido ao envelhecimento da população de Macau, e à luz da adopção da legislação sobre DAV nos últimos vinte anos em países como os Estados Unidos, Austrália, Canadá e Singapura, o Executivo reconheceu a necessidade de legislar as DAV”, é acrescentado. Os autores indicam que as autoridades locais até reconhecem os factores positivos de ter acesso a este tipo de documento legal. “Tais instrumentos legais de vontade não vão apenas aumentar a qualidade de vida e proteger a dignidade dos pacientes no fim das suas vidas, mas também reduzir despesas médicas desnecessárias. A 3 de Dezembro de 2019, os Serviços de Saúde (SS), e a sub-entidade da Comissão de Ética para as Ciências da Vida, introduziram as ‘Directrizes para Questões e Política Futura das DAV’ em Macau, concordando em legitimar [a matéria]. Porém, apesar da concordância em torno da implementação das DAV, o Executivo insiste em manter numa fase preliminar as discussões em torno das DAV.” Desta forma, os autores consideram que a “hesitação pode reflectir o receio da entidade [SS] em enfrentar dificuldades e controvérsias em torno dos planos para a sua implementação”. Consenso como argumento Os autores destacam que as “barreiras para a implementação” do quadro jurídico das DAV em Macau surgem “de uma baixa consciência por parte do público face à legislação das DAV e a possibilidade dos pacientes poderem mudar a forma de encarar o fim de vida, bem como a disposição dos familiares do paciente em cumprir com as vontades do paciente”. O estudo salienta que os SS sempre argumentaram que “tem sido feita uma extensiva e profunda acção de sensibilização e educação junto do público, nas áreas académicas, sociais e jurídicas sempre que necessário, e que a lei que regulamenta as DAV apenas pode ser implementada depois de obtido o consenso de todos os sectores”. Porém, o estudo refere que “é possível argumentar que a posição do Executivo carece de justificação adequada”, pois “este tipo de consenso invocado para adiar a regulação das DAV não é possível de atingir, devido à multiplicidade de visões legais, éticas e até religiosas sobre a matéria”. Além disso, os autores salientam que “mesmo que um consenso desse género pudesse ser atingido, o Executivo não tomou os passos necessários para encorajar ou facilitar a discussão, ou a consciencialização, junto da população”. São mesmo referidos dados sobre um estudo feito acerca das noções da população de Macau sobre a matéria, concluindo-se que “a falta de informação sobre as DAV foram o principal factor determinante na decisão das pessoas em fazerem a DAV”. “O estudo também descobriu que 73,6 por cento da amostra (724 pessoas) estavam dispostas a completar uma DAV caso o documento tivesse reconhecimento legal”. “Resistência” social e política Assim, os autores do estudo alertam para a existência de “uma grande resistência – da parte de certos grupos de residentes de Macau e do Executivo – para a implementação de uma regulamentação adequada das DAV”. “Uma possível razão para esta hesitação passa pelo medo de que legislar formalmente as DAV pode levar à eutanásia, uma prática proibida em Macau, mesmo que as duas situações sejam claramente diferentes”, denotam os autores, que entendem ser “imperativo que o Executivo regule as DAV”. Neste ponto concreto, uma nova lei deveria “clarificar alguns aspectos legais, como os requisitos para a realização [das DAV] e para ficarem legalmente operacionais”, garantindo a autonomia de decisão do paciente e assegurando “uma solução mais adequada do ponto de vista dos direitos humanos”. Os autores chamam a atenção para a influência da lei portuguesa de 2012 na legislação das DAV em Macau, chamando-se a atenção para o facto de as DAV terem uma maior compatibilidade com o que consta actualmente no Código Civil local. Porém, legislar as DAV acarreta também uma discussão do ponto de vista cultural, é apontado. “Não é claro se a regulamentação das DAV estaria em concordância com os valores generalizados da comunidade chinesa predominante, que tem ainda uma grande ligação à família. São necessários mais estudos para clarificar esta e outras matérias, uma vez que, por exemplo, não existem dados sobre as estimativas dos números e implementação das DAV na jurisdição de Macau”, além de existir “uma necessidade urgente de mais investigações que explorem as perspectivas dos médicos em torno das DAV”. É referido o caso do Hospital Kiang Wu, que no centro de cuidados paliativos “The Hospice & Palliative Care Centre” disponibiliza tratamento para doentes terminais com cancro. Porém, antes da admissão destes doentes, é exigida a assinatura do documento “Consent for the Hospice & Palliative Care Centre”, uma espécie de consentimento que acaba por ser, na maior parte das vezes, assinada pelos familiares e não pelo próprio doente. Além disso, “não é um documento de autorização, por parte dos pacientes, da atribuição, ou não, de procedimentos médicos, mas uma aceitação dos termos e condições do hospital”. O que a lei actual permite Em termos gerais, as DAV em Macau têm algum enquadramento jurídico, nomeadamente no Código Civil, apesar de não estarem legisladas com uma lei própria. Os autores concluem, porém, que “subsiste alguma incerteza sobre até que ponto as DAV seriam efectivas, em particular tendo em conta que os médicos tendem a rejeitar qualquer documento que rejeite um tratamento de suporte e manutenção de vida”. “Em Macau a discussão em torno das DAV é quase inexistente. Sem um debate claro e transparente que inclua especialistas e estudos com argumentos jurídicos, não haverá desenvolvimentos jurídicos relacionados com a natureza, conteúdo e utilização das DAV num futuro próximo”, descreve-se.