Rem Urasin, pianista: “Tocar é sempre uma responsabilidade”

Natural da república russa do Tartaristão, Rem Urasin está desde 2022 em Portugal devido à guerra na Ucrânia. A saída do país obrigou-o a refazer a vida e a carreira. Conhecido internacionalmente como intérprete de Chopin, o pianista russo actuou no dia 9 de Maio no Centro Cultural de Belém, onde falou com o HM sobre a ligação especial à obra de Chopin

 

Que espectáculo podemos esperar esta noite?

Essa é uma questão interessante. Música de Chopin.

Sim, claro. Mas refiro-me ao ambiente do espectáculo, se traz algo de novo ao público que espera ouvi-lo tocar Chopin.

Já ouvi muitas vezes a pergunta sobre o tipo de mensagem que vou transmitir ao público. Mas quando começamos a falar de música e do seu significado, ou da mensagem que transmite, todas as palavras, por norma, falham. Isto porque a música pode expressar muito mais. É essa a sua questão da central. Quando não existe nada que seja suficiente para expressar algo, a música ajuda. Todas as mensagens que trago para este concerto podem ser ouvidas esta noite.

Para si, a música é e tem de ser suficiente.

Totalmente, porque é um tipo de arte muito particular. É muito abstracta às vezes, por isso podemos expressar, ao mesmo tempo, muitas coisas. Não gosto muito de falar antes dos concertos sobre a música e sobre o que expressa, ou sobre o que o público tem de esperar. Não ajuda e leva-nos a uma percepção errada. Para mim, é como estar fora do ritmo. As palavras são muito precisas, e a música é muito mais do que isso. Mas adoro quando alguns concertos têm um narrador. Costumava tocar em muitos concertos neste formato, mas aí era uma narração especial, com base em documentos, cartas, algumas memórias de contemporâneos. Era algo diferente, porque nesse caso ajudava-nos a sentir a época e a atmosfera desse tempo. Permitia-nos ver através do olhar desses contemporâneos.

Como se sente por estar a tocar em Lisboa, numa sala de espectáculos como a do Centro Cultural de Belém?

Estou muito entusiasmado, porque é a primeira vez que toco em Lisboa e é muito importante para mim. Não é como a primeira vez que toquei em muitas cidades onde nunca estive antes. Portugal tornou-se quase a minha segunda casa, porque tivemos de deixar a Rússia há cerca de dois anos, quando começou a guerra na Ucrânia, e foi uma experiência muito estranha para mim porque nunca tinha estado em Portugal. Vim para viver. Claro que não foi bom para a minha carreira em termos de concertos, porque é tudo novo para mim. Senti-me estranho, como se estivesse numa segunda fase da quarentena [da pandemia], quando todos os artistas estavam fechados em casa. Mas de certa forma gostei desse período, porque me deu a possibilidade de tocar piano e pensar nas coisas. Tive tempo suficiente para isso. Mas foi um período em que os concertos se reduziram ao mínimo e foi uma experiência bastante estranha. Mas agora as coisas estão a voltar ao normal. Este será o meu primeiro contacto com o público de Lisboa, não português, porque vivo em Lagos.

Nesse período em que esteve mais parado, que sensações o dominaram? Vazio?

Não. O vazio é sentido por pessoas que não têm nada dentro. Sempre tive o suficiente dentro de mim para não me sentir vazio. Na verdade, senti o oposto, durante a quarentena e quando vim para Portugal. Senti falta de tempo para fazer tantas coisas. [A pandemia] foi um período trágico e dramático para a humanidade porque muitas pessoas estavam a morrer e a sofrer, mas também nos deu muito tempo, que é algo de precioso. Usei esse tempo para tocar novos programas para piano, para pensar em coisas para ler, não apenas relacionadas com música. É como na pintura, em que às vezes têm de se cumprir vários passos e olhar para outros ângulos.

Começou a ter aulas de piano aos cinco anos no Conservatório de Cazã [capital da República do Tartaristão]. Imagino que tenha sido difícil submeter-se a uma disciplina tão rígida desde muito cedo.

Não! Era divertido, sempre. Lembro-me de que o período em que ia para as aulas de música era incrível. Todas as manhãs acordava com o entusiasmo de que iria para a escola e fazer tudo o que adorava.

Quando percebeu que Chopin era o seu compositor preferido? Quando sentiu algo especial a ouvir o compositor?

