RAEM, 25 anos | Heitor Romana revela planos para evacuar portugueses

Heitor Romana foi durante nove anos assessor do Governador Rocha Vieira. Numa palestra no Centro Científico e Cultural de Macau recordou os tempos da transição e a preparação de planos para evacuar portugueses em caso de turbulência política na China e na região

 

Antes da assinatura da Declaração Conjunta, em 1987, Heitor Barras Romana, professor catedrático do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, foi para Macau a trabalhar numa unidade definidora de estratégias em matéria de segurança para o território, ainda durante o Governo de Carlos Melancia.

Nessa fase chegaram a ser preparados planos para a retirada dos nacionais portugueses a residir em Macau caso se verificasse, na China e na região, um cenário de turbulência política. A confissão foi feita no âmbito da conferência “Contributos para uma análise estratégica do processo de transição de Macau”, proferida no Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM), no passado dia 19 de Setembro, nas semanais “Conversas Sábias”.

As autoridades portuguesas pretendiam “sair a bem” do território e chegaram a ser elaborados “planos de contingência em relação a cenários em que se tivesse de retirar os portugueses de Macau”. Incluíam-se, assim, os portugueses e seus descendentes bem como os detentores de nacionalidade portuguesa cujo local de nascimento tivesse sido Macau até 1981.

Tal iria ocorrer face a “um cenário de convulsão interna na China, em que se alterasse a ordem de equilíbrios e relações diplomáticas com Portugal”.

“Era essa a perspectiva que se tinha e que não tinha nada de estratégico, mas situacional. Era essa a abordagem que se fazia de Macau. Ainda estava bem presente a memória do ‘1,2,3’, e se houvesse uma convulsão regional teriam de se antecipar cenários, de forma a retirar em segurança os portugueses que estivessem no território”, descreveu.

Segundo Heitor Romana, estava em causa os últimos acontecimentos políticos na China, com o episódio de Tiananmen, em 1989, e a queda da URSS. “As atenções estavam viradas para aquilo que veio a acontecer em 1989, com o desmembramento da URSS e todo o sistema. Do ponto de vista geopolítico, a China não entrava no jogo das preocupações que Portugal tinha obrigação de acompanhar em determinados sectores. No essencial, Macau não era tido no jogo dos interesses geoestratégicos de Portugal, mas havia a vontade de uma boa resolução quando tivesse de ocorrer a saída de Portugal de Macau e o fim da sua administração.”

A China vinha, desde 1978, vivendo o período de Reforma e Abertura, mas pensava-se que “o desmembramento da URSS poderia contaminar a realidade do sistema político e ideológico da China”. “Essa era uma das teses defendida não apenas em Portugal, mas por parte de analistas americanos e ingleses. Pensava-se que o fim da URSS iria contaminar o regime político chinês e levar à queda da República Popular da China”, lembrou, algo que não aconteceu, como a história veio a mostrar.

O trabalho de análise em matéria de segurança do académico foi realizado quando tinha cerca de 30 anos, e foi por iniciativa de Carlos Melancia que se criou a “unidade de análise geoestratégica sobre Macau e China que também envolvia a ‘questão de Macau’, e já era uma questão política e diplomática”. Nesse sentido, frisou, “era importante perceber o que podia acontecer na China que pudesse afectar ou acelerar a saída [dos portugueses de Macau]”.

“O trauma” do Império

Heitor Romana recordou também que o desejo de “sair bem” de Macau, por parte das autoridades portuguesas, acarretava consigo o fantasma da descolonização em 1975, no rescaldo da Guerra Colonial.

“Veio-se a perceber mais tarde, no quadro das relações bilaterais, e mais alargado ao multilateralismo e política internacional no seu todo, que ‘sair bem’ tinha como pano de fundo o trauma da descolonização, em relação à forma apressada como Portugal tinha saído dos territórios ultramarinos em 1975”, apontou. O responsável descreveu “o medo” que existia em relação “àquilo que ainda faltava ‘descolonizar’, nomeadamente Macau”, sem esquecer os episódios da perda da Índia portuguesa, em 1961, ou de Timor.

“Havia na memória colectiva a ideia de que a saída de Portugal dos seus territórios não tinha corrido bem por variadas razões. A percepção era de que, em Macau, não havia razões para que corresse bem. A visão era muito pessimista.”

