Via do MeioJardins da China (5) – O recinto das flores de ameixeira Hoje Macau - 3 Jan 2025 (Meihuashu ji) Por Zhong Xing Zhong Xing (1572-1624), também conhecido por Zhong Xinghui, foi um letrado e historiador chinês que viveu durante a dinastia MIng. Quando se chega aos Três Wu (três cursos de água que rodeiam Suzhou), pergunta-se se ainda se estamos num rio: do barco ou da margem, só se vêem jardins. Jardins? Sim, jardins sobre a água! Sobre a água, na água, à esquerda, à direita, em terraços elevados, em habitações escondidas, quiosques arejados, galerias sinuosas, cais horizontais, rochas verticais, flores no chão e pássaros no ar, caminhos em todas as direcções, tudo em jardins, nada mais que jardins. Por que precisa toda a gente de um jardim? Porque o homem é tal que, se estiver sempre no meio de jardins, já não se apercebe disso, e tem de ter o seu próprio jardim para saber que está num jardim. Quando navego nos Três Wu, encontro-me sempre num jardim, sem poder conhecer todos os jardins desse jardim. Em Liangxi (Wuxi) é o Vale do Velho Estúpido de Zou, em Gusu (Suzhou) é o Político Desastrado de Xu, a Paz Celestial de Fan, a Montanha Fria de Zhao: cada pessoa que se preze tem o seu próprio jardim. Mas os jardins não estão apenas na água, ou podem estar na água e continuar a ser diferentes, como é o caso do Recinto das Ameixeiras em Flor do meu amigo Xu Xuanyou. Fica em Fuli, onde Lu Guimeng da dinastia Tang viveu (no século IX). Se é diferente, é porque se chega lá através do rio Wusong, o único rio dos Três Wus que merece esse nome. Vim ao Recinto com Lin Maozhi no inverno do ano jiwei da era Wanli (1619) e prometi escrever uma prosa sobre este jardim, mas não cumpri a minha promessa até agora, no ano xinyou da era Tianqi (1621). Vejo-o muitas vezes na minha mente, mas não consigo lembrar-me de todas as suas voltas e reviravoltas, como o pintor de bambus que projecta mentalmente toda a imagem sem ser capaz de contar os nós do caule. Só um poema que escrevi sobre este jardim é que o traz de volta à memória. A água dos Três Wu, que corre mais livremente em Fuli, torna-se invisível a poucos passos do Recinto, para reaparecer no interior, onde tem de entrar por um canal subterrâneo. Abra uma porta e estará no mesmo nível que o Pavilhão das Líchias e dos Crisântemos1, depois suba uma escada sinuosa até ao Pavilhão do Reflexo. Não se vê apenas a água lá em baixo: o que se avista do quiosque, o que a galeria acompanha, o que a ponte atravessa, onde as pedras sobem e descem, onde os salgueiros e os bambus se reflectem, é água. O meu poema diz: “Fecho a porta e domino uma corrente fria, levanto a mão e encontro uma paisagem”. Se nos virarmos nos degraus, podemos ver uma sucessão de picos, que são rochas colocadas arrastadas na parte ocidental do jardim. Se deixarmos o nosso olhar vaguear ao longe, veremos água rodeada por uma galeria que, por sua vez, está rodeada de um muro. A água, verdejante com árvores e plantas aquáticas, reflecte-se nas nossas roupas. Do outro lado do muro há um outro pavilhão, solitário, que julgas estar ao teu alcance, mas não sabes como lá chegar, porque o caminho é traçado e depois desaparece. Como diz o meu poema: “Avançamos e paramos, os desvios têm os seus mistérios.” Quando se desce do pavilhão, é preciso ter cuidado com os pés para não molhar a roupa; chega-se à entrada da Gruta dos Perfumes, no fim da qual se atravessa uma piscina numa ponte de pedra. Depois de passar a Gruta do Pequeno Mont You, páre no Pavilhão da Hospitalidade, perto do Banco do Murmúrio do Brocado, uma rocha musgosa corroída pela água. A