Via do MeioDa China e dos Chineses (1) António Graça de Abreu - 23 Jan 2025 São mais de mil e quatrocentos milhões de seres humanos, desequilibradamente espalhados por um imenso território com o tamanho da Europa. Constituem a mais paradoxal de todas as nações, igual a si própria há quatro mil anos, uma civilização única, coerente, apaixonante. São os últimos sobreviventes das grandes civilizações agrárias da Idade Antiga. O Egipto, a Mesopotâmia, os impérios da América Central, tudo se esfumou na voragem dos séculos. A China permaneceu, preservou sua identidade e cultura, continuou a sua História, seus costumes e tradições populares, sua arte, sua poesia. Tal como os egípcios, os Chineses inventaram uma escrita complexa que utiliza símbolos pictográficos e ideográficos. Mas se os hieróglifos do tempo dos faraós são relíquias de museu, os caracteres chineses formam, ainda hoje, a mais surpreendente e espantosa representação gráfica de uma língua. Também o elemento aglutinador fundamental do monolito cultural chinês. Os Chineses são mais numerosos do que norte-americanos, soviéticos e europeus todos juntos; no entanto o seu produto interno per capita ainda está longe do das nações mais avançadas do globo. Irão dentro de algum tempo ultrapassar a economia norte-americana, mas será de considerar que a população da China é cinco vezes superior, o que desequilibra quaisquer estatísticas. Há quase duzentos anos Napoleão lançou o grito: “Quando a China despertar, o mundo tremerá!” Em 1974, o diplomata francês Alain Peyrefitte aproveitou a frase para título de um seu livro, best-seller no hemisfério ocidental. Mas é verdade que a China, o grande Império do Meio, apesar de tantos alvoroços, sofrimentos e vigílias, mais do que acordou e começa a tomar em mãos o futuro, abana a roda da História, produz tudo e polui quase tudo. A China faz estremecer o mundo. É um país paradoxal, repito. Com muitos milhões de habitantes a viverem com menos de dois dólares por dia, conta com algumas das metrópoles mais modernas do globo, lança e recupera satélites, envia homens para o espaço e sondas para a lua e para Marte, possui bombas atómicas desde 1961. Orgulha-se de possuir a mais vasta e volumosa literatura jamais escrita por qualquer povo e, no entanto, no século XX apenas terá produzido um admirável e grande escritor, de seu nome Lu Xun 鲁迅. A Quan Tang Shi 全唐詩, Poesia Completa da Dinastia Tang — época de ouro da poesia chinesa, de 618 a 907 –, é uma antologia composta por 48. 900 poemas de 2. 300 autores diferentes; contudo na China actual o analfabetismo atinge ainda cerca de 5% da população. Os Chineses que nunca foram um povo religioso — pese embora os vinte séculos de confucionismo como doutrina oficial do Estado —, endeusaram Mao Zedong durante os dez anos da catastrófica Revolução Cultural Proletária e logo depois distanciaram-se, sem grande mágoa, da majestosa figura do velho “timoneiro”, mas hoje continuam a respeitá-lo como “pai da Nova China.” Os Chineses que sempre gostaram do sossego, do conforto pessoal, da boa comida, dos prazeres da vida, continuam a ser capazes de se submeter aos trabalhos mais árduos e às mais duras privações. “Sofrem a sorrir”, observava Ferreira de Castro, há setenta anos, na sua “A Volta ao Mundo”. A China, que tem algumas das mais belas mulheres do mundo, tentou, até há umas três dezenas de anos atrás, por via de uma radical moralidade, apresentá-las deliberadamente como as mais feias. A China é um oceano de contradições no qual nós, ocidentais, navegamos sempre com perigo de naufrágio. Por isso é tão difícil a viagem, eivada contudo de todos os fascínios, por dentro deste país e deste povo, e também por isso são comuns tremendos erros de análise em relação às realidades chinesas. Na China diz-se: “O estrangeiro que vem ao nosso país durante quinze dias escreve um livro, o que fica uns meses escreve alguns artigos para os jornais, o que permanece mais tempo parte a caneta e nunca mais escreve nada.” Sei, por experiência própria, que conhecer a China ao longo dos anos, vivê-la por dentro quase até à exaustão, produz um adormecimento da vontade, um torpor suave que martiriza e dá prazer. A China, terra de gente diferente de todos os outros povos, entra em nós, invade-nos e começa a ser difícil falar ou escrever sobre os Chineses, porque os conhecemos melhor, ou seja, ignoramos muito mais acerca deles.