Vera Paz e Ricardo Moura, directores “D’As Entranhas”, sobre “Home Sweet Home”: “Mais ácido que doce”

A peça “Home Sweet Home”, uma produção da companhia d’As Entranhas, é apresentada hoje e sábado no Centro Cultural de Macau. Em entrevista ao HM, os directores artísticos Vera Paz e Ricardo Moura falam de um projecto sobre a mulher, a solidão, o espaço interior de cada um e os confrontos emocionais com que nos deparamos

 

Como surge o projecto “Home Sweet Home”, que tem uma grande ligação à literatura portuguesa, com textos de Adília Lopes, Maria do Rosário Pedreira ou Dulce Maria Cardoso?

Vera Paz (VP): Este espectáculo surgiu na pandemia, era para ter sido feito antes, a ideia surgiu quando estávamos todos confinados. Por várias razões o “Home Sweet Home” não foi executado na altura. É sobre uma mulher confinada em casa, que é uma casa prisão, um espaço íntimo e privado. Há uma transmutação desse universo [literário]. A escolha da Adília [Lopes] partiu sempre da obra dela, e depois temos a Dulce Maria Cardoso, que escreve sobre o lugar da mulher, com sentimentos e perdas, que é o que me interessa. [A peça] fecha um de três solos, que começa com o espectáculo “Medeia” [apresentado em 2020], depois “A Boda” [apresentado em 2021] e agora temos, em “Home Sweet Home” a completa solidão. A dramaturgia foi feita cozinhando os textos com estas obras, sendo uma ficção biográfica do meu universo como mulher e uma reconstrução das memórias da mulher na peça.

Ricardo Moura (RM): No meu caso fui confrontado com o texto quase no final. No processo de construção do texto, nas últimas semanas, temos transformado algumas coisas e feito algumas mudanças. Adorei o texto e gosto do universo das mulheres. É sempre um desafio tentar entrar na vossa cabeça e pensar como se podem fazer as coisas. Idealizei logo uma série de imagens que, na minha cabeça, faziam sentido.

VP: A mulher de “Home Sweet Home” é uma construção de várias. Mas mais do que uma peça sobre mulheres e o universo feminino, é uma peça sobre a configuração humana, o tempo, o que fica, o que vai e o que perdemos.

RM: Esta é uma mulher que está fechada numa casa, mas essa casa somos nós. É sobre o processo de mergulharmos em nós e perceber que, muitas vezes, o que acontece é que estamos fechados em nós próprios. Ainda é mais interessante porque desde 2020 temos vivido a solidão das pessoas, que tentam fugir para a frente, com recurso às redes sociais, do “wannabe”. Aqui, nesta peça, é o inverso, o tentar mergulhar na densidade de uma mulher e perceber como está fechada. Não queremos contar nenhuma história nem deixar uma mensagem, mas simplesmente contar um pedaço daquela pessoa. Esta peça é escrita por mulheres e feita por uma mulher, mas eu vejo esta questão de forma transversal, com homens e mulheres, pobres e ricos que passam por estas “prisões”. Às tantas, somos nós a nossa própria prisão.

VP: Nunca sabemos o que se passa no espaço íntimo de uma casa, mas no caso deste espectáculo é um espaço-prisão, do qual ela nunca consegue sair.

RM: Mas o não sair dali não é uma coisa física. Não consegue sair das suas memórias, coisas, daquilo que gostaria de ter sido e feito, mas que não aconteceu.

Tendo em conta o adiamento da apresentação de “Home Sweet Home” ao público, como foi a evolução do projecto?

VP: Na pandemia tínhamos bastantes restrições, não conseguia ter os actores ou os encenadores em Macau. Mas o distanciamento [temporal] foi bom, porque na altura estávamos muito em cima do que estava a acontecer, e assim conseguimos ter uma certa respiração. O texto foi alterado, transmutado e foi sendo acrescentado, porque tinha uma certa dinâmica que agora já não fazia tanto sentido. Às tantas, a voz desta mulher é a mistura das vozes das mulheres [dos textos de Adília Lopes, Dulce Maria Cardoso e Maria do Rosário Pedreira], mas não se trata de um texto clássico com princípio, meio e fim. Não se percebe o que é da Adília Lopes ou da Maria do Rosário Pedreira, por exemplo.