Em 1989, após os acontecimentos de Tiananmen, Carlos Melancia vai a Pequim reunir com as autoridades chinesas, tendo sido “o primeiro representante de um país europeu a ir a Pequim depois desse episódio”.

Segundo o académico, nos anos 90 a China vivia “um processo de ajustamento político e ideológico que teve repercussões não no processo de transição [de Macau], mas sim na natureza desse processo”, pois no seio do partido havia uma “luta surda entre sectores mais reformistas e ortodoxos”.

O conceito “Um País, Dois Sistemas” tinha sido recentemente anunciado a pensar em Taiwan, e o primeiro-ministro chinês que assinou a Declaração Conjunta, Zhao Ziyang, acabou por “cair em desgraça três anos mais tarde”, pois, na visão de Heitor Romana, tinha sido secretário-geral do partido em Cantão e era “visto com desconfiança”. Isto porque “historicamente Cantão tinha tido relações privilegiadas com ocidentais, diga-se Portugal e Reino Unido, e essa relação próxima, comercial, política e de miscigenação gerava dúvidas quanto à lealdade desses dirigentes face aos princípios basilares do partido. O problema de Zhao Ziyang residia nesse facto”, afirmou.

Melancia queixa-se

Ainda relativamente ao período de governação de Carlos Melancia, falecido em Outubro de 2022, Heitor Romana lembrou uma reunião em que este lhe disse existirem “forças” que o queriam prejudicar.

“Carlos Melancia disse-me que havia [essas] forças, mas não vou dizer nomes. Fiquei espantado com a franqueza dele, pois disse-me que o problema que tinha não era com a China, mas sim com Portugal e com aqueles que colaboravam consigo no gabinete.”

Heitor Romana considera que a transição de Macau estava então envolvida numa teia difícil de jogos e tramas políticos. “Aí percebi que Portugal e os portugueses, Macau e a sua governação, estavam envolvidos numa trama muito complicada que poderia levar a resultados muito negativos para os interesses estratégicos de Portugal, incluindo as relações bilaterais e interesses da salvaguarda daquilo que, mais tarde, veio a ser identificado como a identidade de Macau e a sua singularidade.”

Rocha Vieira, o último

Entre 1990 e 1999 Heitor Romana foi assessor de Rocha Vieira, homem escolhido para ser “o último Governador de Macau” no sentido de assegurar a estabilidade necessária ao território. “Mário Soares [à época Presidente da República] tinha uma preocupação muito grande de que o próximo Governador fosse o último e que garantisse estabilidade. Já não era só a questão de irmos embora a bem, mas havia o possível efeito sistémico dos problemas gerados à volta de Macau”, e que se centravam em “jogos político-partidários que estavam muito acesos”. Havia, no fundo “questões ideológicas que também envolviam o aspecto político-partidário, pois o Governo [em Portugal, liderado por Cavaco Silva] era diferente da matriz ideológica do Presidente da República”, estando criadas “todas as condições para que não corresse bem” a transição de Macau.

Vasco Rocha Vieira chegou a Macau numa fase de “vulnerabilidade e fragilidade política”, tendo gerado “uma enorme expectativa” para que “pudesse pôr ordem no território”. O novo Governador acabou por assumir, segundo o orador, “uma postura imune a todos esses processos, o que na altura suscitou muitas críticas, mas que foi eficaz”.

Rocha Vieira ganhou “um espaço próprio, ajudando a definir muito bem o processo de transição até 1999 e depois”. “As autoridades chinesas perceberam que ele tinha uma personalidade muito própria e não podiam deixar de ser sensíveis nessa situação de liderança. Viam no Governador de Macau esse interlocutor desejado para que o processo [de transição] corresse bem”, disse ainda.

Heitor Romana lembrou que, no processo de transição, procurou definir-se ainda a ideia de identidade própria de Macau. “Na fase final da presença portuguesa em Macau foi visível que o Governador tinha a missão da defesa e salvaguarda dos interesses de Portugal, e isso passava muito pela defesa da identidade de Macau. Era esse o elemento diferenciador, comparando com Hong Kong ou Taiwan.”

Assim, a Lei Básica de Macau foi “obrigada a incorporar, de certa forma, esta visão da especificidade de Macau”. “Há uma estratégia para Macau, de Portugal, definida pelo Governador e a sua equipa, de que era importante ter uma identidade própria. O mito refundador de Macau está presente no papel do macaense, sendo um activo estratégico histórico que vai ser o eixo daquilo que é a natureza específica de Macau”, rematou.

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