Vozes25 anos de transferência de Macau – A grande diferença Hoje Macau - 30 Dez 202430 Dez 2024 Por João Severino, jornalista e antigo director do Macau Hoje Em 1982 conversava com o pintor macaense Herculano Estorninho, no Hotel Sintra, em Macau. O tema era pertinente e quase inimaginável. Eu perguntei ao artista se tinha alguma ideia sobre o futuro de Macau quando ambos tínhamos conhecimento de rumores de que um dia a China recuperaria a soberania de Hong Kong, Taiwan e Macau. Estorninho respondeu-me que a lei natural da política chinesa seria direcionada para que um dia recuperasse os três territórios. Estávamos a anos-luz de saber o que e quando poderia acontecer o tal “futuro”. O pintor salientou-me que eu era um jornalista muito atento aos valores políticos, sociais e culturais de Macau e que estava muito embrenhado em todas as especificidades de Macau. Agradeci e voltámos ao tema várias vezes. Certo dia, da década de 1980, um amigo que era íntimo do general António Ramalho Eanes, enviou-me um email dizendo que me preparasse para o “futuro” porque tinham-se iniciado negociações diplomáticas entre Portugal e a China com o intuito de prepararem um acordo para que Macau regressasse à soberania chinesa. De início, senti alguma perturbação psicológica, mas fiquei em silêncio. Não traí a minha função de jornalista porque o meu interlocutor pediu-me o maio segredo sobre o assunto. Mais tarde, a notícia foi pública e o Presidente da República Aníbal Cavaco Silva estava em Pequim ao lado de Deng Xiaoping, a fim de se cumprimentarem devido ao acordo firmado entre os dois países para que o território chinês de administração portuguesa passasse a ser governado sobre a soberania chinesa. Infelizmente, já não tinha Herculano Estorninho para conversar sobre a política macaense, portuguesa e chinesa. Tinha vários amigos macaenses, incluindo Carlos d’Assumpção, que me salientaram o natural desgosto de terem de aceitar que afinal a história não era história. Que afinal, a China não reconhecia que tinha doado Macau a Portugal, como esses macaenses tinham aprendido no banco da escola. A partir daí, assisti a tudo. Ao Grupo de Ligação; à Lei Básica; às visitas últimas dos Presidentes Soares e Sampaio; às obras apressadas; aos convites a imensas personalidades portuguesas para visitar Macau, a maioria dos convites com segunda intenção; à transferência de milhões de patacas para a Fundação Casa de Macau, para a Agência Lusa, para a Expo’98; para os jornais Expresso, Diário de Notícias e outras publicações, quando alguma imprensa de Macau em língua portuguesa vivia no fio da navalha; à tentativa do Presidente Sampaio demitir o governador Rocha Vieira para nomear o seu colega de escritório Magalhães e Silva; ao embarque de dezenas de contentores dos governantes; à transferência dos arquivos e dos quadros com a imagem dos governadores para Portugal à revelia das autoridades chinesas; à construção de um aeroporto cujos custos foram inflacionados a triplicar; ao saneamento e discriminação de jornalistas que não seguiam as directrizes do governador; à injustiça de um tribunal onde certos juízes e procuradores corruptos nem serviam para motoristas de táxi e ao baixar da Bandeira portuguesa e ao hastear da Bandeira da China na noite de 19 de Dezembro de 1999. Conheci cinco governadores e todos eles foram unânimes em me transmitir que Portugal pouca atenção dava a Macau e às suas gentes. Os governantes de Portugal visitavam Macau apenas com a preocupação de passarem pela San Ma Lou e “adquirirem” umas jóias, muito valiosas, para oferecerem às esposas. Carlos d’Assumpção, presidia à Assembleia Legislativa e desabafou comigo que os governadores de Macau faziam e ganhavam o que queriam e que Portugal nunca dignificou os macaenses. Foram 22 anos a assistir ao impensável, terminando por assistir à página mais negra da história de Macau: o governador Rocha Vieira, sem que a quase totalidade dos seus secretários-adjuntos tivessem conhecimento, resolveu transferir para Portugal uma quantia astronómica pela calada da noite (um dia conto-vos a estória do cheque) e esse pecúlio viria a criar a triste Fundação Jorge Álvares, o que poderá ter custado a Rocha Vieira a sua eleição de Presidente da República, cargo com o qual sempre sonhou. Pois, essa Fundação Jorge Álvares que apenas tem servido para certas pessoas que passaram por Macau, teve a desfaçatez de na passagem dos 25 anos da transferência do exercício da soberania de Macau de Portugal para a China de apoiar a edição de uma espécie de livro com alguns testemunhos de oportunistas que só souberam sacar dinheiro do povo de Macau, com a agravante de essa “obra” ter sido coordenada pela pior presidente da administração da TDM e que foi demitida pela tutela da empresa. Igualmente a Fundação Jorge Álvares quis dar a entender que estava a comemorar as bodas de prata da transferência da soberania de Macau de Portugal para a China e organizou uma sessão de discursos no Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM). De forma ignóbil. Começou por convidar por email. Depois, assumiu – rebaixando a dignidade da directora do CCCM – o protocolo da sessão de discursos colocando vergonhosamente dois antigos secretários-adjuntos do último Governo de Macau e a esposa de outro secretário-adjunto já falecido na quarta ou quinta fila e o português com mais anos de deputado na Assembleia Legislativa no fundo da plateia. Esta mesma Fundação Jorge Álvares, segundo fontes credíveis, pretende retirar o CCCM da esfera governamental e assumir a sua administração. De todo a rejeitar. Um dia chegará que a Fundação Jorge Álvares não terá mais dinheiro e lá se vai o Centro Científico e Cultural de Macau. Vergonhosamente Portugal não comemorou a data importante dos 25 anos da transferência de Macau. O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa enviou uma mensagem de um minuto para a sessão dos discursos. O primeiro-ministro, os seus ministros e secretários de Estado primaram pela ausência. Uma cerimónia que devia ter sido preparada com um ano de antecedência, com a coordenação da Fundação da Casa de Macau e onde a dignidade das relações sino-portuguesas fosse realçada de forma vibrante e amistosa, tal como ficará registado nos anais da História. Passaram 25 anos e a diferença de atitude de Portugal e da China é enorme. Esteve à vista de todos: Portugal abandonou os portugueses que vivem em Macau e nem sequer resolve um problema relacionado com a contratação de professores para a Escola Portuguesa de Macau. A China permitiu o grande desenvolvimento de Macau, permitiu a continuação de órgãos de comunicação social em língua portuguesa, permitiu que residentes de Macau adquirissem casa em Zhuhai e em outras cidades continuando a ser residentes de Macau e tudo tem feito para promover a Região Especial. Apenas um exemplo de grande significado político: enquanto que em Portugal se realizou a tristeza que vos descrevi, a China leva o seu Presidente Xi Jinping a Macau precisamente para comemorar a transferência do exercício de soberania de Macau de Portugal para a China, demonstrando que Macau nunca será esquecido pela mãe-pátria. Passaram 25 anos e a quase totalidade de todos nós já não assistiremos aos 50 anos. O importante é que vivamos com o nosso amor por Macau e sempre com a verdade acima de tudo em defesa de Macau e da sua população.