China: Uma civilização sem mitos de criação?

Por André Bueno

Introdução

Existiria alguma civilização que não teria se preocupado em criar e preservar suas narrativas míticas de origem? A pergunta parece insólita. Quaisquer coletâneas de narrativas religiosas nos mostram, após uma ampla e segura pesquisa, que praticamente todas as culturas antigas possuíram seus mitos criadores. (Eliade, 1978).

De fato, tornou-se quase natural, para nós, acreditar que todas as sociedades têm um ou mais mitos fundadores. Isso se deve a alguns fatores fundamentais: as investigações no campo da História das Religiões nos mostram que a preocupação com tradições de cosmogênese são praticamente um padrão no pensamento humano, desde os tempos mais antigos. (Eliade, 1991)

Dois elementos contribuiriam para reforçar essa preocupação: primeiramente, a Filosofia Grega, em busca das origens da natureza, dedicou-se a estudar o início de tudo (Arché ἀρχή), contrapondo-se aos mitos de origem, e defendendo, do modo geral, que o funcionamento do universo só poderia se dar por meio de uma única lógica fundamental; posteriormente, o Cristianismo defenderia também uma concepção monogônica, fundamentada na criação divina, que consolidava a ideia de uma fundação singular – e, ainda que essa concepção pudesse ser considerada como “mítica”, seu estabelecimento gradual, ao longo da história, tornou-a um ponto crucial em qualquer investigação científica até um período recente de nossa história. Assim, podemos dizer que o estudo das práticas religiosas de qualquer civilização, em seus amplos aspectos, pressupõe a existência de alguma crença de criação ou origem. E nesse caso específico, a China novamente nos apresenta problemas notáveis e de difícil solução.

Desde o século 16, quando os missionários cristãos começaram a aportar na China, notaram nas documentações historiográficas e canônicas a ausência de mitos de criação. Algumas tradições, esparsas, estavam presentes no folclore e nas práticas do Daoísmo, sem que representassem uma crença realmente consolidada de origem mítica. Além disso, o rastreio desses mesmos mitos mostrava que eles eram bastante tardios em relação ao início histórico da civilização chinesa. A literatura intelectual, contudo, não abordava esse aspecto – considerado tão fundamental para o pensamento ocidental, mas pouco relevante para os chineses.

Os letrados (Ru 儒), especialistas em história, filosofia e ciências, bocejavam quando questionados sobre essas tradições de origem, que eles mesmos consideravam irreais. De fato, as narrativas mais antigas, preservadas em documentos como o Yijing 易經 (Tratado das Mutações), o Shujing 書經 (Tratado dos Livros) e o Liji 禮記 (Memórias Culturais), que tratam das eras mais distantes da cronologia chinesa, repetem sempre uma descrição humanizada do passado chinês. O povo vivia em situação similar à que descrevemos como “pré-histórica”, sem qualquer referência a uma origem anterior. Quando demandados sobre isso, os acadêmicos chineses davam duas respostas distintas: uma de caráter prático, afirmava que nenhum ser humano estaria presente nessa origem, e por isso, não poderia saber como ela se deu; a outra, de cunho científico e especulativo, propunha não uma cosmogonia, mas sim uma cosmologia, para explicar as origens e a criação do universo.

Isso nos lançaria diante de um caso único na humanidade: seria a cultura chinesa desprovida de mitos de criação? O problema se desdobra em vários âmbitos, quer sejam: a existência de uma exceção reveladora quanto à sistematização da história das religiões; uma quebra na insistência, essencialmente Ocidental, de ler o mundo apenas por seu prisma, de forma exclusiva; por outro lado, a constatação do pouco conhecimento que temos da história chinesa, e das próprias visões que os chineses têm sobre essa questão.

O que examinaremos em nosso texto, portanto, é o debate, que ainda se desenvolve, sobre o problema da China ter ou não seus mitos de criação. Para isso, examinaremos brevemente os discursos sinológicos contra ou a favor dos mitos criadores na China antiga, e seus problemas; em seguida, analisaremos algumas passagens documentais chinesas, que ilustram esse debate; por fim, quais as considerações que os próprios chineses fazem sobre isso, através da análise de algumas produções históricas chinesas. Como contexto temporal, definiremos o período limite do século +3, quando teria surgido um primeiro mito de criação nas fontes chinesas, como veremos adiante.