A minha mãe conta que quando eu era bebé, com cerca de um ano, estava a brincar no chão e estava a passar um concerto de Chopin na televisão, e que eu meti os brinquedos de lado e comecei a ouvir com muita atenção. Claro que não me lembro disto. Mas a minha primeira professora, que era uma música extraordinária, também teve influência, pois descobriu a minha propensão para as composições de Chopin e transmitiu-me muitas coisas quando tinha cerca de 12 ou 13 anos. Na verdade, o meu primeiro recital de piano, quando tinha 13 anos, foi todo sobre Chopin.

Foi escolha sua estudar piano, ou foi influência da sua família?

Ambos. A minha mãe era geóloga e acreditava que eu iria ser geólogo também. Mas era uma grande fã de música e dava-me lições só por divertimento. Mas lembro-me de, desde sempre, ter a certeza de que queria ser músico profissional, com quatro ou cinco anos. Não tinha nenhumas dúvidas quanto a isso.

Em 1995 venceu uma competição internacional de interpretação de obras de Chopin em piano, que se realizou em Varsóvia. Foi um marco fundamental na sua carreira?

Claro. Foi muito importante para a carreira e em termos pessoais também, pois aprendi ainda mais sobre Chopin e a sua vida. Antes desse concurso ganhei uma competição juvenil em Moscovo, quando tinha 15 anos, e foi uma espécie de primeira fase para a competição de Varsóvia. Preparei-me para este momento durante muitos anos, foi um longo percurso. Foi uma sensação incrível porque esta competição em Varsóvia não é um evento local, toda a Polónia assiste, não apenas os músicos. O país vive muito a música de Chopin durante essas três semanas de Outubro. Quando se vence um concurso de Chopin ficamos com uma espécie de certificado (risos). Mas também é difícil porque ficamos com uma certa marca. É difícil convencer as pessoas de que faço coisas além de Chopin.

Ouve e trabalha em torno de outros compositores, então.

Sim, sem dúvida. Oiço compositores clássicos, e não apenas românticos, mas também contemporâneos. Também oiço compositores russos, por exemplo.

Não gosta de marcas.

Não penso que sejam uma coisa boa, talvez só para ajudar os ouvintes a saber o que podem esperar. Mas, ao mesmo tempo, é bastante limitativo numa série de coisas.

O que diferencia Chopin de outros compositores?

(Risos). Para mim é diferente porque o sinto de maneira diferente. É muito difícil explicar isso, porque é algo muito importante para nós e que nos é muito querido. Não gosto de colocar em palavras, o que sinto é suficiente. Prefiro tocar piano.

Temos pianistas portugueses que também são grandes intérpretes em Chopin, como Maria João Pires. Já teve oportunidade de a ouvir?

Ela é incrível. Ainda não tive a oportunidade de a ouvir ao vivo, infelizmente, mas ela é uma música extraordinária. Sinto que o que ela faz é muito semelhante do que faço. Ela é genial. Gostaria de assistir a um concerto dela, sem dúvida. Todos os grandes artistas devem ser ouvidos ao vivo, e sem dúvida que ela é uma grande artista.

Depois de tantos anos de palco, ainda se sente nervoso antes de actuar?

Claro. Sinto-me nervoso, às vezes, quando penso nos concertos que estão a chegar, porque é sempre uma grande responsabilidade. Quando nos tornamos… não digo famosos, porque é demasiado. Mas quando conseguimos ter alguma fama a responsabilidade aumenta porque as pessoas que vão aos concertos com algumas expectativas. Não gosto de pensar na fama demasiado, porque pensar muito nisso corrói. Há coisas mais importantes do que isso, como a genialidade da música que podemos atingir.

Agora que vive em Portugal está a recomeçar do zero, presumo. O que pretende explorar de novo no piano?

Fiquei chateado quando tive de suspender temporariamente o projecto que estava a desenvolver, intitulado “Great Romantics” [Os Grandes Românticos], devido à minha vinda para Portugal. Cheguei a fazer uma série de concertos dedicados a Chopin, toquei todas as suas composições. Este projecto consiste numa espécie de recital com um narrador. É muito interessante porque envolve o público para a atmosfera de época, e no caso da época romântica é bastante interessante. Trata-se de um projecto de larga escala porque envolve mais de 25 concertos, com diferentes compositores. Cada programa dedica-se a um compositor, sobre um particular período da sua vida. Comecei o projecto e fiz oito espectáculos, mas toda esta mudança obrigou-me a parar. Espero que, de alguma forma, possa concretizá-lo em Portugal porque gostaria de mostrar as minhas pesquisas e o resultado ao público.

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