RM: Nos ensaios, no dia-a-dia, vamos alterando coisas. É o nosso processo de construção. Nós, na nossa companhia, temos uma linha de espectáculo que queremos desenvolver, e que se baseia na ideia de que antes de começar já começou, e quando termina é como se continuasse. Poderíamos continuar numa espécie de espiral.

“d’As Entranhas” é a única companhia a fazer teatro de matriz portuguesa em Macau. Quais têm sido os maiores desafios?

VP: É difícil. Somos a única companhia, ou associação, que, em Macau, faz teatro em português. Não traduzimos as peças porque o espectáculo não é só o texto, mas também a música. Há uma parte plástica muito marcada, é uma obra viva que é muito visual. O facto de assumidamente não traduzirmos as peças faz com que às vezes não seja [fácil]. A comunidade portuguesa em Macau é cada vez mais pequena, mas queremos continuar e vou continuar a insistir. Para este espectáculo integrámos dois actores da companhia em Portugal. Não é fácil a distância, e as pessoas têm as suas vidas. O Ricardo desenvolve projectos pontuais em Portugal, e tentamos manter um intercâmbio. Em 2018 fizemos uma parceria, mas com a pandemia ficámos num hiato imenso. Para o ano iremos continuar com dois projectos, com actores de Macau e de Portugal, e queremos manter este fio condutor.

RM: Os nossos espectáculos vivem muito de um lado mais plástico, com imagens e emoções e daquilo que os actores provocam em nós. Se não existisse texto também seria possível fazer o espectáculo. Às vezes, as pessoas têm medo de arriscar e vir ao espectáculo por causa da barreira linguística. Nos anos em que não pude vir a Macau mantivemos a parceria e desenvolvi uma coisa que nos interessa, que é a junção de culturas. Os projectos que a Vera pensa desenvolver no futuro próximo giram muito em torno disso, em juntar actores de cá e lá. Agrada-me perceber como, face a um tema que queremos tratar, as várias culturas se juntam. Gostaria de trabalhar por Macau num futuro próximo. O próximo espectáculo vai ter bastantes pessoas.

Como vai ser, em termos concretos?

VP: Programei, para o próximo ano, um dueto com dois actores de Portugal e um colectivo, e vai ser uma espécie de baile.

Como tem sido a ligação “d’As Entranhas” com os restantes grupos de teatro em Macau, de matriz chinesa?

VP: Não tenho forma de chegar aos grupos de teatro chineses. É difícil a barreira e estão fechados nas suas próprias coutadas. Não há associações profissionais, é tudo amador, não existe uma continuidade. Há cada vez mais grupos de teatro com experiência, mas não existem companhias profissionais em Macau. Temos a Comuna de Pedra, a única, creio, que se dedica inteiramente a projectos culturais. Depois temos o Conservatório, existem iniciativas, mas não há uma profissionalização do sector.

Este espectáculo terá algumas limitações em termos de idade. Alguma vez sentiram alguma pressão do Governo em relação aos conteúdos das peças que apresentam?

VP: Este ano, pela primeira vez, a Comissão de Classificação de Espectáculos [do Instituto Cultural] pediu-nos o texto e classificou a imagem do espectáculo, que está aconselhado a maiores de 18 anos e interdito a menores de 13. Mas isso tem mais a ver com a linguagem do que com a imagem. Não sinto pressão. O que sinto é que existe um maior cuidado da parte de quem financia para perceber o que de facto vai financiar.

Porquê o nome “Home Sweet Home”?

VP: Não é um lar nada agradável. O nome original do espectáculo era “Estar em Casa”, com referência à obra de Adília Lopes. Depois adaptei, mas na verdade é mais “Home Bitter Home”, mais ácido que doce. É um nome enganador, mas não tem de ser tudo explicativo e taxativo para as pessoas. Pensei na ideia de que, quando estamos sozinhos, só nós é que sabemos, e o nome remete para isso. Tem várias leituras, e nunca gostamos de dar uma só leitura, para permitir que as pessoas criem as suas próprias histórias.

RM: Para mim, o título surge como a ideia de “meu querido espaço”, o meu querido eu. O processo de isolamento das pessoas pode não ser mau e, às vezes, podemos perceber que temos uma fase boa em que somos nós próprios.

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