Stultifera Navis

Designar a loucura não é tarefa fácil, e muito menos está isenta de preconceito, a sua lata complexidade que ao longo do tempo também foi mudando, terá de nós humanos os tratados mais apaixonantes de que há memória. Falar dela é mencionar o parente comum que nos une, daí que toda a sua soberania que alguns ilustram, mais não seja que um alto grau da sua consciência. Parece quase um paradoxo, mas sim: a loucura tem consciência de si mesma.

Reportando-nos a exemplos simples, aqueles que sempre nos parecem os mais lúcidos, tempo houve em que os loucos varridos não tinham nem hospitais, nem prisões, e a sociedade embarcava-os para lugares remotos, mas não muito distante ele se encontra de um país que só tinha “embarcadiços”: poder-se-á afirmar que eram os que estavam junto à costa, mas a costa tem também as costas largas, e o que se viu realmente é que se foram de facto quase todos nos embarques, ficando os mais bisonhos em terra firme produzindo de forma metódica graus de loucura que somente não foram navegáveis, havendo ainda uma estranha ideia que o movimento de um barco apazigua este mal. Que por estas e outras bandas, um louco era só um louco, e não um relapso, um judeu, um mouro, um cigano…era essa outra coisa, tendo a sociedade mansamente ordenada visto em muitos deles elos sagrados. Estavam fora do baralho, que hoje semanticamente apelidamos de ” caixa”.

Todos nós temos ainda muito presente (mesmo que seja antigo) o monumental filme de Fellini – «E la nave va» – de sinopse rocambolesca, cenários eloquentes, onde o espanto de uma ópera flutuante nos segue ainda ao fundo como a mais alta instância da capacidade humana para gerar encanto, e de um romance anterior de Kaherine Anne Porter «A Nave dos Loucos», ou seja, nós reflectimos nestas capacidades artisticamente belas, seus enredos e discursos, que ninguém que não seja imensamente criativo poderá analisar, mas quando nos deparamos com Bosch, bem lá ao fundo deste tempo, conseguimos resolver de uma só vez a subliminar ofensa que a uns destrói e a muitos enaltece. A mais bonita sensação vem-nos ainda de que não falamos de uma Arca, mas de coisas mais tangíveis, como navios, composições flutuantes, barcas, com seres que enfrentam o martírio risível de se verem confinados a si mesmos. O plano de fuga só se deu através de um ostracismo caritativo que a partir do Dilúvio nos faz parecer a todos doidos.

A mudança de percepção acabará por nos influenciar de forma esmagadora «Le bateu ivre» onde Rimbaud nos dá outra perspectiva daquilo que pode ser somente um estado de consciência alterado, e mesmo assim nos convida a entrar em sua matéria poética como taumaturgos. Esta experiência parece contudo quase imperceptível, que todos entrámos nos «Paraísos Artificiais» que pouco ou nada nos dizem da loucura total que habita cada um.

Nostalgicamente nos dirá Foucault: “o barco da loucura não navega mais o rio, ficará atracado, retido e seguro, no hospital. Esta é a grande mudança: o embarque, a partir de então, será para um único lugar: o internamento. A desordem da nau dos loucos, encontrará o frio ordenamento do asilo”.

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