Assange e Costa

MEU caro Julian Assange, não terás nunca o meu perdão e é com o coração partido que te digo isto. Tal como os biltres que te prenderam e te mantiveram tantos anos no limbo da vida, cumprindo as normas que os regem, também tu, neste acordo, te declaraste culpado, em vez de satisfeito, por teres exercido o teu múnus com coragem, dignidade e consciência dos riscos a correr.

Deixa-me dizer-te que a Humanidade não deve precisar de mártires para subsistir e evoluir, mas não pode prescindir de os ter e de os honrar, sempre que as condições concretas os imponham, como é o teu caso.

Os biltres que agora chegaram a acordo contigo parecem arrependidos de serem o que são. São biltres que se arrependem de ter feito o que o seu ofício determina que façam, covardes biltres exercendo o arrependimento como salvaguarda da dignidade que lhes falta. E tu, ao chegares a acordo como eles, absolve-los, isto é, condescendes deploravelmente em abdicar da razão que tens – o teu dever de ofício foi cumprido, ao investigares o que suspeitavas existir, e, perante as certezas confirmadas, publicaste as tuas descobertas.

Também sou jornalista, também estive preso até ao dia 26 de Abril de 1974 e também não me perdoo a mim o não ter compreendido e, logo, perdoado o que idênticos biltres me fizeram, precisando agora da tua atitude para perceber que estive do lado oposto ao dos meus biltres, a fazer o que me parecia necessário, cumprindo o meu dever cívico e profissional, assim como eles julgavam necessário o seu ofício e aceitavam as respectivas regras, cumprindo-as contra mim, sem alguma vez me haverem perdoado, até quando, julgo eu, pude vingar-me e não o fiz.

Não abdico de pensar que, ao oferecerem-te o acordo para a libertação, te devias ter declarado de consciência tranquila e disposto a pagar o que fosse preciso para não te igualares aos biltres em atitude de concessão.

É claro que compreendo o teu cansaço na desgraça e o sofrimento dos teus que queres aliviar, mas nunca te aplaudirei por assumires culpas que não tinhas, embora também eu sofra só de saber isto e perceber que o mundo esteja como está, só porque foi, ao longo dos séculos, o terreno de combate entre biltres necessários e necessários heróis.

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CONTEMPLA o rosto afável da serpente, enquanto escutas o verso mais longo de Walt Witman e zune aos teus ouvidos o vento podre das planuras estéreis. Repara no brilho húmido da sua língua bífida como a luz dos faróis noturnos, trémula e apontada aos teus lábios entreabertos de espanto. Também ondulam, à volta dos seus olhos, amáveis sombras agradecidas aos odores que emanam dos teus sonhos. As pupilas diamantinas da imensa cobra que te mede com minuciosa avaliação, para saber como acolher-te na frialdade do seu sangue ofídico, são gotas de sol incansável, eterno, comovido. É sempre assim o amanhecer da ira. Porque as guerras não param e são incontáveis as pessoas ao alcance da morte.

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LAVEI os olhos com vinho branco, na noite passada, porque me lembrei de uma certa manhã em Genebra, quando tive de apanhar o comboio, a caminho de Paris, e porque, de facto, sem ter de me levantar do cadeirão, diante do mísero final da partida Portugal-Geórgia, era esse o líquido inglório de que restavam algumas gotas no fundo do copo que estava mesmo ao alcance do meu braço.

Nesses recordados tempos remotos de Genebra, quando ainda eram poucos os portugueses que iam para a Suíça trabalhar, a taxista, estranhando a minha pronúncia e mirando o meu bigode de circunstância, perguntou-me se eu era georgiano e a verdade é que eu não me ofendi, como certamente aconteceria se essa pergunta me fosse colocada agora ou há umas horas atrás.

Note-se que esta manhã, no meu café do costume, o ambiente era lutuoso. Só vi semblantes carrancudos e havia ácido intrínseco em todas as conversas. Nos copos apenas cerveja, até ao momento em que um fulano meu desconhecido foi ao balcão e pediu um copo de tinto.

Este súbito desalinhado, após avaliar o panorama à sua volta, ficou de pé, a beber a sua exceção. Sozinho, porque não havia mesas vagas. Se fosse vinho branco, o mais certo era eu convidá-lo para a minha mesa, mas preferi não correr o risco de atiçar todos os olhos contra mim.

Como alguém diria, tinto sim, mas só na hora certa.

*

ANTÓNIO Costa foi escolhido pelos altos poderes formais de Bruxelas para suceder, na presidência do Conselho Europeu, ao sacristão neoliberal francófono Charles Michel que antes fora o primeiro-ministro da Bélgica.

A escolha de qualquer destes dois atletas estava coroada de vitória ainda antes do tiro da partida, porque ambos dispunham do principal trunfo para as jogadas em perspetiva – o de pertencerem, pela sua irrelevância e pelo consequente desprezo dos vários valetes do baralho, ao grupo dos impotentes excelentíssimos, os utilitários de circunstância que nem sequer tentariam levar interesses próprios para as decisões do Conselho.

Com as últimas girândolas do S. João ainda a estralejar no céu lusitano, é de prever que o foguetório do orgulho nacional e do homérico triunfo da nossa pequenez possam ficar por mais uma semana ou duas a dar o tom aos arraiais noturnos e diurnos dos areópagos políticos do centrão e à agenda inebriante dos meios de comunicação social.

Gloria in excelsis, Costa, et in terra pax hominibus bonae voluntatis. Laudamus te. Benedicimus te. Adoramus te. Glorificamus te. Gratias agimus tibi propter magnam gloriam tuam, Costa.

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