O papel da história

(Continuação)

Mas cada ciência, a começar pela geometria e pelas ciências naturais, necessita de uma higiene histórico-filológica própria, quer no que respeita aos contextos sociais que determinaram essa vertente particular do pensamento e da investigação, quer no que respeita ao desenvolvimento dialéctico do seu conhecimento específico, segundo a dicotomia entre história “externa” e “interna” intuída em 1668 por Leibniz a propósito da história do direito. Esta tarefa não pode ser realizada de forma interdisciplinar, pois não se trata de comparar as duas perspectivas, histórica e científica, em paralelo, mas de historicizar a ciência e, assim, dominar seriamente ambas. Isto requer a formação de disciplinas especiais, como a história do direito e de outras ciências. Em si mesmo, o procedimento científico não é refractário à historicização e os textos populares sobre matemática, física e biologia nunca deixam de ilustrar os caminhos internos e externos que conduziram aos conhecimentos e problemas actuais.

A maior resistência vem, no entanto, das ciências sociais, porque aqui vigora o princípio “protestante” e democrático do “livre exame”. Qualquer pessoa pode folhear o “Grande Livro da História” para retirar as inspirações e as lições de que necessita. E se a história, como dizia Cícero, é sobretudo “narração”, e se os historiadores são, na sua maioria, pedantes e desleixados, é preferível que a história seja tratada por profissionais da comunicação. O mesmo se aplica à literatura estratégica e geopolítica, uma combinação, mais eclética do que interdisciplinar, de diferentes saberes e perspectivas, que conhecemos e praticamos hoje em dia, sobretudo na declinação particular impressa pela não-ficção geo-imperialista e pelo jornalismo estratégico-militar do século britânico. O próprio termo “estudos estratégicos” foi formalizado em 1958 com a criação, em Londres, do Instituto Internacional para os Estudos Estatégicos (IISS), seguido em 1962 pela criação, em Washington, do similar Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais similar (CSIS) da Universidade de Georgetown.

Abordagens que na Europa da Guerra Fria quase não se ouvia falar nos círculos militares e diplomáticos, mas que depois de 1992 também se difundiram entre nós nos meios de comunicação social, nos conselhos governamentais e na cultura militar, em resultado tanto do terceiro-mundismo neoconservador como das guerras neovitorianas do pós-Guerra Fria. E, com quarenta anos de atraso em relação às universidades americanas, também as nossas europeias incorporaram cursos de geopolítica e de estudos estratégicos, enquadrando-os no domínio da ciência política, como uma especialização das “relações internacionais” e, em particular, dos “estudos de segurança”. Mas esta tentativa de anexar, ou melhor, de subjugar a não-ficção “geopolítica” e a jurisprudência (política, estratégica, económica, género, etc.) à ciência política acabou por distorcer e empobrecer ambas.

Com todas as devidas excepções, o efeito prático da proliferação de cursos académicos de estratégia e geopolítica tem sido o de encorajar a ideia de que, para abordar questões que intersectam uma pluralidade de competências, é suficiente copiar e replicar hibridações anteriores. Assim, tendo afastado a transferência e a modéstia, muita da produção autorreferencial da estratégia e da geopolítica parece ser uma espécie de “revolta” que, ao grito de “viva a anarquia! “impecou os filósofos políticos e especialistas em geoestratégia desde o século XVII até ao presente, e inflamou livremente os tradutores de Sunzi a Clausewitz, mastigando os seus fetiches e cuspindo as suas frases. O passo seguinte foi a anexação bárbara da ciência política, da história e do direito (também da economia e da sociologia, mas por estas últimas devemos sentir menos compaixão) por esta sub-literatura. Com cenas revoltantes de pilhagem dignas de soldados putinianos, despojos incomensuráveis de conceitos descontextualizados em vez de máquinas de lavar desmontadas.

E assim se sucedem as saraivadas de exemplos históricos, analogias e anacronismos, arrastados, talvez das reminiscências inconscientes dos peplums de Hollywood, na lixeira de escavações historiográficas anteriores. Aquilo a que o falecido general Poirier chama, com cândido orgulho, a sua “biblioteca estratégica universal” e a que um filólogo crítico contemporâneo de Políbio chamou uma “floresta sem caminhos”, acrescentando que era precisamente a tarefa titânica da historiografia pô-la em ordem. Mas mesmo nisto não há nada de novo. Quando a Santa Aliança liberal que administra o Ocidente há trinta anos se espelha na síntese ateniense entre democracia e imperialismo, repete, sem querer, uma das analogias históricas que sustentaram o triunfalismo e a boa consciência do século britânico. A história é sempre história contemporânea, mas não no sentido que Benedetto Croce pretendia, mas sim no da crítica de Nietzsche (Segunda Actualidade) à história monumental, isto é, ao culto pedagógico e tendencioso de uma determinada memória. Como ensina Santo Agostinho sobre o tempo, a história é também experiência subjectiva, não conhecimento.

Nada pode ser descartado dela, nem mesmo a pilhagem bárbara da estrategoteca. Mesmo o que é inconsciente não acontece por acaso, tudo, todos os aspectos contêm um sentido a ser revelado. Esta é talvez a semente de sabedoria contida no “passado presente” de Gramsci e na “profecia sobre o passado” cunhada por Aristóteles para definir o rito catártico de Epiménides e que Santo Mazzarino erigiu como emblema do trabalho historiográfico. A única história que posso afirmar conscientemente conhecer, pelo menos em parte, é a da mudança que o trabalho historiográfico lentamente produziu em mim, e a que por vezes sou vangloriosamente tentado a chamar “consciência histórica”. Um sentido simultaneamente de total estranheza e de total partilha, de dor e de esperança infinitas, de ver não só o passado no presente, mas o presente como se já fosse passado.

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