Uma definição conceitual

Antes de começarmos nossa investigação, precisamos, porém, definir alguns termos básicos. Do que estamos a tratar quando falamos de mitos chineses? Podemos aceitar que os pensadores da China antiga lidavam com cosmogonias ou cosmologias? Esses dois conceitos são fundamentais, e a maneira – sutil – como eles são aplicados no contexto sinológico revelam, para nós, alguns dos problemas que precisaremos enfrentar.

Tomo como ponto de partida as definições de cosmogonia e cosmologia de Abbagnano (2007, p.226). Cosmogonia (κοσμογονία) seria o “Mito ou doutrina referente à origem do mundo”, ou seja: uma proposta de compreensão acerca das origens calcada em tradições, orais ou escritas, cujo fundamento seria essencialmente religioso. Como característica básica da cosmogonia, o critério para sua aceitação era a fé no mito, ele próprio estruturador de sua lógica interna.

Já a cosmologia (κοσμολογία) seria uma tentativa racional de compreender as origens e o funcionamento do universo, desligando-se (a princípio) da crença dogmática e religiosa. A cosmologia tentaria explicar o mundo pelo raciocínio baseado na observação dos fenômenos da natureza, buscando sistematizar suas leis e seus princípios. Isso implica dizer que a cosmologia pode negar as tradições míticas, se contesta as origens do universo; todavia, se o questionamento cosmológico se circunscreve a tentar compreender a ecologia da natureza (desligando-se da questão temporal), ela poderia aceitar a presença dos deuses na fundação do cosmo. Por fim, a abordagem cosmológica pode mesmo supor que os deuses existiriam, desde que submetidos a uma ordem natural, passível de uma explicação racional. No caso específico dos gregos pré-socráticos, a cosmologia teria sido a primeira abordagem contra as tradições míticas, construindo a perspectiva investigativa das ciências, e propondo sistemas de interpretação da natureza (Bornheim, 1998).

E como essas definições se aplicariam ao caso chinês? Como veremos, a questão é que as narrativas que consideramos como cosmogônicas estão praticamente ausentes da antiga literatura chinesa, e as evidências materiais apresentam-nos os cultos primitivos, mas não mitos de origem. Por outro lado, o mais antigo texto chinês conhecido – o Yijing – é o primeiro tratado de ciências da China antiga, caracterizando um complexo sistema de cosmologia criativa. Nele, é proposto um sistema de interpretação da natureza, codificado em símbolos e esquemas matemáticos, cujas atribuições equivaleriam a propriedades elementais da natureza. Isso poderia qualificá-lo como um texto cosmológico; mas a relutância dos sinólogos, calcada em muito em preconceitos culturais e religiosos, costumeiramente classificou o livro como “místico”, atribuindo-lhe uma imagem cosmogônica. Essa visão era corroborada pelos próprios chineses, que vulgarmente usavam o livro como oráculo; por entender que ele explicava racionalmente a natureza, então, o desenrolar dos acontecimentos e das coisas poderia ser compreendido, em suas leis e dinâmica, pela consulta ao livro! Notemos, pois, que o uso das conotações “cosmogonia” e “cosmologia” pode receber caracteres pejorativos ou deturpados, se não houver cuidado com sua utilização. Utilizaremos esses termos, aqui, buscando aproximá-los o máximo possível da interpretação que os próprios chineses dariam aos seus textos, segundo suas tradições historiográficas. Isso implica, claro, na presença de controvérsias e debates acerca dessas mesmas interpretações: no entanto, veremos que as discussões sobre a mitologia e a cosmologia chinesa continuam a ser atravessados pelos mais diversos preconceitos ou projeções, dificultando uma compreensão mais ampla sobre as possibilidades do caso chinês.

(continua)

André Bueno escreve em Português do Brasil

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