galeria do outro lado da água é ladeada por bambus; o ruído e o brilho da água misturam-se com o canto do vento e o jogo do sol nos bambus, iluminando-os e encobrindo-os alternadamente, como evoca o poema: “Galeria imóvel entre os bambus, sons e luzes que se movem ao perto e ao longe.” Virando para norte, chega-se a um quiosque triangular no coração da torrente, onde o ar é tão fresco que parece de outono ou de inverno. Depois, siga por um beco entre sebes e, de repente, verá um Pavilhão do Repouso Verde, com vista para o Pavilhão do Reflexo e para as estranhas pedras que foram respeitosamente chamadas Elã Divino. A galeria rodeada de água começa aqui; o seu nome, Galeria das Sombras Fluidas, foi desenhada por Chen Meigong. Percorra depois a balaustrada verde e rubra até ao Pavilhão Azul Celeste. Algumas dezenas de passos mais à frente, virando para sul, a ermida dedicada a Weimoji2 marca o centro da galeria. Vinte ou trinta passos mais à frente, chega-se à Ponte da Lua sobre as Ondas, com um quiosque para a contemplar. O vento anima a superfície do lago, um espelho onde as aves do ar se misturam com os peixes da água. A ponte conduz à Sala do Ócio Merecido, a mais bela sala do jardim, onde se podem sentar cem pessoas no terraço de pedra onde se realizam concertos e festas. A noroeste, encontra-se um pequeno templo dedicado a Buda. Do Pavilhão do Reflexo à Sala do Ócio Merecido, passa-se de um retiro escondido para um espaço aberto, e do salão para o templo regressa-se ao silêncio, como se deve. O templo fica junto à água, que se atravessa no Vau Flutuante Vermelho. A norte, a Torre da Biblioteca e, um pouco mais adiante, o Santuário, lugar de repouso do Mestre do Jardim, ao qual só são admitidos convidados íntimos. Na ribeira a leste da Sala do Ócio Merecido encontra-se um quiosque denominado Lavadouro dos Tinteiros. Uma porta cortada na parede dá acesso ao Pavilhão do Pura Água Profunda, que é aquele que se vê ao longe sem saber como lá chegar. Deixe para trás todas as vistas requintadas, que se sucedem no interior, mas ao resignar-se por um momento, descobre-se uma nova paisagem, mais clara e mais ampla. Fora do pavilhão, o bambu é lavado pela névoa e pela geada, as flores e os frutos são coloridos por nuvens iridescentes, os lagos são purificados pelas estrelas, e há uma suavidade e um brilho primaveris, mesmo no tempo frio e sombrio. O meu poema diz: “Eu costumava evitar o outono e o inverno para ver os jardins, mas se eles mantiverem a sua beleza, não importa a estação do ano”. Apesar de só lá ter estado uma vez, o meu coração e os meus olhos falam-me de todas as suas estações e gostaria de lhe chamar o Jardim das Flores Eternas. Mas, com as suas extensões de água límpida, evoca sobretudo o outono, e termina com uma Ermida do Outono em Movimento, porque o outono é o culminar das outras estações. Como já disse, a água dos Três Wu não é mais do que jardins, mas nós só vemos as cidades e as aldeias e esquecemo-nos dos jardins. O jardim de Xuanyou é todo água, mas só se vêem os quiosques e os pavilhões e esquecemo-nos da água. Água? Jardim? É difícil de dizer! O homem de lazer olha para um sítio com tranquilidade, o homem sábio é exímio no seu paisagismo, o homem superior retira dele a quintessência. Cada um vê as coisas à sua maneira. Como diz o meu poema: “Vemos o ócio nestas pontes e nestes quiosques? Podes ser ocioso e competente, eles não estão lá por acaso.” Tradução de Miguel Lenoir 1. Alusão literária (a Lu Guimeng, que aí viveu, e a Su Shi) a uma vida frugal e feliz. 2. Weimoji, um eremita que se diz ter tido uma conversa com o Buda.