Crédito malparado | Analistas alertam para perigo económico

O crédito malparado tem registado números preocupantes, sobretudo o das PME que quase quadruplicou no primeiro semestre deste ano. Dois economistas ouvidos pelo HM alertam para os perigos que o fenómeno pode acarretar para a banca e a economia, destacando a desigualdade da recuperação económica

 

A banca empresta, mas os empréstimos demoram a ser pagos. Tem sido assim em Macau, onde se tem verificado uma subida vertiginosa do crédito malparado, sobretudo nas pequenas e médias empresas (PME) fora da economia ligada ao jogo.

Dois economistas contactados pelo HM alertam para o crescimento exponencial do crédito malparado nos últimos meses, revelador de desigualdades económicas e da recuperação económica desequilibrada desde a pandemia.

“Números recentemente divulgados pela Autoridade Monetária de Macau (AMCM) mostram que o crédito malparado, no sector bancário local, atingiu quase 50 mil milhões de patacas, constituindo um novo mau recorde na RAEM nos últimos 20 anos”, descreveu José Félix Pontes, economista que durante muitos anos esteve ligado à AMCM.

O responsável diz que o valor de 50 mil milhões de patacas “excede em 12,4 vezes o montante respeitante a Janeiro de 2022, ou seja, na pandemia, quando se ficava por apenas 3,7 mil milhões de patacas”. Além disso, o crédito malparado atingiu, em Junho deste ano, “a 16ª subida consecutiva e, no mesmo período, o rácio ‘crédito malparado / total dose empréstimos’ saltou de 0,3 para 4,6 por cento”.

“Estamos, sem dúvida, perante uma situação que pode afectar, de forma adversa, o desenvolvimento da economia de Macau, sendo previsível que os bancos afectados passem a conceder menos empréstimos, com implicações negativas no investimento privado e no consumo dos particulares”, disse Félix Pontes, destacando que se pode mesmo verificar “uma contracção económica”.

O economista considera que este cenário “deveria constituir motivo de preocupação para os nossos governantes” e frisou que “traduz a fragilidade dos sectores não relacionados com a indústria do jogo”.

O alerta é mais notório nas PME, segmento onde o crédito malparado subiu 295 por cento em termos anuais no primeiro semestre deste ano, quase quadruplicando.

PIB real que está aquém

Já o economista Albano Martins assume uma postura menos pessimista, dizendo que “o crescimento do rácio [do crédito malparado] não é um problema de maior para o sistema económico, que é pequeno”.

Assim, Albano Martins deposita as atenções no facto de os valores reais do Produto Interno Bruto (PIB) não estarem a registar uma evolução positiva desde a pandemia, estimando um valor do PIB, para este ano, semelhante a dados registados anteriormente.

“Não estaria muito preocupado com o crédito, mas sim com o crescimento saudável da economia. Se virmos os valores do PIB deste ano estará muito próximo dos valores reais do PIB de há três ou quatro anos, ou seja, antes da pandemia. Estamos com valores muito pequenos comparado com o que seria normal. O PIB, em 2019, era de 445 mil milhões de patacas, e em 2023 era de apenas 356 mil milhões. No final deste ano estará próximo desse valor”, declarou. Assim sendo, entende que “a economia deveria ter um mecanismo saudável de crescimento e não um motor que hoje dispara e amanhã desacelera”.

Ter um “mecanismo saudável” significa “ser razoavelmente racional”, sendo que a lenta recuperação dos valores do PIB real, se deve à pandemia. “No que respeita aos valores reais do PIB, e não em termos monetários, não chegaram ainda a uma recuperação do que se registou antes de 2020. Macau tem uma economia fortemente dependente de factores externos e que é altamente vulnerável”, explicou. Assim, segundo Albano Martins, “sempre que há um abalo do exterior este prolonga-se por vários anos”.

Notórias desigualdades

Apesar dos dados do crédito malparado, Félix Pontes entende que há boas notícias no meio deste cenário, pois “o problema não está generalizado na banca, na medida em que apenas alguns bancos a operarem em Macau registam um crédito malparado anormal”.

Assim, “essas instituições devem melhorar, e de forma substancial, a sua política de concessão de empréstimos, conferindo um maior rigor à análise financeira dos clientes que pretendam empréstimos e uma atenção acrescida à monitorização destes e à gestão das garantias dadas”.

O economista sugere uma “intervenção proactiva quando surgem os primeiros sinais de alerta” perante o incumprimento no pagamento de empréstimos, além de que os bancos devem “aperfeiçoar as práticas na gestão de riscos”. No tocante à AMCM, deve “impor testes de resistência aos bancos e efectuar uma supervisão mais efectiva”.

Há, de facto, uma recuperação da economia, explica Félix Pontes, “devido à retoma da entrada de milhões de turistas da China, pelo que a indústria do jogo e sectores relacionados têm melhorado”. “Como a economia de Macau está a recuperar, parece estranho, e até injustificável, que a banca local se defronte com o crescimento desmesurado do crédito malparado, na medida em que este influencia o desenvolvimento do sector bancário”, acrescentou.

A explicação para este cenário reside na desigualdade de desenvolvimento dos diversos sectores de actividade económica. Há, assim, “a outra face da moeda, que é a evolução não uniforme” dos sectores fora da área do jogo.

É aí que se pode ver a verdadeira crise além dos turistas e das fichas de jogo a rolar, verificando-se “o encerramento de centenas de PME e o incumprimento, cada vez maior, no pagamento dos empréstimos que tem afectado negativamente os resultados dos bancos”.

Félix Pontes recorda que, no primeiro trimestre deste ano, por exemplo, das 30 instituições bancárias com contas publicadas, “nove bancos, 30 por cento do total, registaram prejuízos, enquanto 21 bancos, 70 por cento do total, tiveram redução nos lucros, quando comparado com o mesmo período de 2023”. Além disso, metade dos bancos, 15, “viram os activos diminuir no espaço de um ano, ou seja, entre Março de 2023 e Março de 2024”.

Impacto do imobiliário

Estes dados demonstram “que a rentabilidade dos bancos se deteriorou bastante, podendo esta tendência manter-se a curto prazo devido à frágil situação do mercado imobiliário na China”.

O país, que nos últimos tempos tem enfrentado graves problemas no sector imobiliário, nomeadamente com o grupo Evergrande, recebeu muitos dos empréstimos concedidos por bancos de Macau, pois “mais de 67 por cento do crédito malparado é de não residentes de Macau”.

Assim, Félix Pontes destaca que os restantes sectores de actividade locais, como o retalho, por exemplo, têm tido “um ritmo muito diferenciado de desenvolvimento” em relação ao jogo, por exemplo, registando “grande influência no consumo interno, agravado pela competição de Zhuhai, pois milhares de residentes de Macau adquirem lá os seus produtos, muito mais baratos e onde existe maior variedade”.

Tal cenário tem trazido grandes problemas ao comércio na zona norte da península, com comerciantes a queixarem-se da fraca procura desde que passou a ser mais fácil levar o carro até ao outro lado da fronteira.

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